O Verso e o Controverso

A antiga poesia litúrgica católica: “Dies Irae”

18 de Fevereiro de 2021, por João Magalhães 0

Talvez possa interessar a nossos leitores, uma análise de textos poéticos, tantas vezes cantados ou declamados nas cerimônias litúrgicas mais antigas da Igreja Católica. Não vou me ater à poesia bíblica:  salmos, hinos e cantos, mas, sim, a uma poesia litúrgica criada por poetas católicos a partir do século III da era cristã, por exemplo, Santo Ambrósio e São Gregório Magno, e que floresceu copiosamente na Idade Média.

Uma poesia litúrgica como expressão estética de temas teológicos, sobretudo bíblicos. Uma poesia que se impõe por uma qualidade literária muito expressiva que reforça, poética e musicalmente, temas da devoção cristã.

Escreve o Pe. Heitor Pedrosa (“Nos Esplendores da Poesia Litúrgica” - Ed. Íntima -1928): “O acolhimento das letras cristãs na sociedade do século IV é um fato expressivo: por elas muitas almas sentiram a fascinação do Cristo Salvador e procuraram a Igreja. Nestas circunstâncias, as poesias desempenharam missão importantíssima. Por que é que a poesia somente começou no III século? Se são os grandes abalos, as fortes emoções, que fazem desabrochar a flor da poesia, nenhum período mais propício do que o tempo das perseguições. As ansiedades, as separações doloridas, o júbilo das conversões, o encanto das reuniões, a afetividade profunda aos irmãos, as agonias, os triunfos atravessados de dores, a paixão pelo martírio, as despedidas soluçantes, os espetáculos crudelíssimos no Coliseu, as lágrimas no recesso das catacumbas eram potenciais de inspirações felizes e da mais inflamada poesia”!

Alguns desses poemas sagrados cruzaram os tempos e foram e continuam sendo fonte de inspiração para os grandes compositores da assim chamada música clássica ou erudita. Caso do “Dies Irae”, “Te Deum” e “Stabat Mater”. A meu gosto, são joias da poética sagrada. É sobre eles que a coluna versará, trabalhando o verso poético. Uma edição para cada um.

A probabilidade maior é que o franciscano, Tomás Celano (1200-1255), um dos primeiros discípulos de São Francisco de Assis e um dos seus hagiógrafos, seja o autor do “Dies Irae”.

O “Dies Irae”, no entanto, formou-se lentamente. Textos e versos sobre o dia do julgamento final corriam dispersos na liturgia, na Bíblia, nos poetas, nos teólogos. Tomás Celano, bom poeta e escritor, teve a brilhante ideia de reuni-los num poema com 19 tercetos de intenso dramatismo, perfeitamente ritmados e rimados e com a métrica latina do verso troqueu (uma sílaba longa, outra breve).

Ezra Pound caracteriza uma poesia pelo seu grau de logopeia (ideias, reflexões, pensamentos, sentimentos); de fanopeia (visualizações, imagens, espaço, paisagem); de melopeia (musicalidade, ritmo, rimas, aliterações etc.).

O “Dies Irae” preenche tudo isso com excelência. O poema quase todo é uma longa logopeia, lembrando passagens das Sagradas Escrituras: o profeta Sofonias, 1,15 (Dies irae, dies illa), os Evangelhos (Qui Mariam absolvisti et latronem exaudisti..Inter oves locum presta et ab haedis me sequestra: tu que absolveste Maria Madalena e ao ladrão na Cruz ouviste...Coloca-me entre as ovelhas, retira-me para longe dos bodes) e, claro, o Apocalipse 20,12 (Liber scriptus proferetur: O livro escrito será mostrado); textos litúrgicos anteriores, por exemplo, de São Pedro Damião(o quam dira, quam horrenda voce judex intonat: Oh com que voz sinistra e horrenda o juiz pronuncia [sentença]) -  de Santo Anselmo (vix Justus salvabitur: apenas o justo se salvará) -  de São Bernardo (quid in illo die dicturi sumus?: O que diremos naquele dia?) E tantos outros.

E a fanopeia? O juiz de extrema majestade (rex tremendae maiestatis) sentando-se no trono de julgamento; a natureza e até a morte, estupefatas com o ressurgir das criaturas (Mors stupebit et natura cum ressurget creatura); o livro onde tudo está anotado (Liber scriptus proferetur in quo totum continetur).

