Crônicas do Cotidiano

A azeitona

07 de Junho de 2008, por Rafael Chaves 0

Acordou sentindo o frio enevoado que soprava janela adentro do seu quarto naquela manhã de inverno. Aconchegou-se debaixo das cobertas puxando-as até o pescoço e deitou-se em decúbito dorsal (de barriga para cima): era preguiça de se levantar! Conferiu o relógio de pulso e se aprouve do atraso da hora. Tinha tempo. Cruzou então as mãos por baixo da nuca, e as pernas, mirou o teto e deu para reminiscências.

Viu-se com cinco anos de idade mamando café com leite morninho numa mamadeira improvisada: uma garrafa de vidro com um bico vermelho de látex inserido no gargalo. A camisa semi-abotoada não impedia sua barriga protuberante de lombrigas de mostrar-se para quem quisesse ver.

Ao se lembrar das lombrigas lembrou-se também do lombrigueiro, da mistura - sal amargo? óleo de rícino? sal de glauber? - que sua mãe resolvera meter goela abaixo de todos naquela tarde quente. Tratamento de choque! A turma se juntou no caramanchão para o sofrimento sincrônico e compartilhado, estirados no chão, a se contorcer de dores e revoluções abdominais, suando bicas. As lombrigas, se morreram, foi por causa do intenso movimento peristáltico dos intestinos que as surraram até o aniquilamento!

Lembrou-se que corria das picadas das abelhas - havia um enxame delas no quintal de sua casa - mas também do favo de mel na época da colheita. Pensou que a vida é assim, feita para se fugir da dor e, em alguns momentos, saborear o prazer.

Durante algum tempo acreditou que azeitona era carne. No dia que tinha azeitona no prato não tinha carne. Então ligava uma coisa à outra. E tinha também a textura e o gosto peculiar da azeitona: aquilo definitivamente não era um vegetal! E ficou imaginando um bicho qualquer de onde brotasse azeitonas ao invés de pêlos. À medida que iam nascendo e crescendo iam sendo tosadas... e comidas.

Recordou-se indo para a escola dentro do par de sapatos de borracha. Do sonho que tinha de ter um conga, ou um bamba, quiçá um kichute. Os pés, sem meias, suavam dentro dos sapatos invariavelmente trincados no calcanhar. Enquanto andava, shilept shilept shilept do suor lamoso dos pés dentro dos sapatos e do chulé. Riu-se das vergonhas que passara quando tinha que tirar os sapatos na frente de estranhos. Em casa não tinha problema, porque em casa todos já se haviam acostumado com os odores dos sapatos uns dos outros. Também pudera, era o mesmo odor fétido provocado pela mesma colônia de bactérias, saudáveis do mesmo caldo de cultura.

E reviveu o dia em que chegou todo engomadinho na escola, feliz da vida, com as roupas novas de segunda mão que ganhara de alguém lá do Rio de Janeiro. Mal chegara e fora objeto da chacota dos colegas “aí, heim, usando roupa de menina”. É que a camisa e a calça tinham a abotoadura e braguilha do lado direito sobre o esquerdo e, portanto, eram camisa e calça de mulher. A sua felicidade restou vermelha de humilhação. Nunca mais usou aquelas roupas e passou a conferir todas as outras que ganhou dali em diante, principalmente as originárias do Rio de Janeiro.

Creu que fora por causa dessa ou de outras que se limitara a ser apenas um bom jogador de ping pong, um esporte individual, solitário. Desse modo travava uma batalha consigo, de si para si, sozinho, separado e sem crítica externa.

Algum barulho lhe chamou a atenção e conferiu novamente o relógio. Estava mais que na hora de se levantar para ir para o trabalho. Levantou-se e tomou banho, como sempre. Escolheu no guarda-roupa as suas melhores, mais bonitas e mais caras roupas para sair naquele dia. Conferiu a abotoadura da camisa e da calça, para confirmar se eram mesmo masculinas (trauma de infância!). Selecionou seu melhor par de sapatos. Perfumou-se de Armani. Ajeitou e tomou um café da manhã farto de frutas, sucos, cereais, pães, geléias, bolos, o quê pudesse, o quê tivesse - e tinha!

