Nem só de frescor vivem os ingredientes ideais para consumo. Se até o peixe fresco, que foi o assunto da nossa última prosa, pode vir a ser salgado e curado, as carnes - sobretudo a bovina - são deliciosamente transformadas nesse processo milenar de conservação alimentar. Mas até hoje os métodos e seus produtos finais ainda geram uma confusão conceitual, que tentaremos dessalgar a seguir.
A carne de sol é tradicional do nordeste brasileiro e do norte-nordeste mineiro, regiões de clima seco e quente, que favorece o processo de cura. O principal diferencial em relação à carne seca e ao charque é a menor quantidade de sal e o menor tempo de secagem.
É, portanto, uma carne mais suculenta e macia. Não precisa ficar de molho para dessalgar (basta uma lavada) nem de longo cozimento. Geralmente é feita com partes mais “nobres” do boi, que são talhadas, salgadas e postas a secar no... sereno! Com o tempo a secagem ao sol foi sendo substituída pelo sereno da noite, ou melhor, pelo vento e a temperatura amena do período noturno. Daí a denominação “de sereno” ou “serenada” aqui em Minas, e “de vento” no nordeste. Sol mesmo só no lombo do vaqueiro.
Também habitual no nordeste brasileiro, a carne seca se confunde mais com o charque do que com a carne de sereno. É bem mais salgada que essa e ainda pode tomar sol de verdade. São cortadas em grandes mantas, salgadas e empilhadas umas sobre as outras, para que o peso das de cima ajude no processo de expulsão dos líquidos.
Já o charque é tradicional do sul do país, herança do costume dos pampas e dos nossos vizinhos indígenas andinos, que até hoje salgam a carne de lhama dessa forma. A diferença em relação à carne seca está na quantidade maior ainda de sal e de exposição para secagem. Costumam também serem usados cortes mais gordos.
Apareceu ainda no mercado outro produto para aumentar a confusão: o jerked beef. Devem ter colocado esse nome estrangeiro para parecer mais chique (coisa típica da pobreza de espírito brasileira). O que se vende aqui – diferente da versão americana - nada mais é do que um charque. Porém, acrescido de conservantes para ficar vermelhinho e durar mais, e embalado a vácuo.
Apesar das confusões conceituais, uma coisa é certa: todas essas carnes são muito interessantes, versáteis e apreciadas. Tiveram sua vida prolongada e suas características alteradas, ganhando um bônus para compensar a perda da suculência, que é a concentração de sabor. A água se vai e os sabores ficam mais destacados. Permite-se também um melhor desfiamento, ideal para preparos de recheios, como num escondidinho. Bom também para render a carne e compartilhar melhor seu sabor com os demais ingredientes vizinhos, como o arroz do carreteiro (o carreiro do sul) e a farinha da paçoca de carne no pilão.
No entanto, o preparo dessas carnes – à exceção da serenada - demanda uma tarefa às vezes tormentosa que é a dessalga. Não que seja difícil, mas requer tempo e cuidado para que seja feita na medida certa. A forma clássica e ideal é cortá-la em cubos médios, dar uma boa lavada e deixar de molho em água abundante por doze horas na geladeira, trocando a água a cada três. Se a pressa não deixar, pode também ser fervida por alguns minutos umas quatro vezes, sempre trocando a água. E tem gente que ainda usa uma técnica maluca em que é adicionado sal no cozimento para dessalgar (bruxaria pura!).
Depois de dessalgada, basta cozinhar por meia hora na pressão, desfiar e refogar com cebola e um quiabinho. Aproveita-se ainda o caldo do cozimento para fazer o arroz ou cozinhar o legume-base do escondidinho, que fica muito bom com baroa ou um angu molinho.
Já o bom da carne serenada é a possibilidade de fazê-la em casa, somente na geladeira: faça uns talhos na carne (o contra filé é uma boa), esfregue bem o sal fino (mais do que usaria para o tempero normal), enrole bem em um plástico e deixe curar na gaveta do fundo por três dias. Fica ótimo, embora a melhor receita, sem dúvida, é carrear pras bandas de cima de Minas e se esbaldar de carne e de sol no sertão de Mirabela.