De um ponto de vista

Posse na Academia Brasileira de Letras

21 de Setembro de 2022, por João Bosco Teixeira 0

Tomou posse na Academia Brasileira de Letras o grande brasileiro EDUARDO GIANNETTI.  Não resisti à tentação de transcrever os três minutos finais de seu discurso.  Beleza literária aliada a uma declaração de confiança no Brasil, a despeito de momentos turvos que vamos vivendo. Eis suas palavras:

 

“É difundida a crença de que a idade nos torna conformistas, céticos e resignados diante da realidade como ela é. Na mocidade combatia, na maturidade passou a sorrir com descrença.

Se é o caso para a maioria, não sei dizer. Mas de uma coisa estou certo: seguramente, não é o meu caso. Ao contrário, sendo que os anos acirraram em mim a revolta com as injustiças da vida brasileira e, sobretudo, avivaram a esperança e a fé radical em nosso futuro.

O Brasil desceu aos infernos: a democracia afrontada, a obscena desigualdade agravada, a floresta violentada. Extraviamo-nos a tal ponto, creem alguns, que, talvez, tenhamos perdido, e de vez essa vez, o caminho. Quem poderá saber?

O amor, porém, é ilógico. É Colombo ao ousar o desconhecido; é
Aleijadinho, Machado, Pelé.  A África em nós. Daí a minha crença inabalável, no anacronismo/promessa chamado Brasil. Mais cedo, talvez, do que imaginamos, vamos virar a página e reencontrar, revigorados, o caminho. Às vezes, é preciso descer aos infernos para que possa romper amanhã. O Brasil, quero crer, está grávido no limiar de um parto temporão de cidadania.

O Espírito, como o vento das grandes mudanças, sopra onde quer, quando quer e para onde quer. O que aí está, a apodrecer a vida, não pode durar porque não é nada. Quando muito é estrume para o futuro.

Vocês sabem do que eu estou falando.

O mal existe no mundo para despertar ação, não o desespero; estimular engajamento, não indiferença; suscitar compaixão, não cinismo. Tudo o que já foi é embrião do que vai vir. Esperança agreste a brotar do fel do desespero.  Desencanto, reencanto. Desengano, reengano

O Brasil tem sede de futuro. A biodiversidade da nossa terra, a sociodiversidade de nossa gente, afro-euro-ameríndia são os principais trunfos brasileiros diante de uma civilização em crise. O futuro se redefine sem cessar. Ele responde à força e à ousadia do nosso querer.

Queiramos: onde cresce o perigo, cresce também o que salva.

 

Obrigado pela atenção!”

 

Essas não são palavras de desânimo. São palavras alentadas pela confiança no país que, “descido aos infernos”, encontrará caminhos e, sobretudo, pessoas capazes de ajudar a construirmos uma aurora luminosa para o amanhã.

 

(Nota) Acabo de assistir à entrevista que o Presidente Bolsonaro concedeu à Rede Globo. Fiquei envergonhado com o comportamento de jornalistas experientes, que pensei maduros. A conversa, que entrevista não foi, se deu com o Presidente, a quem se quer se dirigiram assim, e não com um candidato, de quem se poderia indagar sobre o plano de governo. Uma vergonha. Um tribunal a fazer inveja a tantos tribunais ditatoriais a que a história já assistiu.

Peculiaridade

17 de Agosto de 2022, por João Bosco Teixeira 0

Era lá em Assunção. As reuniões do Mercosul Educacional haviam terminado. Tínhamos chegado a um acordo sobre o credenciamento de universidades dos quatro países que dessem diplomas de graduação válidos para todo o Mercosul. O clima era de comemoração. Aconselhados pelos paraguaios, dirigimo-nos a um bar/restaurante. No ambiente campestre, o arvoredo quase impedia acompanhar o movimento da lua. No entanto, a noite estava bonita como uma fruta. Além da nossa comemoração, o local acolhia gente, abundando pelos espaços para comemorar alguma outra coisa.

