Com política!

Bolsonaro acuado?

12 de Novembro de 2019, por Fernando Chaves 0

Em quase um ano de governo, o presidente Jair Bolsonaro não conseguiu construir uma base partidária sólida. Também já demonstrou que não tem carisma para preservar o apoio da opinião pública que o elegeu (hoje esse apoio estacionou em torno de 30% do eleitorado), sendo o presidente eleito que mais perdeu adesão do eleitor no seu primeiro ano de mandato desde a redemocratização. Além disso, seu governo implementa uma pauta política antipopular, com ataque aos direitos sociais e sustenta uma relação turbulenta com os maiores veículos de mídia do país.

O presidente está circunscrito à sua bolha ideológica radical e mostra-se muito dependente dos seus relacionamentos políticos mais imediatos: uma parte do clã do PSL que lhe é fiel, alas militares, seus filhos. Não consegue dilatar seu prestígio e sua influência política desde que chegou à presidência. Pelo contrário. Viu retrair seu capital político. O grupo em que o presidente confia é tão reduzido que Bolsonaro oscilou entre o interesse de mandar o filho para a embaixada americana e a necessidade de mantê-lo no Brasil para cuidar de seu partido. Isso é reflexo de inabilidade política e da falta de quadros em que o presidente possa realmente confiar. Além, é claro, de ter exposto indecorosamente o interesse de beneficiar o próprio filho.

Com o seu conservadorismo e o seu anti-esquerdismo extremados, Bolsonaro conseguiu se ligar a setores da opinião pública que lhe deram votação suficiente para ser eleito. Mas o presidente se sustenta no poder não pelo apoio que tem da opinião pública ou pela sua articulação política. Sustenta-se porque atende bem aos interesses do mercado, do capital financeiro, do agronegócio. O trabalho de Guedes, Salles e companhia, desregulando o Estado, liberalizando a economia e entregando o país e suas riquezas à sanha do capital estrangeiro é o que realmente dá sustentação ao presidente. O apoio dos grandes setores econômicos é mais estratégico e poderoso do que popularidade alta e adesão da opinião pública. É assim que Bolsonaro tem se sustentado até o presente. Enquanto ele atende ao conservadorismo raivoso de um terço do eleitorado com suas bravatas, seus ministros de Estado atendem à sanha neoliberal de venda do país.

Acontece que essa sustentação altamente dependente do apoio do grande capital necessita da entrega de serviço sujo em continuidade (corte de direitos, entrega do patrimônio nacional, flexibilização das leis ambientais, favorecimentos ao setor financeiro). O cão feroz do mercado não tem a menor simpatia pela pessoa do presidente. Apenas pelos serviços entregues pelo governo. Esse grupo pode jogar Bolsonaro ao mar assim que o perceber como inútil ou improdutivo. A TV Globo, por exemplo, que já é um desafeto antigo do presidente, ainda pode intensificar muito os seus esforços contra o presidente. Fará isso de forma crescente se o agronegócio e o capital financeiro (seus maiores clientes) iniciarem um desembarque do governo.  Mesmo que a organização dos Marinho esteja decadente, ainda pode fazer muito estrago politicamente.

Para que esse apoio do grande capital econômico perdure, o presidente precisa executar mais serviços liberalizantes, mais desmanche do Estado e de direitos, mais entreguismo das riquezas nacionais. Por outro lado, persistindo a pauta liberal e de desmanche estatal, a conta eleitoral será cara, como está sendo para os governos neoliberais de países vizinhos. A sua forma de sustentação no poder é justamente o que pode inviabilizar Bolsonaro eleitoralmente para 2020. A menos que ocorra uma reação improvável da economia nacional e da geração empregos a ponto de retomar a popularidade do presidente.  

Se Bolsonaro vai terminar o seu mandato é uma incógnita. Já o projeto de reeleição em 2022, esse me parece cada vez mais comprometido.