A melopeia dispensa comentários e demonstrações. Basta observar a cadência, as rimas, o som da trombeta (Tuba mirum spargens sonum per sepulchra regionum: a trombeta espalhando um som assombroso pelos sepulcros das regiões).

 

Letra do poema religioso Dies Irae em versão integral

 

Dies irae! Dies illa (Dia da ira! Aquele dia) /Solvet saeculum in favilla (Em que os séculos se dissolverão em cinzas) / Teste David cum Sibylla! (Como testemunham Davi e a sibyla).

Quantus tremor est futurus (Quanto pavoroso será) /Quando iudex est venturus (Quando o juiz vier) /Cuncta stricte discussurus! / (Julgar tudo rigorosamente).

Tuba mirumspargenssonum (A trombeta entoando um som assombroso) / Per sepulchraregionum (Pelos sepulcros das regiões / Coget omnes ante thronum (Conduzirá todos perante o trono).

Mors stupebit et natura (A morte e a natureza se espantarão/ Cum resurget criatura (Quando ressurgir a criação) / Iudicantiresponsura (Para responder ao julgador).

Liber scriptus proferetur (O livro escrito será trazido) / in quo totum continetur (Em que tudo está contido) / Unde mundus iudicetur (De onde o mundo será julgado).

Iudex ergo cum sedebit (Quando o juiz, portanto, tomar o seu lugar) /Quiquid latet apparebit (Tudo que está oculto aparecerá) / Nili nultumre manebit (Nada impune permanecerá).

Quid sum miser tuncdicturus? (O que eu, um miserável, direi?) /Quem patronum rogaturus(A que patrono rogarei?)/ Cum vixiustus sit securus? (Quando apenas o justo estará seguro?)

Rex tremendae majestatis (Rei de tremenda majestade) / Qui salvandos salvas grátis (Que salvas graciosamente os que devem ser salvos) / Salva me, fons pietatis (Salva-me, ó fonte de piedade)

Recordare, Iesu Pie (Recorda, piedoso Jesus) / Quod sum causa tuae viae (Que sou causa de tua vinda) /Ne me perdas illa die (Não me perca naquele dia).

Quaerens me, sedisti lassus (Buscando-me, sentaste exausto) /Redemisti crucem passus (Redimiste-me, sofrendo na cruz) /Tantus labor non sitcassus(Tanto trabalho não seja em vão!).

Iuste iudex ultionis (Justo juiz da punição) / Donum fac remissionis (Concede-me a remissão / Ante diem rationis (Antes do dia do acerto de contas)

Ingemisco tanquam réus (Gemo como um réu) / Culpa rubet vultus meus (A culpa enrubesce meu rosto) / Supplicanti parce, Deus (Poupa o suplicante, ó Deus)

Qui Mariam absolvisti (Tu que absolveste Maria [a pecadora]) / Et latronem exaudisti (E ao ladrão na cruz ouviste) / Mihi quoque spem dedisti(Também a mim deste esperança)

Preces meae non sunt dignae (Minhas preces não são dignas) / Sed tu bonus facbenigne (Mas tu, que és bom, sê benigno) / Ne perenni Cremer igne (Para que eu não seja cremado no fogo eterno)

Inter oves locum praesta (Dá-me um lugar entre as ovelhas) / Et ab haedis me sequestra (E separa-me dos bodes) / Statuens in parte dextra (Colocando-me à tua direita)

Confutatis maledictis (Condenados os malditos) / Flammis acribus addictis (Lançados nas chamas ardentes) / Voca me cum benedictis (Chama-me para os abençoados)

Oro suplex et acclinis (Rezo a ti, súplice e ajoelhado) / Cor contritum quase cinis (Coração contrito quase em cinzas) / Gere curam mei finis (Cuida do meu fim)

Lacrimosa dies illa (Lacrimoso aquele dia) / Qua resurget ex favilla (Em que ressurge das cinzas) / Iudicandus homo réus (O homem, réu a ser julgado)

Huic ergo parce, Deus (Portanto, perdoa a este) / Pie Jesu domine (Piedoso Senhor Jesus) / Dona eis réquiem (Dá-lhe o descanso).

 

2021: convocação e homenagem

20 de Janeiro de 2021, por João Magalhães 0

Tenho como caraterística, nos momentos finais do ano, fazer uma revisão do espaço onde estão vivendo o meu ser, o tempo e minhas características pessoais. Ou seja, a minha ambiência, os movimentos, portanto, as mudanças trazidas pelo passar do tempo e minhas condições individuais. Resumindo: onde, quando, como.