A presença de um conjunto musical, que cantava alegremente, caracterizou melhor aquela noite. Um participante da banda, sabedor de que havia brasileiros presentes, dirigiu-nos palavras amistosas, em português razoável, mas sotaqueando. E anunciou um samba em nossa homenagem. Apesar da boa vontade, o samba saiu bem quadrado. Isso não impediu que aplaudíssemos, agradecidos, dada a dificuldade que tinham com nosso ritmo peculiar.

Ao depois, porém, voltaram a cantar suas melodias paraguaias, cheias de simplicidade, num espanhol, muitas vezes guaranizado, o que os enche de orgulho. Afinal, o guarani também é língua oficial no Paraguai, ao lado do espanhol. Como não podia deixar de ser, as guarânias se sucediam. Cantavam com absoluta naturalidade, transpirando alegria nos rostos arredondados. E, então, foi-nos fácil concluir: o samba que cantaram para nós era bem melhor que as guarânias que cantamos por aqui. Cantam com absoluta leveza, suavidade, e quase não se percebe a marcação do tempo. Nosso cantar da guarânia costuma ser marcado, duro, priorizando o ritmo. Tão marcado e tão duro quanto duro e marcado o samba que eles nos ofereceram.

Pessoas ligadas à música sabem que nós, latino-americanos, pensamos executar bem as valsas de Strauss. E pode até ser. Mas interpretá-las como os vienenses, inútil esforço. Para nós, as valsas são compassos ternários e ponto. Para eles, são livres expressões de melodias leves, em ternários, sim, não porém comandadas pelos três tempos. Os tempos são soltos, superados. Imperceptíveis.

A título ainda de caracterizar o típico de cada gente na sua fala, lembro-me da vice-presidente do Paraguai, àquela época a que me referi. Ela havia feito o mestrado em Educação na Universidade de Brasília. Apesar da convivência com os brasileiros, não conseguia diferenciar o “O” nas palavras: avô e avó. Fazia todo esforço e tudo era “AVÔ”, bem fechado. Desanimada, só encontrou consolo quando observou que nós, brasileiros, não conseguíamos pronunciar o “Y” que aparece, por exemplo, na palavra Ypacarai. O “y” tem um som gutural que para a maioria esmagadora dos brasileiros é impossível emitir.

Guimarães Rosa, o viajor juramentado que, para bem narrar uma viagem, quase que tinha necessidade de inventar a devoção de uma mentira, põe na boca de um de seus personagens: “Debaixo do alheio um homem não se rege”.

O que é típico de um povo ou é seu, ou é de um povo que não é.

Declarações e conversas

21 de Julho de 2022, por João Bosco Teixeira 0

Aprecio bem certas falas.

- Neto, de dez anos, conversava com o avô que segurava na mão o celular: Vovô, não chama isso de telefone não, vovô; isso é celular, que serve até para telefonar, mas não é telefone não. E, depois, acrescentou: Vovô, acho vocês muito esquisitos; vocês ligam para as pessoas sem saber se elas podem atender. Manda um zap antes, perguntando se pode ligar.

- Em reunião de família católica, a mãe dizia que não suportava mais ir à igreja para ouvir os padres. Uma das filhas presentes diz: Mamãe, você já sai de casa reclamando dos padres. Se você vai à igreja por causa dos padres, alguma coisa está muito errada, não?

- A comadre encontrou o compadre, depois de muito tempo. Ficou impressionada: era um homem alegre, cheio de vida; agora anda carrancudo. Ô compadre, você está doente? - Por que? indagou ele. Estou te achando meio triste. - Não, comadre, é porque agora sou crente, me converti. Uai, compadre, conversão que não traz alegria não é verdadeira não.

- Na roda de bar, um cidadão se orgulhava, seguidas vezes, de contar um fato escandaloso, sem citar o protagonista. Cansado dessa situação, um amigo virou-se para ele e disse: Tudo pela metade é verdade, mas é mais fácil de ser mentira também.