Para uma liturgia bolsonariana

11 de Setembro de 2019, por Fernando Chaves 0

Submetam-nos à geopolítica norte-americana e mandem o restante do mundo às favas. Leiloem as melhores universidades públicas brasileiras, apoiem a flexibilização irresponsável da legislação ambiental e o uso irrestrito de substâncias agrotóxicas nas lavouras brasileiras. Reivindiquem a privatização da matriz energética nacional e dos bancos públicos, entreguem aos EUA os setores e projetos nos quais temos tecnologia de ponta, como na venda da Embraer à Boeing. Elogiem a tortura e zombem das instituições democráticas. Apoiem a violência institucionalizada contra as periferias. Defendam o uso da força como solução dos conflitos sociais e ignorem a desigualdade como uma das principais fontes desses conflitos. Rezem a cartilha liberal, dando aval à política obstinada de abertura da economia nacional ao capital estrangeiro. Definam-se como nacionalistas e não-ideológicos. Simultaneamente, instalem o governo mais ideológico e antinacional dos últimos 30 ou 40 anos. 

Estimulem o ressentimento entre povos brasileiros (índios, negros, nordestinos). Naturalizem o preconceito e a intolerância contra LGBTs e outras minorias. Minimizem a importância da legislação sobre o trabalho infantil. Tratem história, sociologia e filosofia como disciplinas de doutrinação comunista e a liberdade de cátedra como ameaça à ordem pública. Com isso, sintam-se no direito de reinterpretar os fatos históricos de forma que eles justifiquem as medidas de exceção do atual governo. Mandem os conceitos clássicos da ciência política às favas e repitam arbitrariamente que o Brasil acaba de sair de um regime comunista. Definam-se como liberais moderados (centro-direita), mas personifiquem ao extremo o exercício do poder e cultuem a autoridade pessoal e arbitrária em detrimento do Estado de Direito e das instituições republicanas. 

Externamente, insultem países, povos e chefes de Estado que se mostrem críticos às crenças da seita de vocês. Insultem utilizando ataques pessoais perversos, às vezes sexistas. Não se esqueçam de ressaltar que isso tudo é em prol de uma política externa e diplomática “não-ideológica” (risos). Internamente, imputem aos que pensam diferente a culpa por todas as dificuldades enfrentadas pelo Estado e pela sociedade brasileira. Orgulhem-se de terem um líder que declara não entender nada de Economia Política e que coloca a culpa da crise econômica nos economistas de formação (essa é brilhante!). Acredite piamente que megacorporações e grandes empresários abrirão novos postos de trabalho e melhorarão salários se houver diminuição radical dos direitos trabalhistas (tenham fé, irmãos!).

Naturalizem o familismo e o nepotismo. Questionem e ataquem qualquer órgão, entidade ou dado científico que não corroboram a visão de mundo de vocês. Justifiquem suas ações e pensamentos políticos com argumentos religiosos e moralistas, ainda que hipocritamente. Defendam o discurso meritocrático culpando o pobre pela pobreza, a mulher violentada pela violência sofrida, o negro favelado e sem instrução por não ter subido na vida, o indígena por não ter se integrado ao capitalismo, os professores pela “disseminação da homossexualidade” nos dias atuais. Taxem todos os grupos minoritários como fracos e vitimistas.

Encontrem sempre um bode expiatório como solução dos problemas e impasses políticos. Façam da política uma arte de jogar a culpa nos outros. Desabonem de modo generalista o trabalho de associações, ONGs e conselhos de participação popular. Generalizações vagas e dogmáticas são sempre bem-vindas, mas façam-nas com vigor e sangue nos olhos.

Comemorem futebolisticamente as bravatas do seu mito e entrem para a história por terem construído um líder nacional que figurará no seleto grupo de governantes considerados a escória da civilização.

Por último e, solenemente, ignorem todas as nuances e complexidades da identidade política de um cidadão e acusem o autor deste artigo como sendo um “comunista doutrinado”, “defensor de bandido”, “propagador de ideologia de gênero” e “desagregador da família”, da moral e dos bons costumes.

Amém.

Relações históricas entre mídia e política

12 de Fevereiro de 2019, por Fernando Chaves 0

O jornalismo como campo social dedicado a produzir e distribuir notícias com regularidade tem origem no século XVII, quando surgem na Europa os primeiros impressos com periodicidade fixa. Desde então, o campo da comunicação e as plataformas de veiculação jornalística mudaram enormemente, assim como a relação do campo político com as tecnologias da comunicação. Algo essencial, no entanto, não mudou. Mídia e política são esferas da vida social que se entrelaçam e mantêm relações intensas, desde os primórdios da imprensa moderna até os dias atuais: a política está sempre tentando instrumentalizar as plataformas de comunicação social em seu proveito, especialmente as novas plataformas, quando elas emergem como novidade tecnológica ao longo da história.