 

Convocação. Neste momento, em minha frente, o “Programa Nacional de Direitos Humanos” elaborado pela Secretaria Nacional dos direitos Humanos em 1998. Conjuntamente, o pensamento, carregado de emoção, está no falecido 2020. Ano de muito luto. De muito negacionismo. De surpresas vitais. Ano em que os Direitos Humanos foram muito vilipendiados. Ano discípulo dos anos de ditadura: a de Getúlio Vargas e a dos militares de 1964 a 1985!

“Direitos humanos são os direitos fundamentais de todas as pessoas, sejam elas mulheres, negros, homossexuais, índios, idosos, portadores de deficiências, populações de fronteiras, estrangeiros e imigrantes, refugiados, portadores de HIV, crianças e adolescentes, policiais, presos, despossuídos e os que têm acesso a riqueza. Todos, enquanto pessoas, devem ser respeitados, e sua integridade física protegida e assegurada.

Direitos humanos referem-se a um sem número de campos da atividade humana: o direito de ir e vir sem ser molestado; o direito de ser tratado pelos agentes do Estado com respeito e dignidade, mesmo tendo cometido uma infração; o direito de ser acusado dentro de um processo legal e legítimo, onde as provas sejam conseguidas dentro da boa técnica e do bom direito, sem estar sujeito a torturas ou maus tratos; o direito de exigir o cumprimento da lei e, ainda, de ter acesso a um Judiciário e a um Ministério Público que, ciosos de sua importância para o Estado democrático, não descansem enquanto graves violações de direitos humanos estejam impunes e seus responsáveis soltos e sem punição, como se estivessem acima das normas legais; o direito de dirigir seu carro dentro da velocidade permitida e com respeito aos sinais de trânsito e às faixas de pedestres, para não matar um ser humano ou lhe causar acidente; o direito de ser, pensar, crer, de manifestar-se ou de amar sem tornar-se alvo de humilhação, discriminação ou perseguição. São aqueles direitos que garantem a existência digna a qualquer pessoa”.

Passaram-se mais de vinte anos e estamos longe de atingir essas metas, expressas na substanciosa introdução ao Plano Nacional dos Direitos Humanos de 1998. Em alguns casos houve até recuo. Há que se convocar todo brasileiro de boa vontade a batalhar pelos direitos da pessoa. É a única maneira de sanear a poluída atuação de nossa política.

Vamos transformar estas metas num programa de luta neste alvorecente 2021?

 

Homenagem. Em 22 de novembro de 2020, fez um ano de morte do rabino Henry Sobel (1944-2019). Nasceu em Portugal. Educou-se nos EUA. No Brasil, rabino-mor da Congregação Israelita Paulista, destacou-se na luta em defesa dos direitos humanos.

Ficaram marcados para a História sua posição firme, não permitindo o sepultamento na ala dos suicidas do Cemitério Israelita do Butantã, do jornalista da Rádio/TV Cultura, Wladimir Herzog, assassinado pela ditadura (1975) e também o culto ecumênico em sua homenagem na Catedral da Sé liderado pelo trio:  Dom Paulo Evaristo Arns, ele, e o pastor presbiteriano James Wright. Momento tenso. Os arredores cercados pelas tropas do exército. Sou testemunha, pois estive presente na nave da catedral.

Ao aproximar-se a cerimônia da Haskará (cerimônia judaica em homenagem à memória de uma pessoa falecida), seu sucessor na Congregação judaica, rabino Michel Schlesinger, junto com o cardeal de São Paulo, dom Odilo Scherer, deram um testemunho de sua atuação (“Uma só casa de oração” OESP-24/11/2020 A2): “O envolvimento de Sobel em causas humanitárias se estenderia por quatro décadas. Do apoio aos despossuídos da cidade e do campo à defesa de uma solução negociada para o conflito entre Israel e palestinos, Sobel jamais se acovardou. Por isso era recebido e respeitado por todos os presidentes da República, assim como por todos os papas e mesmo pelo líder palestino Yasser Arafat.

Daí a relevância de marcar a Haskará do rabino Sobel com uma iniciativa inter-religiosa, reunindo líderes judeus, cristãos, muçulmanos, budistas, do candomblé e da fé Baha’í.