- O colega se orgulhava de não acreditar mais em Deus, nem nos santos, nem em coisa nenhuma. O amigo, ouvindo aquilo, indagou: Com todo respeito, em quê que você crê agora que deixou de acreditar?

- Oh! Quer saber. Eu não ando me preocupando com mais nada. Acho que está tudo tão doido que não ligo mais para nada. O outro, ouvindo isso falou: - Mas, se você perdeu a razão de viver, a partir de onde orienta sua vida?

- Outro cara se orgulhava de descrer disso, daquilo, de tudo enfim. Mas continuava a falar sobre todos os assuntos. Um colega atento, quando teve oportunidade falou: Eh! Passamos de uma sociedade de crenças para uma sociedade de opiniões, não é?É bom, porque assim cada um fala o que quer.

- Ainda no bar. Um frequentador se orgulhava de não ligar mais para Deus, cansado de decepção. Entendo o que você está dizendo, interagiu um colega. Para você a vida sem Deus seria mais livre, não é? Deus é um estorvo que o impede de viver prazerosamente, não? Deus inimigo de sua felicidade. Ruim, hein?

- A esposa quis acompanhar o marido na consulta médica. Lá pelas tantas, indagou do profissional: não é verdade, doutor, que quem toma este remédio que o senhor está receitando tem que tomar um diurético? O médico respondeu: Neste dia eu matei a aula, minha senhora.

Ministro do Supremo Tribunal Federal fazia conferência nos EE.UU. Chamado de mentiroso por pessoas do público, não titubeou em dizer que “Um dos problemas que estamos enfrentando no Brasil é um déficit imenso de civilidade”.

Declaração? Conversa? Não, autoconfissão.

Definidores de terceiros

22 de Junho de 2022, por João Bosco Teixeira 0

Na edição passada, falei de meu espanto com o descompasso ocasionado por tantas pessoas que têm a mania de definir terceiros dizendo: você é isso, você é aquilo. Instado, volto à matéria.

Entre os variados significados de “definir”, encontram-se: estabelecer limites, delimitar, decretar.

Ora, se o que se quer “definir” é algo demonstrável, tudo bem. Pode-se perfeitamente definir a distância entre dois pontos, a altura de uma árvore, o tempo a se empregar no percurso de uma estrada. Outras definições apresentam-se mais difíceis. E complexa, entre todas, aquela de definir uma pessoa.

Os psicólogos, quando instados por alguém na busca de esclarecimento de algum comportamento estranho, servem-se seja de variados recursos tecnológicos, seja da própria sensibilidade aplicada na escuta da pessoa em questão. Ao final de procedimentos mais ou menos longos e elaborados, concluem, quase sempre, com palavras assim: “parece tratar-se disso ou daquilo”; “tudo indica que estamos diante de um quadro assim, assim...” Isto é, definir uma pessoa é tarefa complexa, mesmo para especialistas, com êxito nem sempre alcançável.

Por que, então, pessoas se põem a definir terceiros com tanta facilidade? No artigo anterior, relatei as expressões com as quais a sabedoria popular qualifica tais indivíduos. Hoje acrescento meu entendimento da matéria, sempre “de um ponto de vista”.

As pessoas costumam definir seus interlocutores, geralmente, em discussões variadas. O que ocorre é: escapa aos definidores a clareza sobre o que se discute; faltam-lhes argumentos para a defesa de suas posições. Então, abreviam as conversas dizendo: “Você é isso, você é aquilo.”

Encerra-se, assim, uma discussão porque a pessoa definida dirá: “Se você acha que sou isso ou aquilo, por que falar comigo?”