No século XVIII, a relação dos primeiros periódicos com o campo político era de dependência. Muitos dos impressos da Europa setecentista assumiram papel de instrumentos políticos. Sua razão de ser era panfletária e suas fontes de financiamento partidárias, o que lhes conferia um caráter predominantemente opinativo, muitas vezes virulento.  A disseminação dos ideais da Revolução Francesa e a agitação popular que caracterizou esse movimento foram corroboradas pela afixação e circulação de periódicos impressos, à época uma nova tecnologia e instrumento precioso de ativismo político.

Ao longo do século XIX, a imprensa se transformou. Caminhou gradativamente para se tornar, no início do século XX, um empreendimento capitalista voltado para o lucro. Se muitos dos jornais europeus do século XVIII tinham finalidade e financiamento oriundosde grupos políticos, na virada para o século XX o contexto é radicalmente diferente: os jornais se tornam empresas com grandes tiragens e circulação nacional. A publicidade surge como principal fonte de receita e o jornalismo desenvolve os ideais de objetividade e imparcialidade. A profissionalização dos jornalistas avança e, por volta de 1920, surgem os primeiros cursos superiores de comunicação. A mídia, nessa fase, se torna mais independente do campo político no aspecto financeiro e é convertida em uma espécie de palco simbólico, onde é gerada a visibilidade social. A imprensa do século XX assume a função de gestora da visibilidade. Os agentes políticos buscam chamar a atenção da cobertura midiática para suas ações e projetos, a fim de ocupar o palco da comunicação de massa, obtendo visibilidade e gerando credibilidade junto à população. Em meados do século passado, rádio e TV se consolidavam como novas plataformas de comunicação e ampliavam o alcance das notícias para as camadas mais pobres e sem instrução.

O campo jornalístico e a indústria da mídia construíram certa independência em relação à esfera política no século XX. Mas isso não quer dizer que nesse período a política não tenha lançado mão de expedientes para instrumentalizar meios e plataformas de comunicação com finalidade político-ideológica. A ascensão do rádio, por exemplo, como nova mídia na década de 1930, foi amplamente utilizada por Adolf Hitler para disseminar os ideais do Nazismo. 

No iníciodo século XXI, assistimos a uma nova reconfiguração das relações entre o campo político e a comunicação social. Intensificou-se a midiatização da vida cotidiana e das relações entre as pessoas. A mídia é muito mais que um palco gestor da visibilidade social. Ela passa a se estruturar como uma grande rede que permeia toda a sociedade. A digitalização das mídias, os dispositivos móveis de acesso e a emergência das novas mídias digitais permitem o surgimento de novos atores comunicacionais. Em paralelo com a mídia tradicional, que ainda exerce forte poder, outras vozes ecoam no cenário comunicacional. 

Conforme ilustra a instrumentalização da imprensa durante as disputas políticas dos séculos XVIII e XIX e a utilização do rádio como um dos principais meios de propaganda nazista no século XX, as novas mídias contemporâneas (digitais, horizontais e em rede) têm o seu uso amplamente orquestrado por grupos de poder com finalidades político-ideológicas, como toda nova tecnologia que emerge na história humana. O uso político do que se tem chamado de fake news e outras estratégias de manipulação ou administração da informação é algo tão velho quanto as notícias.

O estudo das relações históricas entre os campos da comunicação e da política revela que é nos momentos de surgimento e expansão de novas tecnologias da comunicação (imprensa, rádio, televisão, internet) que estamos mais vulneráveis à manipulação da informação! Isso explica a grande onda de fake news com efeitos observáveis sobre a última eleição brasileira. É como se a sociedade ainda não possuísse os antídotos para as novas tecnologias e suas implicações e aplicações políticas, como se ainda precisasse ser alfabetizada para as ferramentas de que já dispõe.

O tripé da economia do artesanato e a necessidade de uma política de proteção patrimonial

27 de Novembro de 2018, por Fernando Chaves 0

O município de Resende Costa, localizado na região do Campo das Vertentes, em Minas Gerais, vem se consolidando há décadas como centro produtor e comercial atacadista de artesanato, sobretudo o têxtil.  Além de abastecer pequenos, médios e grandes estabelecimentos comerciais espalhados por vários estados, como Rio de Janeiro, São Paulo, Minas Gerais, Paraná etc., o município é integrante de uma rota de turismo regional no Campo das Vertentes, onde se apresenta como um ponto de passagem ou um destino para o turismo de compra no ramo artesanal e, nesse sentido, oferta uma ampla diversidade de produtos além do têxtil: artesanato em madeira, ferro, pedra, cerâmica, crochê, dentre outros tantos.