Uma conversa sobre o Natal

13 de Dezembro de 2020, por João Magalhães 0

O mês de dezembro é muito pontilhado pelos símbolos do Natal: Papai Noel, São Nicolau (em alguns países, Santa Claus, por causa de “Sinterklass”: São Nicolau em holandês), a árvore, as luzes, a estrela e sobretudo o presépio para o Catolicismo.

O Natal deste ano será diferente por causa da pandemia? Sei lá! Nota-se, nos últimos meses, um relaxamento meio generalizado quanto aos cuidados para evitar a propagação da Covid-19.No entanto, deveria ser o contrário, pois o Natal é a comemoração do nascimento, representado pelo nascimento de Jesus. A vida que nasce e renasce. Seus símbolos mostram isso: o velho Noel acarinhando e presenteando uma criança, a árvore florindo e gerando frutos, a luz dos astros sem a qual não existe vida, o menino numa manjedoura que mais tarde, segundo a tradição, dirá: “Eu sou o caminho, a verdade e a VIDA”.

Já a Covid-19...  Apareceu e se inscreveu nos símbolos da morte. Tem sentido você comemorar o Natal, propagando esse vírus?

Há que se revitalizar os símbolos, que são sinais que mexem com o nosso interior, tanto no sentido positivo quanto no negativo, como é a suástica para um nazista e para um judeu. Todo símbolo é sinal, mas nem todo sinal é símbolo. Por exemplo, uma fumaça é sinal de algo que está queimando. Vira símbolo quando vinda de um incenso, levando uma pessoa a uma atitude de veneração, de oração etc.

É neste sentido que a revitalização é necessária. Os símbolos tendem a desgastar-se pela ação dos tempos (E vem a mania do latim: “Tempus edax rerum” – o tempo(esse) devorador das coisas!).

Ultimamente, acho eu, os símbolos do Natal pouco significam. São mais sinais que símbolos. Objetos de decoração, de enfeite, de propaganda e até de competição. Estamos esvaziando seu sentido fundamental.

Precisamos re-simbolizar os sinais de nossas festas. Atualizá-los para que reforcem as atitudes positivas. Por que não montar um presépio, de preferência com o fundo musical da “Missa dos Quilombos”, com texto do nosso “profeta” recentemente falecido, Dom Pedro Casaldáliga?

Neste presépio, o menino Jesus é um recém-nascido negro; sua mãe Maria, uma jovem negra: seu pai José, também um negro. Deu à luz em miseráveis condições (lembro ao leitor que “presépio” vem do latim: “praesepis”, que significa curral, estábulo) devidas ao preconceito racial estrutural que grassa ainda pelo mundo todo e continua matando o povo negro pelas forças policiais, fome, miséria, abandono. E o Brasil não é exceção, mesmo que alguns de nossos governantes digam o contrário!

E finalizo com o nosso genial Machado de Assis, por sinal nada religioso de frequência. Basta ver como se aproveita de um evento do Natal, baseado em lendas, que é a Missa do Galo (conto “Missa do Galo”. Curto, pode-se lê-lo pela internet), para uma reflexão sobre a educação social de sua época: machismo para o menino, subserviência para a menina.

E quanto a seu “Soneto de Natal”:

 

“Um homem – era aquela noite amiga/ Noite cristã, berço do Nazareno/ Ao relembrar os dias de pequeno/ E a viva dança, e a lépida cantiga/

Quis transportar ao verso doce e ameno/ As sensações da sua idade antiga/ Naquela mesma velha noite amiga/ Noite Cristã, berço do Nazareno/

Escolheu o soneto... A folha branca/ Pede-lhe a inspiração, mas frouxa e manca/A pena não acode ao gesto seu/

 E, em vão, lutando contra o metro adverso/ Só lhe saiu este pequeno verso: “Mudaria o Natal, ou mudei eu?”

Machado, acho que não há solução para o problema que você poetizou se os dois não mudarem. O ser humano, como você bem trata na sua obra, vive numa eterna transformação. Vida supõe movimento (“Vita est in motu immanenti”,) que, por sua vez supõe mudança.

Camões: “Mudam-se os tempos, mudam-se as vontades/ Muda-se o ser, muda-se a confiança/ Todo o mundo é composto de mudança/ Tomando sempre novas qualidades”.

Re-significar os eventos sociais e religiosos, ora extirpando suas raízes malignas, ora fortificando-as, quando vitais, é uma necessidade e faz parte da missão do ser humano...  Por enquanto, o único ente capaz de fazê-lo.  E o Natal é um deles.

É o que penso. E você, leitor?

