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A cidade (des)ordenada

16 de Julho de 2014, por Evaldo Balbino

Copa do Mundo 2014. Direi aqui o óbvio, mas não falarei mal da Copa. Direi de algo que me incomoda há 19 anos aqui em Belo Horizonte. Enfrentam-se agora, no estádio do Mineirão, os times da Colômbia e da Grécia. E neste exato momento, depois de ter chegado das ruas, escrevo este texto.

Nunca se viu tanto policiamento pelas ruas de BH, como hoje está se vendo. As estações de metrô, as de ônibus, principalmente as do “moderníssimo” MOVE que acabou de ser inaugurado aos trancos e barrancos, a rodoviária, e também o Aeroporto de Confins. Tudo cheio de policial, de fardas bélicas oferecendo-nos segurança. No meio das pessoas, indo e vindo como formigas desordenadas, não há como não perceber, destacando-se entre todas, os corpos dos policiais, seus coletes à prova de bala, seus cassetetes, suas armas potentes, os cães que lhes dão apoio, cavalos sobre os quais se põem mais fortes e audaciosos. BH está hoje segura. Andar pelas ruas é como estar numa redoma, protegido.

Porém não é assim que se anda nesta capital nos dias comuns, no cotidiano mesmo, fora da Copa do Mundo. Constantemente somos abordados pela pobreza, pela marginalidade, pelos roubos, pelos assaltos, pelos sequestros. Constantemente, dependendo dos trechos pelos quais passamos, ouvem-se tiroteios, veem-se brigas, desordens de todo tipo. Como se já não bastasse um trânsito caótico, confuso, mal-educado.

As ruas de BH, por estes dias, estão mais limpas, pelo menos as vias principais da cidade. As faixas de pedestre ganharam tinta nova, as placas melhoraram em termos de visibilidade, a sinalização foi otimizada, as obras públicas aceleraram-se. Mesmo assim, alguns trechos da urbe foram flagrados sem preparo pela Copa. A Avenida Pedro I, por exemplo, que é uma das vias de acesso ao Aeroporto de Confins, está um caos. Quase tudo nela inacabado. Eu mesmo acompanhei o drama de uma família que foi desalojada dessa avenida. Foi tirada de uma casinha simples, mas digna, construída há décadas à margem do logradouro. A família até hoje está vivendo de aluguel, pois o dinheiro da desapropriação ainda não foi liberado. Famílias inteiras foram expulsas da avenida para que se abrissem alas para a Copa. Alas mal abertas, diga-se.

Moro há 19 anos em BH e venho acompanhando as lutas de associações de bairros, de comunidades inteiras, de alguns políticos (poucos) e de organizações sérias por reformas urbanas, por melhorias de transporte, por alargamento de avenidas, pela reformulação da nossa rede de metrô que é vergonhosa. E tudo, tudo sempre veio caminhando a passos lentos, num “devagar quase parando”, como dizem muitos. Obras feitas e refeitas, prazos estendendo-se indefinidamente, licitações e mais licitações a perderem-se de vista, viadutos já prontos há alguns meses e novamente desfeitos e outra vez construídos. E os nossos impostos pagando essa festa de gastos sem eira nem beira.

Ao lado da morosidade das obras, as filas também são morosas. Nos supermercados, nos hospitais públicos, no INSS, nos bancos, até mesmo nas clínicas de atendimento médico àqueles que têm um plano particular de saúde. Fico horrorizado toda vez que passo pela região hospitalar e vejo pessoas novas e idosas, muito enfermas, mal conseguindo caminhar, compondo uma fila infindável. E falo de tudo isso não apenas como espectador, uma vez que já senti na pele a precariedade de tal atendimento.

Em 2006, meu cunhado veio com leucemia para BH e foi atendido rapidamente, porque estava nos seus últimos estertores. Foi uma luta constante o dia-a-dia na Santa Casa. O oncologista estressado (respondendo-me mal pelo corredor, negando-se a me dar esclarecimento), as enfermeiras superocupadas com tanto doente para atender, as dores do meu cunhado aumentando, as enfermeiras dizendo que não tinham analgésico, e eu insistindo, então, que compraria um remédio numa farmácia, e elas me dizendo que isso não seria possível, e eu educadamente exigindo uma receita, o médico (irritado) me passando a prescrição, as dores do meu cunhado sendo apaziguadas para voltarem em seguida, suas hemorragias aumentando, a ida dele para o CTI. E a morte. A definitiva morte. Do mesmo modo, mais recentemente, minha mãe precisou usar o mesmo atendimento público de saúde aqui, e foi passando por sucessivas triagens que não nos levavam a nada. Meus pais acabaram por pagar uma cirurgia urgente, na rede particular mesmo, em São João del-Rei. Ainda bem que deu tudo certo no caso dela.

 

Mas hoje é um sábado de jogo. Belo Horizonte parece tranquila. Está eufórica, feliz. Estamos seguros, com saúde, com organização. Estamos na Copa do Mundo. E todo o óbvio que aqui digo é necessário. Às vezes faz falta ouvir o óbvio, para não esquecermos a dura realidade.

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