Em paralelo com o aumento e a profissionalização do comércio de atacado voltado para revendas, o turismo de compra veio se ampliando desde as décadas de 80 e 90, para dar um salto nas décadas de 2000 e 2010, o que deu mais solidez e dinamismo à economia de produção e comércio do artesanato em Resende Costa. Essas são as duas linhas fundamentais e já consolidadas de venda do artesanato no município: (1) a negociação no atacado; (2) o turismo de compra. Com a chegada desse turismo incipiente, veio uma expansão gradativa da oferta de pousadas, bares e restaurantes e uma estrutura básica veio sendo montada para receber melhor os visitantes. 

Entretanto, o crescimento e a consolidação do segmento turístico esbarram em um fato reconhecido por todos os resende-costenses: esse turismo de compra sempre foi caracterizado pelo curto período de permanência dos visitantes na cidade. Na maioria das vezes, não se hospeda nenhuma noite em Resende Costa. Predomina o turismo conhecido como “bate-volta” e, com grande frequência, o turista que está inserido em outros roteiros regionais, que envolvem principalmente Tiradentes e Bichinho, mas também Prados, São João del-Rei e outras cidades, reservam sua vinda a Resende Costa para a estrita finalidade de conhecer e comprar o artesanato produzido e comercializado na cidade. Hospedar-se não está no planejamento.

É nesse ponto que a Asseturc (Associação Empresarial e Turística de Resende Costa) e parte do empresariado local já estão percebendo que precisam atuar: o fortalecimento do turismo de permanência, que completa o nosso tripé. No entanto, há grandes desafios para o estabelecimento efetivo desse tripé econômico, que envolve negociação do artesanato no atacado, turismo de compra e turismo de permanência.  Obviamente, um lugar para o turista permanecer precisa de atrativos, de programação, de identidade cultural, de originalidade, de diferencial, de história, de patrimônios preservados.

Resende Costa precisa ser mais eficiente em oferecer atrações para o visitante. O artesanato é capaz de trazer o turista, mas é insuficiente na tarefa de fazê-lo permanecer na cidade. O que fazer então? Cabe à sociedade e ao poder público, além dos empresários, construir uma política municipal de preservação e valorização dos patrimônios culturais e naturais que possam se configurar como atrativos e sejam estratégicos para o fomento do turismo de permanência.

Se Resende Costa quer mesmo investir em um projeto de expansão e consolidação do turismo no médio e no longo prazo, ocupando também o nicho do turismo de permanência, é preciso desenvolver a consciência patrimonial, com ações concretas que garantam a proteção e valorização do espaço público. É preciso transformar a mentalidade e a cultura de naturalização da apropriação do público pelo privado. Essa cultura perpassa o poder público e a sociedade.  Deve haver a compreensão de que a identidade cultural e urbana de Resende Costa é um bem valiosíssimo que pertence à coletividade. A riqueza cultural, a originalidade urbanística, o equilíbrio paisagístico de Resende Costa são bens preciosos que podem contribuir para maior pujança turística e econômica da cidade.

Não é apenas o imóvel particular ou a propriedade privada que necessitam da defesa aguerrida do cidadão. Aquilo que nos dá nome e história, que nos diferencia, que distingue o espaço urbano resende-costense e que é o substrato elementar para a construção de um projeto sustentável e duradouro de turismo cultural, está definhando. Sem uma política pública de proteção e valorização do espaço urbano, ficará cada vez mais difícil a aventura de construção de Resende Costa como um destino turístico de permanência.

Por que COM POLÍTICA?

13 de Novembro de 2018, por Fernando Chaves 0

O sociólogo francês Pierre Bourdieu ensina que a sociedade é constituída por diversos espaços simbólicos nos quais as atividades humanas são ordenadas e ganham sentido. Como exemplo desses campos sociais, temos a religião, a ciência, a economia (o mercado), a política, a mídia. Cada um desses domínios opera segundo uma lógica própria e impõe a seus membros e interlocutores normas de conduta, valores, visões de mundo.