A pandemia e o Cemitério

18 de Novembro de 2020, por João Magalhães 0

Fachada do Cemitério do Carmo, no centro histórico de São João del-Rei (foto Vanuza Resende)

Imagens tristes de escavadeiras fazendo covas nos cemitérios, Brasil afora, no auge da pandemia... sepultamentos sem presença de familiares... caixões lacrados... inexistência de velórios... as pessoas sem poderem despedir-se de entes queridos... impressionam a nação. É um drama humano. Com certeza, a comemoração do Dia dos Falecidos, dois de novembro, sofreu modificações. 

Vamos, antes, ao significado do nome. Cemitério: do grego “koimeterion”, que significa dormitório, local de repouso. Conforme o historiador medievalista belga Michel Lauwers (“O Nascimento do Cemitério – Lugares sagrados e terra dos mortos no Ocidente medieval”), um clérigo italiano do século XI, de nome Pápias, gramático e lexicógrafo, apresentou uma outra etimologia do vocábulo. Derivando, segundo ele, do latim “cinis”: cinza, Daí: “Cinis-terium”. Cimiterium: local onde os falecidos se reduzem a cinza. Pensamento, aliás, muito enfatizado na liturgia católica na Quarta-Feira de Cinzas, após o Carnaval: “Lembra-te, ó homem, que és pó e ao pó retornarás (“Memento homo quia pulvis es et in pulverem reverteris”).

Aproximadamente, a partir do século IX, cria-se na cristandade o conceito de “terra cemiterial” (terra cimiteriata). Terra consagrada, pela Igreja Católica. Campo santo que abriga os restos mortais de seus adeptos.

Estudos antropológicos, arqueológicos e históricos mostram que o culto aos mortos é uma prática universal entre os povos até agora conhecidos. Faz parte da natureza humana, que tem enorme dificuldade de aceitar a própria finitude. Daí o conceito cristão: a vida não é tirada, apenas muda-se (“vita mutatur, non tolitur”).

Os seres humanos buscam meios de permanecer juntos, embora inexista, pela morte, a presença física. E as fórmulas de manifestar sua lembrança, seu afeto, seu orgulho de pertencer ao clã do finado vão desde o sepultamento no piso das habitações até as fantásticas necrópoles, verdadeiros museus ao ar livre.

O culto supõe rito e rito supõe local e participantes. Daí a tríade: Cemitério, terra dos mortos; a igreja ou capela onde os ritos são vivenciados; e o povoamento, terra e habitação dos participantes.

O Cemitério com sua dimensão simultaneamente material (local dos restos mortais), espiritual (fé, orações, homenagens, promessas) e cotidiana (um dia viveram o cotidiano conosco) é uma criação da Igreja Católica, num processo lento, iniciado no século IV e que chega ao auge entre os séculos IX e XI.

Com o tempo, a terra dos mortos ritualmente consagrada e o próprio templo fundem-se. O templo, tornando-se uma extensão do cemitério, honra os falecidos mais ilustres com a permissão de túmulos no recinto sagrado e nos adros. Benfeitores, ao doarem terras à Igreja, punham como condição o abrigo de seus túmulos dentro do templo sagrado.

A sagração tem um efeito importante para a hierarquia católica, pois a Igreja se torna proprietária dos espaços consagrados, sempre mais fortificado pelo seu trabalho de misericórdia, a caritas cristã, em particular no domínio funerário. Por outro lado, afasta os não-católicos que passam a construir os próprios.

Citando Michel Lauwers: “Na sociedade antiga, a sepultura era assunto privado, pertinente às famílias – ou semiprivado, quando era providenciado pelos colégios. Só a inumação dos mais pobres era de responsabilidade das cidades, notadamente por razões sanitárias.”

A Igreja antiga prolongou essa tradição, como testemunha a reflexão de Santo Agostinho (morto em 430): a Igreja “como mãe piedosa assume a responsabilidade pelos fiéis defuntos enquanto ‘os pais, os filhos, os aliados ou amigos’ negligenciam esse dever”, ou como atestam as preocupações do arcebispo de Milão, Ambrósio (morto em 397), cioso em dispor em sua cidade terrenos destinados ao enterro dos pobres”.

Qual será o futuro do cemitério? Ao nascer, praticamente o cemitério extinguiu a cremação no mundo católico, mas a cremação está voltando e com grande adesão. Será o futuro? Difícil prever.

