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Livrai-nos do fogo do inferno!

15 de Outubro de 2013, por Evaldo Balbino

Começa a noite e o Ribeirão de Santo Antônio está silencioso.

O Seu Geraldo Martins morrera no início da tarde, mas este silêncio todo não é por sua morte. Ele morrera, porém muitos ainda continuam na sua faina, entre milharais, plantações de café e mandioca, entre pomares inesgotáveis da vida. Lá no Ribeirão de Baixo mesmo, a esta hora da tarde, bem na venda do Nélson, alguns homens devem estar bebericando a vida, falando dos segredos alheios, desejando a mulher do próximo, e tudo isso com a pacificadora ideia de que tudo será perdoado, pois estão bêbados, sem maldade nenhuma.

No Ribeirão do Meio, a porteira solitária está fechada. No pasto, a vaca pasce com seu bezerrinho ao lado mesmo do menino. E o menino, de conga, calça de tergal plissada, camisa de uma cor bonita num tom pêssego, aguarda sua mãe que a esta hora deve estar penteando os cabelos em frente à penteadeira. Ambos, menino e mãe, vão ao velório na casa do Seu Martins.

O menino sem medo nenhum. Não tem medo dos mortos, pois sabe que eles não mexem com ninguém. Além disso, o Seu Martins era homem bom, sempre lhe dando balas na venda do Nélson, quando ele, o menino, ia buscar querosene para sua mãe. Atarantada no tear, serviço que faz até altas horas da noite, a mulher não tem como ir à mercearia e pede ao menino que vá em seu lugar. O Nélson não lhe dá nada, somente o troco bem contado, que homem honesto o vendeiro é. Porém o Seu Martins sempre abria seu largo sorriso branco, não da brancura de dentes, que estes ele não tinha, mas da brancura da alegria. Mesmo sem dentes, aquele homem ria, a barriga balançava, e suas mãos se estendiam para o menino guloso por balas.

Agora, depois de morto, certamente o Seu Martins não mais lhe dará balas. E ele, o menino, em ato de agradecimento, acompanhará a mãe até ao velório.

De cabelos longos e penteados, com uma mecha nascendo e crescendo branca bem no meio da testa, a mãe se aproxima apressada. Pega a mão do filho e vai solicitando passos rápidos, argumentando que estão atrasados.

O menino a atende, solícito. Aceita as passadas da mãe, sem deixar de lado, no entanto, o receio de que a poeira da estrada suje seu par de congas, mandadas comprar recentemente na Vila. A sola de borracha branca contrasta com o tom pêssego escuro do resto do calçado. E nenhum receio de que lhe venham dizer ser esta cor para mulheres, tão parecida com o rosa. Que se danem todos, chegou a pensar isso quando as calçava, imponente, para acompanhar a mãe à casa do Seu Martins. E o mais bonito de tudo: a cor das congas é a mesma da camisa que sua mãe coseu. Assim, tão bem vestido, ele vai para um velório. Bonito diante da morte.

Para encurtar o caminho, a mãe decide passarem pela cava, uma estrada funda por onde o menino nunca gosta de passar sozinho. Ribanceiras altas, buracos de onde saem cocotas, mas também serpentes. E o medo da Luz da Pedra? A que dizem vagar sobre o Ribeirão noturno e a qual muitos já disseram ter visto ali mesmo, errando pela escuridão da cava? De jeito nenhum! Passar ali sozinho, nunca! Até mesmo durante o dia, é sempre noite na cava. Acima das ribanceiras, densa mata torna o caminho mais sombrio do que a morte.

A casa do Seu Martins fica no Ribeirão de Baixo, entre uns bambuzais, um pouco depois da venda do Nélson. Mesmo passando apressados diante do empório, o menino vê alguns homens no balcão bebendo a vida. É gente magra, pois a morte está ali perto, entre os bambuzais, deitada na casa do Seu Martins. E praticamente quase todos do povoado estão, agora, cultuando a morte, exorcizando-a, para no dia seguinte voltarem aos seus afazeres, às suas vidas.

No velório, pessoas de pé, de cócoras; umas sentadas à mesa, outras em bancos de madeira ao longo do terreiro ou pelos cômodos da casa. Um silêncio rumoroso atravessando tudo. No momento em que chegam o menino e a mãe, a reza já vai começada. Todos tristonhos, tentando espantar a morte.

E o menino fica solerte, de ouvidos em pé, escutando aquelas vozes todas em uníssono. Ele nunca ouvira antes aquele tipo de coisa, nunca presenciara o ritual. Entre um mistério e outro, o Ó Meu Jesus vem à tona e atravessa a existência do garoto: “Ó meu Jesus, perdoai-nos e livrai-nos do fogo do inferno. Levai as almas todas para o Céu, e socorrei principalmente aquelas que mais precisarem”.

O coração apertado, o menino clama por sua mãe:

– Mãe, vamo embora, que tão mandano ele pro inferno. Vamo embora, mãe, pelo amor de Deus!

 

Imersa na reza, como que estando em outro mundo, a mãe não o escuta. Então ele, sem coragem de voltar sozinho para casa, busca pensar na vaca e no bezerrinho, pascendo vivos lá no pasto. Os dois esperando que ele, o menino, volte logo para apartá-los. Não da vida, mas um do outro, momentaneamente, para continuarem juntos no outro dia.

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