O monstro das Lajes


Artigo

José Ângelo de Freitas Coelho*0

Não sou filho de Resende Costa, ainda que me sinta como tal devido à minha relação com a cidade, a qual sempre vejo através dos olhos do meu pai, Alair Coêlho, este sim, que é filho natural dessa terra tão prodigiosa em beleza e cultura.  Lembro-me das visões maravilhadas do alto da Laje de Cima, visões de um dia que morria e a noite que renascia cada tarde do alto da laje. Noites frias do festival de inverno, um encontro de música, beleza, nostalgia e calor humano, que acontecia onde hoje é a Biblioteca Municipal (uma obra que nos enche de orgulho). Infelizmente, tal sentimento não pode ser aplicado a um verdadeiro "monstro" que foi levantado de maneira completamente desafiadora da cultura estética, profanando e violando o direito de Resende Costa de ser uma das cidades mais belas e acolhedoras de Minas.

O monstro não tem nome, mas tem função: caixa d´água. Uma aberração. O lugar que um dia e por décadas havia sido o ponto de encontro da juventude e maioria dos adultos da cidade, foi arrebatado da maneira mais vil das mãos e consciências dos resende-costenses. Quantos matrimônios foram pedidos e quantos beijos inocentes foram roubados nesse lugar emblemático de Resende Costa. Quantas amizades foram iniciadas e alicerçadas no campo de voleibol que aí estava. Tudo isso é coisa e assunto do passado. A história é uma mãe, e o tempo é um juiz. Enquanto a história ensina, o tempo julga. De uma ou outra maneira os responsáveis pelo monstro que um dia se levantou na Laje não passarão incólumes pelo crivo da história e a sentença do tempo. 

A profanação tem um preço, e nesse caso em particular foi muito alto. Toda uma geração se está perdendo porque não tem no seu DNA cultural uma relação com esse lado da cultura urbana de Resende Costa. O culpável? Não há UM culpável, porque nesse caso são vários, começando pelo idealizador, passando pelo que aprovou e terminando pela sociedade resende-costense que nada fez para deter a esbugalhação de um patrimônio que não é só local, é atemporal. É de se admirar que uma terra que deu dois dos mais valorosos heróis da inconfidência mineira (José de Resende Costa, o pai e o filho, do qual sou descendente, com muito orgulho), não haja posto em ação essa coragem quando Resende Costa, a cidade com seus becos e ruas históricas, pediu e implorou ajuda, quando foi vítima da mais vil violação, quando lhe foi tirada a vista de horizontes musicais, como disse meu pai. Não estou contra o progresso, mesmo porque seria algo nonsense estar. Mas sim estou contra os crimes cometidos em nome do progresso. 

Moro em uma cidade de mais de 1.500 anos de história, a Cidade do México. Quando o espanhol Hernán Cortez chegou a essa cidade (naquela época conhecida como Tenochtitlan), ficou boquiaberto por encontrar uma cidade maior, com mais população e mais avançada que Barcelona ou Madri, naquele momento. 

Hoje em dia a cultura mexicana e azteca aflora em qualquer ponto da Cidade do México com seus 22 milhões de habitantes. E ainda com tanta gente vivendo aqui, existe uma consciência formada e aplicada nos moldes da preservação da cultura. Ante o mais leve indício de descobrimento de ruínas ou pirâmides, as obras de qualquer envergadura são imediatamente paralisadas e são chamados expertos arqueólogos mexicanos para fazer a escavação. O metrô da Cidade do México é um dos maiores do mundo e nesse momento em que escrevo essas linhas, as obras de outra estação estão paralisadas devido a um descobrimento arqueológico e ninguém reclama do atraso das obras, porque ainda que sejam muito necessárias em uma cidade com tão alto nível de população, eles sabem que a cultura não pode ser violada por monstros feitos pelos homens, em áreas do progresso. Progresso que destrói, não é progresso, é regresso. 

O monstro da caixa d´água de Resende Costa ganha dimensões insuspeitadas. Um dia, enquanto eu esperava meu voo de regresso à Cidade do México, depois de uma conferência na cidade de Mérida, estado de Yucatán, vi na lapela de um senhor que esperava seu respectivo voo, um pingente com um triângulo. Aproximei-me dele e qual não foi minha surpresa ao ver aí, a bandeira mineira. Apresentei-me pensando que se tratava de um conterrâneo e minha surpresa alcançou índices altíssimos quando vi que se tratava de um mexicano. Conversamos essas conversas rápidas entre voos e quando perguntei o que ele foi fazer no Brasil, me disse que participou de um congresso da Emater, com uma parte feita em... Resende Costa! Eu não saía ainda do meu assombro quando foi disparado um verdadeiro míssil oral direto ao meu coração. Para tal efeito, reproduzo literalmente o que me disse:

- Me gustó mucho todo lo que vi en Resende Costa se parece a Taxco aqui en México, pero hay una cosa que echó a perder todo lo bonito: ¿quien diablos colocó una cosa tan fea como un tinaco de agua justo en el lugar más bello de Resende Costa? Es un crímen.  

Para os não versados na língua de Cervantes, a tradução, ainda que doa:

- Eu gostei muito de tudo o que vi em Resende Costa, parece Taxco (uma cidade colonial do México), mas tem uma coisa que fez perder tudo o que vi de bonito lá: Quem foi o responsável por construir essa coisa tão horrível como uma caixa d´água no lugar mais bonito de Resende Costa?

Devido ao meu silêncio ante tão assustadora verdade, me perguntou: “Por acaso não havia outro lugar para colocar a caixa d´água?” 

Claro que havia e há, mas o monstro não conhece essas coisas do coração nostálgico. É como Frankenstein na novela de Mary Shelley, criado sem razão aparente de existir, porque não tem consciência da sua própria existência. 

Enquanto isso, cada vez que vou a Resende Costa, deixo a visita à Laje de Cima como última etapa, qual santa peregrinação por vias onde passei, quando era menino, minhas férias na casa dos meus avós. E sempre se apodera de mim o sentimento de impotência ante tão grave abuso. Sei que chegando à Laje, tenho que encontrar outra vez com o monstro. É um encontro inevitável e fere, porque enquanto que eu vou e venho, o monstro não se move e fica.

 

*Teólogo evangélico, pastor e escritor

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