Acho que a atitude mais importante é manter a sacralidade do culto aos mortos. Entendendo por sacralidade momentos de vida em que você transcende, cultiva seu espírito, revitaliza ou reforma suas características de pessoa, vê como anda seu grau de humanismo, revivencia os momentos juntos com aqueles cuja vida na Terra teve fim: os finados.

É o que penso. E você?

As eleições 2020 estão chegando...

11 de Outubro de 2020, por João Magalhães 0

Época de efervescência política. Apesar dos defeitos, feliz o país que periodicamente tem eleições livres.

Começo aplaudindo Thomas L. Friedman, do “The New York Times”: “Para que uma política saudável floresça, ela precisa de pontos de reflexão fora de si mesma. Pontos de referência da verdade e uma concepção de bem comum – explicou o filósofo religioso Moshe Halbertal, da Universidade Hebraica – quando tudo se torna político é o fim da política”. Continua Friedman: “Em outras palavras, quando tudo é política, significa que tudo se trata apenas de poder. Não há centro, há apenas lados. Não há verdade, apenas versões. Não há fatos, há apenas uma competição de vontades”.

Frente às utopias (gr. “u topos”: nenhum lugar) nas falas, propagandas e promessas dos candidatos, aliás, de pouquíssimo crédito, ou quase nenhum, da parte dos eleitores, espera-se que se resulte alguma eutopia (gr.“eu topos”: bom lugar). Esperança frustradíssima, por exemplo, no atual regime governante do país, acho eu.  O que mais surge é uma distopia (gr. “distopia”: mau lugar) atrás da outra.

Tenho dito, por acompanhar tanto tempo os eleitos do país, que um eleito eticamente comportado, que não compra votos, que assume seu cargo tendo em vista o bem-estar coletivo e luta por essa causa até o fim, raramente se reelege. Pior: poucos se elegem se não conseguirem muito dinheiro! Por quê? O cidadão sabe a resposta.

Para haver melhoras substantivas na política das nações democráticas de direito, uma exigência seria fundamental a todo candidato: uma Ética Social inabalável. Melhor dizendo, jamais violar os princípios da Ética Social que podemos concentrar em 6: Dignidade da Pessoa Humana; Direito de propriedade; Primazia do trabalho; Primazia do Bem comum; solidariedade; subsidiariedade (suprir o que falta).

E aqui cabe uma reflexão sobre Tolerância, atitude a meu ver muito importante para a democracia. Norberto Bobbio, Karl Popper e Umberto Eco serão meus guias.

Bobbio faz uma distinção entre tolerância negativa e tolerância positiva. Na negativa, você atura os defeitos, erros, comportamentos da pessoa ou grupos, por conveniência, por pragmatismo, mal menor etc.

A positiva se fundamenta na convicção de que a pluralidade de opiniões, em concorrência entre si, é condição essencial para sobrevivência e desenvolvimento de uma sociedade democrática. Isso não implica em renúncia das próprias convicções, nem abdicação do desejo de triunfo de sua posição. Mas implica, sim, em não excluir as demais posições. É o velho ditado: do debate nasce a luz. Ser tolerante não é ser indiferente.

“A Democracia, diz Bobbio, “pode ser definida como um sistema de convivência em que as técnicas da argumentação e da persuasão substituem as técnicas de coação para solução dos conflitos sociais. Tolerância do ponto de vista democrático é opção pelo debate, pela argumentação, pela persuasão, em lugar da coação ou da perseguição”.

Só que a tolerância tem limites. Concordo com Karl Popper em que a tolerância ilimitada pode ocasionar o desaparecimento da tolerância, ou seja, uma sociedade tolerante que não se defende dos ataques dos intolerantes permite a destruição dos tolerantes e, com eles, da tolerância.

Saudades do “profeta” de nosso tempo, Umberto Eco, que nos deixou em 2016: “A intolerância mais perigosa é exatamente aquela que surge na ausência de qualquer doutrina, acionada por pulsões elementares. Por isso não pode ser criticada ou freada com argumentos racionais. Mas aí está o desafio. Educar para a tolerância, adultos que atiram uns nos outros por motivos étnicos e religiosos, é tempo perdido. Tarde demais. A intolerância deve ser, portanto, combatida em suas raízes, através de uma educação constante que tenha início na mais tenra infância, antes que possa ser escrita em um livro, e antes que se torne uma casca comportamental espessa e dura demais” (Da pequena coletânea de seus escritos e intervenções: “Migração e Intolerância” – Ed.Record – 2020).