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Um cartão e seus desdobramentos

13 de Junho de 2014, por Evaldo Balbino

Recebi outro dia um cartão diferente. Não um cartão-postal, mas um cartão de felicitações feito com esmero e carinho. Um presente artesanal. Era um cartão cheio de flores, de fundo todo azul, numa mistura de céu e mar, mar e céu. E na lateral do fundo azul, profundo e suave, destacando-se com brilho, havia um golfinho.

Artesanatos me consomem de tanto admirá-los. Vejo-os e vejo mãos trabalhando numa deliciosa faina de criação. Vendo-os, vejo os seus criadores, deuses quase perfeitos nesta face de terra.

No cartão me vieram flores. Num tom roxo, cor da paixão. Com suas ramas em riste, aquelas flores me florearam todo, me arrebanharam como um pastor faz com as ovelhas perdidas no campo. Elas eram cores no papel, mas me vieram perfumadas, exalando vida que não termina nunca. E por não terminar, por ser eterna enquanto eu olhava para o cartão, a vida minha agradeceu aquela oferta. Uma bandeja se me deu com flores. E o tom roxo das pétalas sobre ramas verdes de esperança me fez rememorar o eterno Cristo, o deus feito homem, a concretude pura da vida vencendo a morte. E ele também, o Cristo poético, é roxo em minha memória. Roxo de feridas, de dores, de amores por todos nós, que não somos deuses. Quando vejo flores, não tem jeito: meus desejos são florais também. Olhando para o cartão, pus a amar-me como nunca. Vi-me bonito, pronto para passear em praça pública, para dar e receber olhares. Pronto para ser feliz.

O fundo azul do cartão, numa mistura de água e céu, levou-me a paragens profundas, a sensações líquidas e gasosas. Senti-me ao mesmo tempo nas profundezas dos mares e nas alturas do espaço. Nadando nos ares e voando em oceanos de vida, eu me tornei argonauta sem peias. Erguido nas nuvens como balão espaçoso, nadei na líquida existência em que nos afogamos todos. Com ousadia de nadador infrene, lancei meus tentáculos de amor pela vida.

E que calma, que tranquilidade aquele fundo azul me concedeu! Vendo-me água e ar, pude sentir a leveza da vida. Não a leveza do que se esvai, do que fenece. Mas a leveza que nos transporta sem gravidade, para além mesmo das coisas graves da vida. Levitei, olhando para o cartão de fundo azul.

E que beleza de brilho o do golfinho! Um golfinho no fundo azul. Se realmente brilham os golfinhos, não sei. Talvez com a água escorrendo-lhes pelos corpos, com a luz do sol atravessando tudo, eles sejam assim mesmo: brilhantes. Cintilantes como a vida. E digo isso, porque precisamos de qualquer coisa que brilhe. Sem brilho, tudo é tisnado pelas tristezas que nos olham sempre. E uma vida completamente maculada não nos consola. Talvez os golfinhos brilhem mesmo. Com seus olhos espertos, com seus corpos ágeis. O que importa é que o meu golfinho, o que me veio vivo no cartão, brilhava. E ainda brilha se de novo eu olhar para ele.

Ah, devo dizer que amo os golfinhos! Seus saltos me engolfam, me colocam em transe. Seus saltos me tomam e me tornam um saltador. Sinto-me, com eles, um equilibrista das águas. Sinto-me o próprio Pedro, naquele episódio de Mateus. Ouço a voz roxa de Jesus, completamente apaixonada, me chamando: “Vem!”. E eu ando sobre as águas para ir ter com ele, o deus humanizado. O que chorou também, o que teve dores. O que também morreu. E vendo o golfinho, seus nados velozes, sou um Pedro corajoso. Não há vento forte, não há medo em mim. Não vou ao fundo, pois antes mesmo de clamar “Senhor, salva-me!”, já estou salvo por mãos estendidas segurando-me. Minha fé é pouca, é grão de mostarda. Mas com ela removo montanhas, por ela não duvido do meu andar sobre as águas, da bonança da vida, do aplacamento das tempestades. Sem perigo nenhum, meus pés andam sem gravidade que os pese. Andam sobre águas azuis refletindo o céu. E por isso mesmo ando também no espaço. Sou argonauta de novo sem o medo das profundidades perigosas que nos assaltam. E meus saltos são de golfinho, animal e divino. Deus me concede esta façanha.

Também a façanha de amar. Pois amar é compreender o outro, é aceitá-lo na sua diferença e em suas desavenças conosco. Amar quem nos ama é fácil, isso não conta. Mas amar a todos, isso é tão profundo e complexo como o próprio mar. E perigoso também.

Amando perigos, amo todos os animais. No meu espírito aventureiro, saltando como um golfinho, também amo os seres humanos. Nós, pobres animais tão ricos. Tão cheios de virtudes e complexidades. Mais neuróticos que os demais, talvez soframos mais do que todos. Mas isso não tira as cruzes que os outros também carregam. Por isso é que defendo: ajudemos uns aos outros (humanos e animais) a carregar tantas cruzes, como se disséssemos, tal o Cristo: “amai-vos uns aos outros, como eu vos amo”.

 

E para amenizar tantas cruzes, basta amarmos muito. E a todos sugiro os simples gestos da vida. Como, por exemplo, o de enviar um singelo cartão.

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