Mais ainda: as tais pessoas definidoras de terceiros não conseguem, não gostam de se expor, de falar de si mesmas. E, então, falam dos interlocutores. É-lhes muito difícil dizer: “penso assim”, “gosto disso”, “acompanho aquilo”, “torço por tal êxito”. Nessa maneira de se expressar, as pessoas se expõem, porque quem diz de que gosta, quem diz como emprega a própria vida, está dizendo que pessoa ela é. Ora, para se expor é preciso ter de si mesmo uma boa imagem, é preciso não ter vergonha de dizer o que pensa, o que sente, como vive. O definidor de terceiros, normalmente, não tem boa autoestima. Não se expõe.

Há ainda um aspecto. Definir uma pessoa é enquadrá-la, é “delimitá-la, é decretar” quem ela é; é dizer que ela é incapaz de considerar alternativas, que não admite visões diferenciadas das questões, que vive enclausurada em si mesma, que é incapaz. A pessoa que define, por sua vez, se julga superior a ponto de dizer o que é certo e o que não é, o que convém ou não convém e tudo mais. 

Além do mais: “Só Deus conhece os corações” (1Rs 8,39).

Ando espantado

18 de Maio de 2022, por João Bosco Teixeira 0

Ando espantado com algumas coisas. Uma, em particular: a facilidade com que a gente anda definindo uns aos outros por meio de palavras chulas, deselegantes, quando não ofensivas.

Com que facilidade se fala de terceiros! Basta que alguém pense diversamente de outrem para que se deem início às ofensas definidoras de caráter; para que se diga que fulano é um delinquente, um corrupto, seja ele um Ministro de Estado, um governante eleito por milhões de votos ou um simples colega, companheiro de rua, de boteco.

A sabedoria popular define muito bem esse tipo de gente. Diz que isso é coisa de gente que só fica pensando “no oco da cabeça”. É coisa de gente para quem os outros “ou são angu ou são farinha”; gente metida a ver a garapa ainda na cana; gente que mal enxerga as pessoas e já imagina coisas; gente que gosta de “falar pra fazer momento”; gosta de incomodar os outros com perguntas sem se interessar pelas respostas; gente que, porque não consegue manter palavra “no auge da conversa”, ofende e se retrai; gente que tem “um susto guardado dentro de si”. Enfim, coisa de um legítimo “desenroupado” que, incapaz de dar seu acordo “sem metades”, sai a empinar insultos. É muita pobreza ofender, como diria Vieira, em todos os tempos e modos, em todos os lugares e circunstâncias.

Quanta sabedoria na linguagem popular para caracterizar esse desprezível comportamento de falar dos outros! Quanta sabedoria em pensar que se pode chupar a mesma laranja, deixando a cada qual o direito de sentir um gosto diferente!

Vai se dizer que isso não é de hoje. De fato, tudo isso sempre aconteceu, em ambientes caseiros, nos cantos de cozinha, nos botecos da vida, nas esquinas e quebradas. Sempre se falou dos outros. Vejo, todavia, uma novidade: tudo era à meia voz, ao pé do ouvido, quase com vergonha de dizer certas coisas. Hoje, não, é às claras, por escrito, no duro das letras impressas, aqui e acolá, privilegiadamente nas tais redes sociais, pra todo mundo saber.

Parece não se aceitar mais o “cuide cada um de si e já não será pouco”. É tal o descompasso dessa mania de definir ofendendo, ou ofender definindo, que, segundo ainda a sabedoria popular, teria sido melhor Deus botar “os cegos no mundo para vigiar os que enxergam”.

Estamos esquecidos de que a linguagem nasceu das emoções de amor. E que, portanto, o que conta é realizar um percurso tal na vida que seja capaz de permitir às pessoas encontrarem-se sem pudores, na liberdade. Que as teorias professadas pelas pessoas não as impeçam de ouvir, de estar, de ser. E que a falta das teorias, não as impeça de enxergar.

Vale a pena lembrar Garaudy: “Ao invés de querer converter, quer dizer, de querer reduzir o outro a mim, possa eu aprender a crescer junto.”