Voltar a todos os posts

Carne seca, de sol, de sereno ou charque?

14 de Maio de 2015, por Cláudio Ruas

Nem só de frescor vivem os ingredientes ideais para consumo. Se até o peixe fresco, que foi o assunto da nossa última prosa, pode vir a ser salgado e curado, as carnes - sobretudo a bovina - são deliciosamente transformadas nesse processo milenar de conservação alimentar. Mas até hoje os métodos e seus produtos finais ainda geram uma confusão conceitual, que tentaremos dessalgar a seguir.

A carne de sol é tradicional do nordeste brasileiro e do norte-nordeste mineiro, regiões de clima seco e quente, que favorece o processo de cura. O principal diferencial em relação à carne seca e ao charque é a menor quantidade de sal e o menor tempo de secagem.

É, portanto, uma carne mais suculenta e macia. Não precisa ficar de molho para dessalgar (basta uma lavada) nem de longo cozimento. Geralmente é feita com partes mais “nobres” do boi, que são talhadas, salgadas e postas a secar no... sereno! Com o tempo a secagem ao sol foi sendo substituída pelo sereno da noite, ou melhor, pelo vento e a temperatura amena do período noturno. Daí a denominação “de sereno” ou “serenada” aqui em Minas, e “de vento” no nordeste. Sol mesmo só no lombo do vaqueiro.

Também habitual no nordeste brasileiro, a carne seca se confunde mais com o charque do que com a carne de sereno. É bem mais salgada que essa e ainda pode tomar sol de verdade. São cortadas em grandes mantas, salgadas e empilhadas umas sobre as outras, para que o peso das de cima ajude no processo de expulsão dos líquidos.

Já o charque é tradicional do sul do país, herança do costume dos pampas e dos nossos vizinhos indígenas andinos, que até hoje salgam a carne de lhama dessa forma. A diferença em relação à carne seca está na quantidade maior ainda de sal e de exposição para secagem. Costumam também serem usados cortes mais gordos.

Apareceu ainda no mercado outro produto para aumentar a confusão: o jerked beef. Devem ter colocado esse nome estrangeiro para parecer mais chique (coisa típica da pobreza de espírito brasileira). O que se vende aqui – diferente da versão americana - nada mais é do que um charque. Porém, acrescido de conservantes para ficar vermelhinho e durar mais, e embalado a vácuo.

Apesar das confusões conceituais, uma coisa é certa: todas essas carnes são muito interessantes, versáteis e apreciadas. Tiveram sua vida prolongada e suas características alteradas, ganhando um bônus para compensar a perda da suculência, que é a concentração de sabor. A água se vai e os sabores ficam mais destacados. Permite-se também um melhor desfiamento, ideal para preparos de recheios, como num escondidinho. Bom também para render a carne e compartilhar melhor seu sabor com os demais ingredientes vizinhos, como o arroz do carreteiro (o carreiro do sul) e a farinha da paçoca de carne no pilão.

No entanto, o preparo dessas carnes – à exceção da serenada - demanda uma tarefa às vezes tormentosa que é a dessalga. Não que seja difícil, mas requer tempo e cuidado para que seja feita na medida certa. A forma clássica e ideal é cortá-la em cubos médios, dar uma boa lavada e deixar de molho em água abundante por doze horas na geladeira, trocando a água a cada três. Se a pressa não deixar, pode também ser fervida por alguns minutos umas quatro vezes, sempre trocando a água. E tem gente que ainda usa uma técnica maluca em que é adicionado sal no cozimento para dessalgar (bruxaria pura!).

Depois de dessalgada, basta cozinhar por meia hora na pressão, desfiar e refogar com cebola e um quiabinho. Aproveita-se ainda o caldo do cozimento para fazer o arroz ou cozinhar o legume-base do escondidinho, que fica muito bom com baroa ou um angu molinho.

 

Já o bom da carne serenada é a possibilidade de fazê-la em casa, somente na geladeira: faça uns talhos na carne (o contra filé é uma boa), esfregue bem o sal fino (mais do que usaria para o tempero normal), enrole bem em um plástico e deixe curar na gaveta do fundo por três dias. Fica ótimo, embora a melhor receita, sem dúvida, é carrear pras bandas de cima de Minas e se esbaldar de carne e de sol no sertão de Mirabela.

Deixe um comentário

Faça o login e deixe seu comentário