Contemplando as Palavras

O Paiaçu

19 de Maio de 2008, por Regina Coelho 1

Há 400 anos, nascia no subúrbio de Lisboa o menino Antônio, filho de Maria de Azevedo e Cristóvão Ravasco Vieira, alto funcionário da Coroa. Aos sete anos, veio com a família para o Brasil, iniciando seus estudos no Colégio dos Jesuítas, na Bahia. Conta-se que ia crescendo sem nada de inteligente até que um dia, ao rezar à Virgem Maria, sentiu um estalo na cabeça, sucedido de grande dor. E o estalo clareou-lhe as idéias e de medíocre e bronco passou a brilhante e sagaz, para espanto de seus professores e colegas. Reza uma outra lenda que, certa feita, um anjo lhe indicou o caminho de volta à escola quando estava perdido. Pouco antes de concluir o noviciado, Antônio, que contava então apenas dezesseis anos, já desfrutava do prestígio de grande sábio e latinista. Surgia assim a figura daquele que entrou para a história da humanidade como o Padre Antônio Vieira.

Orador sacro, missionário, político e diplomata português, Vieira usou, com igual desembaraço, a batina escura dos jesuítas e as sedas vermelhas dos embaixadores, pregou aos nobres, colonos e índios, fazendo-se por todos entender. Correu o mundo, de Portugal e do Brasil à França, à Inglaterra, à Holanda e à Itália; entrou nos palácios com a mesma segurança que explorou as selvas. Nasceu na primeira década de um século e só morreu na última e, em toda a sua vida e em todo o seu tempo, não houve em Portugal quem a ele, em brilho, fizesse sombra. Lutou contra a escravização dos índios num tempo em que a escravatura era encarada como coisa natural e até mesmo necessária. Defendeu a liberdade religiosa numa época de intolerância em que os suspeitos de não professarem a fé eram condenados pela Inquisição, no Tribunal do Santo Ofício. Homem alto, severo, com uma coragem rara, o “Paiaçu” (grande padre / pai, em tupi), que era como os índios o chamavam, fez do púlpito sua tribuna.

“O púlpito, no tempo de Vieira, era mais de uma vez a válvula de escape do comentário político, sendo com freqüência o sermão o equivalente aos editoriais da imprensa do nosso tempo, de defesa ou de ataque em face da situação, do fato, da providência governativa.” – (Hernâni Cidade) – E os sermões (quase duzentos) constituem o melhor da obra produzida por Vieira. Essas pregações religiosas refletem a essência do estilo barroco: a tentativa de expor uma síntese da dualidade do homem, ser composto de matéria (corpo) e espírito (alma). E dentro desse espírito, esse português meio brasileiro jamais se absteve das grandes questões cotidianas e políticas do seu tempo, sempre defendendo as posições da Companhia de Jesus.

Respeitado, temido e mesmo odiado, padre Antônio Vieira mereceu do papa Clemente X a seguinte observação: “Devemos dar muitas graças a Deus por fazer este homem católico, porque se não o fosse, poderia dar muito cuidado à Igreja de Deus”.

E vai aqui uma boa dica de leitura em que Vieira é personagem: o romance histórico “Boca do Inferno”, de Ana Miranda, publicado em 1989 pela Companhia das Letras.


ALMA DE ARTISTA

NÃO VAI SAIR DESSE JEITO, NÃO. VAI SAIR COMO EU VEJO O SANTO, NA MINHA CONSCIÊNCIA” – era essa a advertência do artista a quem lhe encomendava um trabalho. Valcides Mayrinck Arvelos, 81 anos, o escultor em questão, iniciou seu ofício ainda menino. Com um canivete e um formão, começou a fazer carrinhos-de-boi, jipes, cachorros, cavalos e pássaros. O pai, “seu” João Praxedes, perdeu o aprendiz de barbeiro, mas Resende Costa ganhou o talento artístico de um homem que aprendeu sozinho a transformar madeira (sempre o cedro) em belíssimas peças sacras. A primeira delas foi um Nosso Senhor dos Passos, imagem inspirada num singelo santinho de Primeira Comunhão. Em 1972, veio o reconhecimento público através da revista VEJA. A matéria destaca seus primeiros contatos com a arte, como uma visita à Igreja Nossa Senhora do Carmo, em São João del Rei.

Valcides hoje está doente e não mais trabalha. Recebe os cuidados da família, especialmente da Ana Rita, que zela pela saúde precária do irmão e guarda com carinho material ligado a ele (fotos, recortes de jornal e revista, registro de fatos alusivos à sua trajetória profissional...). Com a valiosa colaboração dela, pude conversar com Valcides. Confira.


Destaque da fase inicial

“Foi um quadro em alto-relevo de Nossa Senhora do Carmo, que deu de presente para sua irmã,a Carminha, casada com José Ramos de Melo.”


A comercialização das peças

“Foi através de seu primo (Padre Jairo) e sua amiga (Olga Gutierrez), para os quais fez vários trabalhos”.


O destino das peças

“Belo Horizonte, Juiz de Fora, Rio de Janeiro, São Paulo, Barbacena, Lagoa Dourada, Nova Serrana, Lafaiete, São João del Rei, Piedade do Rio Grande, Baependi, Brasília, cidade paulista de Queluz, Tiradentes, Rio Grande do Sul, entre outras localidades de que não se lembra no momento. Aliás, não se pode esquecer do Vaticano (Roma).”

OBS. _O texto acima faz referência ao Vaticano, onde no dia 17/08/1998 o Padre Antônio Gonçalves (BH) passou “às mãos do Papa João Paulo ll uma imagem de Nossa Senhora da Boa Viagem esculpida pelo mineiro de Resende Costa,Alcides Arvelos”.


A peça de maior valor estimativo

“Uma Santíssima Trindade, que se encontra em Tiradentes.”


Suas obras em Resende Costa

“Na matriz de Nossa Senhora da Penha, na casa do Dr. Geraldo Melo (que o chama de mestre), na casa da Regina do Pimpa, na casa da dona Marizica, na casa da Naná (viúva do saudoso Hugo do Antônio Honório), no Barracão (capela), em Jacarandira, no Lar São Camilo de Lélis (um Cristo crucificado)...”

Quando perguntado se acha que seu trabalho é valorizado, Valcides se cala por um momento, para em seguida citar os nomes dos saudosos padre Laurinho (filho da dona Ester e do “seu” Alfredo Pinto) e do monsenhor Nélson, lembrando que foi muito valorizado por ambos.

“NÃO VAI SAIR DESSE JEITO, NÃO. VAI SAIR COMO EU VEJO O SANTO, NA MINHA CONSCIÊNCIA.” Não há mesmo palavras mais felizes para definir o dom de alguém que, autodidata, é criador sensível de uma arte sem igual.