Saciado, encaminhou-se até a porta. Estava quase atrasado para o trabalho. Antes de trancá-la cismou de voltar. Abriu a geladeira, pegou uma azeitona graúda, colocou-a na boca e fechou os olhos, absorto - talvez quisesse conferir se azeitona era carne mesmo ou não!

Foi-se.

Para o José Maria Rabelo, um companheiro de infância que tive a grata satisfação de reencontrar.

A academia

19 de Maio de 2008, por Rafael Chaves 0

Outro dia fui ao cinema, no shopping, em São João del Rei. É meu esporte favorito (ir ao cinema, não ao shopping, viu? E não tanto quanto o é para a Carina Bortolini), embora a modernidade - leia-se fita vhs e, depois, o dvd - tenham me deixado muito sedentário! Porque esporte, no sentido figurativo usado aqui, é entretenimento, prazer... Esporte não precisa ser necessariamente - graças a Deus! - futebol, vôlei, ciclismo, musculação, basquete ou qualquer outro tipo de atividade física. Em resumo, pode ser uma atividade mental - mas que lhe dê satisfação, é claro! E enquanto eu aguardava a hora do início do filme, fiquei recostado num canto e entretido vendo o pessoal malhar na academia.

Academia?! Intrigou-me de início esse nome! (Eu ali, no saguão do shopping, diante das minhas abstrações...). Desde quando os atletas - ou pretensos atletas, porque lá há muitos gordinhos como eu - usurparam e apropriaram-se da “akademia”, a de Platão, escola destinada a estudos e divagações filosóficas e que depois estendeu sua semântica para as faculdades, universidades, agremiações ou sociedades de caráter científico, literário ou artístico? Mas sempre, convenhamos, com este sentido intelectual... Talvez tivessem feito como nós, cinéfilos, que nos apropriamos do “sport”.

Mas foi aí que, surpreendentemente, no entremeio de minhas divagações acadêmicas, que vi uma cena insólita, pelo menos para mim. Uma balzaquiana formosa caminhava desesperadamente e suando bicas enquanto folheava alguma coisa. Caminhava parada - coisa que a modernidade permite - porque o que realmente andava era a esteira embaixo dos seus pés. Estaria ali a explicação para a academia? Ou seja, as pessoas iam à academia para aumentar seus conhecimentos e desenvolverem seu intelecto e, de quebra, aproveitavam para cuidar dos seus físicos?

Uma clarividência tomou conta do meu espírito, como se eu “eureka” tivesse descoberto, finalmente, a razão de a academia ter sido transferida para os ginásios esportivos. Não havia mais razão para eu implicar com o emprego do substantivo para designar os lugares onde as pessoas cuidavam do corpo físico. Ali estava a sublimação plena, o exercício perfeito, a experiência excelsa! Mens sana in corpore sano!

Olhei ao redor, por dentro da academia. Um outro corria também desesperadamente na esteira enquanto conversava com alguém do seu lado, em outra esteira. A conversa parecia animada de modo que um ou outro arriscava a vida e soltava a mão do apoio para gesticular emprestando ênfase à sua opinião. Talvez discutissem alguma solução para alguma de nossas agruras, assim como faziam Platão e seus discípulos, pensei. Mais adiante um outro pedalava (também sem sair do lugar) vertendo suor enquanto via e ouvia - com um fone de ouvido, coisa da modernidade - televisão. O suor escorria-lhe pela testa quase a ofuscar o brilho dos seus olhos cravados na TV. Deve estar vendo algum documentário, no mínimo um noticiário, pensei.

Saí de onde estava e fui ver de perto a balzaquiana, aquela mesma que me chamou a atenção pela plástica e por estar folheando alguma coisa e que, objeto do meu empirismo, tinha me feito chegar a essas conclusões... Queria me redimir, pedir-lhe perdão pelas coisas que algum dia, precipitadamente, concluí sobre academia de ginástica e pessoas “malhadas”. Acheguei-me pelo corredor e estacionei exatamente atrás dela, por detrás do vidro que blindava a academia. Ela era mais linda que me parecera inicialmente. Caminhava ainda freneticamente. Em frente dela uma revista, que folheava. De repente foi diminuindo o passo até que a esteira parasse. Apanhou a revista e desceu da esteira. Pude ver a capa: CARAS!

Entrei para o cinema!

Continuamos em campanha por um monumento em homenagem aos ex-combatentes de Resende Costa