No Brasil recente, o campo político sofre um esvaziamento acentuado de prestígio e credibilidade. Declina-se o capital simbólico atribuído ao campo da política e seus elementos tradicionais: instituições partidárias, políticos, o próprio regime democrático. Com o avanço do discurso “antipolítica”, estamos elegendo um grande número de outsiders para postos estratégicos do Estado, desde as eleições municipais de 2016.

Os outsiders são novatos na política, que, às vezes, conseguem obter rápida ascensão político-eleitoral a partir do simbolismo ou da visibilidade que agregaram em outros domínios sociais, como na mídia (Wilson Lima, João Dória, Carlos Viana), na religião (Marcelo Crivella), no campo jurídico (Wilson Witzel, Reinaldo Azambuja), no esporte (Alexandre Kalil), no mercado empresarial (Romeu Zema, Antônio Denarium), no campo militar (Coronel Marcos Rocha, General Hamilton Mourão). Sobretudo nos momentos de crise de legitimidade no campo político, os outsiders ganham mais espaço. Junto com eles, emergem novos partidos com promessas de renovação: o Novo e o PSL, por exemplo.   

Bolsonaro é parte desse processo apolítico. Apesar dos 28 anos como deputado, pesquisas mostram que o eleitor vê nele um elemento novo na política, representante de uma demanda por transformação. Em discursos de campanha, o presidente eleito sugeriu soluções militares para questões de natureza política, criticou a democracia e elogiou a ditadura abertamente. Sua candidatura trouxe, na figura do seu vice, a representação direta do campo militar. Além disso, sua campanha acionou também o campo religioso. Como se vê, Bolsonaro busca legitimidade a partir de outros campos sociais distintos da política. Assim, consegue que o eleitor o interprete como um agente anti-establishment. Ou como ficou comum ouvir: alguém que é “contra tudo isso que está aí”. Assumindo essa narrativa em que o candidato se opõe ao sistema político vigente, Bolsonaro recusou-se, por exemplo, a executar um dos ritos mais simbólicos da democracia brasileira: a participação nos debates de TV. Pela primeira vez, não houve debate televisivo entre os candidatos à presidência no segundo turno.

Todos os campos sociais têm suas particularidades e sua participação no equilíbrio sistêmico da sociedade: o campo religioso, o militar, o mercadológico, o artístico/cultural, o científico, o político. Por outro lado, a colonização do campo político por outros campos sociais remete ao passado. A política submissa às perspectivas do campo religioso, econômico ou militar remonta à política pré-moderna, pré-democracia. Aliás, uma das características da modernidade é justamente a autonomia dos diversos campos sociais.

Para entender a lógica interna de funcionamento do campo político, podemos simplificar à visão clássica de Aristóteles, para o qual política significa tudo aquilo que está ligado à cidade, ao urbano, ao civil, ao público. A política é um campo de disputas e de conflitos entre ideias e sistemas de pensamento, sendo marcada por uma lógica racional de debate argumentativo. Relacionando o conceito aristotélico à democracia moderna de massa, o professor Venício de Lima argumenta que a política contemporânea é o regime do poder visível sobre a coisa pública. A política atual está relacionada a algo público, em oposição ao que é privado, e a algo visível, em contraponto ao que é secreto. Sendo assim, a democracia moderna é um regime de visibilidade, sobretudo midiática, no qual a racionalidade argumentativa e a transparência do poder são atributos essenciais para que o campo político preserve autonomia, legitimidade e eficácia.

Esvaziar a disputa eleitoral de todo o debate racional-argumentativo e desprezar as habilidades próprias da política e da gestão pública, ocupando o campo político a partir de perspectivas religiosas e de sentimentos antipolítica, nos braços de magnatas do mercado privado neófitos da vida pública, pelas vias da judicialização ou sugerindo soluções militares para problemas políticos, não nos parece, nenhum desses, um projeto moderno de gestão do Estado.  A construção do bem-estar social precisa acontecer pelos mecanismos próprios do fazer político:  o debate racional, o confronto de sistemas de ideias, a preservação e o fortalecimento das instituições democráticas, a separação dos poderes, a reforma do sistema político-partidário, com o resgate e a reconstrução dos partidos, o acesso à informação pública, a transparência e a fiscalização popular no exercício da gestão do Estado e da representação parlamentar, a alfabetização política, a maior emancipação e participação popular dos cidadãos e entidades civis, o associativismo, o ativismo democrático. Precisamos de mais política, mais democracia. Não de menos. Com política, sempre!