Recentemente, uma ex-aluna minha do curso de Letras me escreveu um e-mail. E nele ela disse que agora, já formada, está trabalhando na rede estadual de Minas Gerais e que também se iniciou no magistério num pré-vestibular como professora de Literatura. Trilhando os caminhos de mestre, ela na verdade foi tomada por indagações que muitas vezes me tomaram igualmente. Falou-me que é muita responsabilidade ser professora de Literatura para uma geração cuja maioria não se interessa pela letra, pela escrita, pelo pensar. E pediu-me se eu poderia dar-lhe algum conselho de como ajudar aos jovens seus alunos a passarem em uma universidade.
Fiquei pensando no que deveria responder a essa educadora. Fui reticente, mas depois lhe dirigi algumas palavras, afirmando que não existem fórmulas para ensinar, principalmente para se ensinar Literatura, e mais ainda para se ensinar a gostar de literatura. Disse-lhe isso, referindo-me ao "ensinar" concebido falsamente como métodos e mais métodos. Quanto a passar nos vestibulares, falei-lhe que a questão relaciona-se com o hábito de leitura. Se não sou bom leitor, meu desempenho não é bom. Todo professor que queira trabalhar o gosto pela leitura, ele mesmo deve ser um leitor.
Dito isso, recomendei-lhe buscar textos instigantes, antes de tudo sendo ela mesma uma leitora. Disse-lhe que levasse para seus alunos tudo aquilo que a toca, que mexe com o ser humano que ela é. Recomendei que demonstrasse amor e envolvimento com o lido. E acrescentei que buscasse textos de prazer, simplesmente bonitinhos, mas que também buscasse textos “de gozo”, os quais, no dizer de Roland Barthes, mexem com a gente, tiram o nosso chão, botam-nos para pensar, tiram-nos do comodismo do não pensamento.
Reforcei-lhe que deveria mostrar aos seus alunos sua paixão pela leitura. Somente mergulhando assim, na leitura, é que se pode ler melhor o mundo, a si mesmo, ao outro. E, lendo melhor o mundo, podemos ler de tudo, inclusive as temíveis provas de vestibulares.
Voltando agora às palavras escritas para minha ex-aluna, fico pensando como seria bom se em todas as escolas a leitura de textos literários de fato estivesse a serviço desse caminho maravilhoso que é o da literatura. Pois arte também é vida, é ar que se respira. A literatura, sendo uma das artes humanas, é necessária a qualquer cultura. E é necessária por vários e vários motivos, que poderíamos passar horas e horas discutindo.
Um dos grandes aspectos dela, da arte, é que ela nos humaniza. Não que ela nos torne melhores. Somos humanizados no sentido de nos vermos como humanos. E chamo aqui de humano ao ser que se reorganiza mentalmente e reorganiza o mundo a sua volta. A literatura é fabulação da vida. Ela nos ajuda a compreender melhor a existência. Voltando-nos sempre, por exemplo, para a poesia, lendo e também escrevinhando, estamos fazendo uma terapia de conhecimento e de autoconhecimento.
Tanto conhecemos melhor pela literatura, que ela, cotidianamente, nos coloca em atitude de contemplação das coisas da vida. Ano passado mesmo, quando do lançamento do meu livro Amores oblíquos, minha irmã Ediceia pegou um moinho de café antigo de nossa casa, que ela guarda consigo num esmero delicado, enfeitou-o com uma flor e o colocou sobre a mesa de autógrafos do evento. Isso foi no Teatro Municipal de Resende Costa. Lembrando-me daquele moinho deitado sobre a mesa, escrevi dias depois: “Assim como este moinho, durante anos e anos, trabalhou porque foi trabalhado, em minhas mãos e nas mãos dos meus entes queridos, do mesmo modo estou agora trabalhando. Estou moendo palavras como ele moía café. Este velho moinho enfeitou o lançamento de meu quarto grão, Amores oblíquos. Eis, mercê de Deus, mais um filho em minha vida”.
Ao escrever tais palavras, desse modo agrupadas, revivi pela reinvenção as minhas lidas com o velho moinho. E me lembrei das diversas vezes em que reclamei da tarefa a mim conferida por minha mãe. Reescrevendo a lembrança, olho hoje com outros olhos o menino reclamão do passado. Se eu vivesse tudo novamente, reclamaria de novo por certo. Mas agora, depois da ida experiência, sinto em minhas mãos o cheiro do pó de café sendo moído, minha mãe cantando hinos perto do moinho, e minhas mãos rodando, rodando, rodando através do tempo.
As palavras arranjadas de modo poético ganham um poder sublime, como num espelho mágico. Assim refeitas, elas refazem a vida, os nossos olhares sobre a vida, de modo bonito ou não, mas sempre humano. Nada mais que humano. E esse espelho verbal nos mostra muita coisa. Inclusive nos ensina a organizar de modo aprazível a nossa imagem no mundo e para nós mesmos.