Reflexões

O precioso tesouro da Igreja na América Latina

05 de Julho de 2008, por Pe. Dirceu de Oliveira Medeiros 0

Nosso objeto de reflexão para este mês é religiosidade popular. Lançamos mão de uma palavra do Papa, citada pelo documento de Aparecida, para referendar a importância dessa manifestação religiosa: “o Santo Padre destacou a rica e profunda religiosidade popular, na qual aparece a alma dos povos latino-americanos, e a apresentou como precioso tesouro da Igreja Católica”.

São muitas e diversificadas as manifestações da religiosidade popular católica, sem dúvida, obra do Espírito Santo, que não promove a uniformidade. Algumas nós conhecemos de perto: as festas dos santos juninos, os congados das festas do Rosário, as folias de Santos Reis e São Sebastião e outras expressões, algumas até pitorescas. No meio popular encontramos uma prece curiosa a Santo Antônio: “Santo Antônio, eu somente devolverei o menino do senhor, se, ou quando, o senhor fizer aparecer em minha vida uma pessoa que case comigo! Ou ainda“... Meu santo Antônio querido, eu vos peço por quem sois, dai-me o primeiro marido, que o outro eu arranjo depois”. São preces de origem portuguesa e da piedade popular que revelam uma intimidade quase profana entre o devoto e o santo. No Brasil colonial, onde se praticava, por escassez de padres, uma religião doméstica, os santos, como que “faziam parte da família, morando dentro das casas em seus oratórios domésticos”.

O nosso primeiro olhar em relação a tais manifestações às vezes é de estranheza, chegamos mesmo a demonizar algumas expressões. Demonizamos aquilo que não conhecemos, por isso faz-se necessário conhecer e aprofundar. A ignorância é a fonte de todo preconceito, dizia Santo Agostinho “só se ama, aquilo ou aquele que se conhece”. É imperativo conhecer!

Acolher ou promover a religiosidade popular como recomendam o documento de Aparecida e as Diretrizes Gerais da Igreja no Brasil implica também discernir. O desafio que se impõe a toda Igreja é acolher seus inegáveis valores e, ao mesmo, estar disposto a ajudar a religiosidade popular a superar seus perigos de desvio. Convidamos nossos leitores a apreciar e valorizar a riqueza de nossa religiosidade popular, sem preconceitos. A religiosidade popular faz parte de nossa raiz histórica, religiosa e cultural.

Misterium Fidei

07 de Junho de 2008, por Pe. Dirceu de Oliveira Medeiros 0



Nesses dias celebramos dois mistérios de nossa fé cristã, a saber, o mistério da Santíssima Trindade e do Corpo e Sangue do Senhor. Isso me motivou a escrever sobre o tema. Mistério é aquela realidade que não conseguimos alcançar plenamente com nosso intelecto. O mistério é algo que nos transcende e desafia a inteligência humana. Aliás, muita coisa não compreendemos ainda, mas esperamos na fé compreender um dia. Parafraseando Fernando Pessoa digo: A vida é um mistério a ser desvendado, minuto a minuto, segundo a segundo. O incrível é que sempre há mais um pouco para descobrir. A vida é inesgotabilidade, ou seja, como aquela fonte de água límpida que sacia nossa sede e cuja água não cessa de jorrar. Quem se diz detentor da verdade ou conhecedor de todas as coisas não merece crédito.

Faço uma distinção, a meu ver, oportuna, entre mistério lógico e mistério de fé. O mistério lógico é aquele que pode ser penetrado e dissecado pela razão humana. Mal comparando seria caso do enigma, de uma equação matemática, realidades que podem ser abarcadas pela inteligência humana. Os mistérios relativos à fé ultrapassam o nosso entendimento, e, a propósito, se os mesmos fossem “desvendados” deixariam de ser mistério. É confortante para o ser humano saber que há algo maior do que ele: o mistério. Nós precisamos do mistério para enriquecer nossa existência.

Com o fim da idade média, chamada idade das trevas, e o advento do iluminismo, profetizou-se que o mistério e a religião estariam fadados ao desaparecimento e a razão triunfaria. Os “mestres da suspeita”, Freud, Nietzsche e outros pregavam o fim da religião e a prevalência da razão. Assim, divinizava-se a razão humana, ela poderia tudo explicar e penetrar. Contudo, com a segunda grande guerra se dá a grande “crise da razão”. Uma pergunta não queria calar: como uma sociedade emancipada, guiada pelo racionalismo pôde cometer uma atrocidade tão grande como a segunda grande guerra? Seis milhões de judeus foram mortos pelos nazistas. Constatou-se que a razão não é a única força que move o ser humano, temos a vontade, o desejo, a religião. O ser humano é também um mistério complexo, que não se explica só pelo viés da razão. O mistério emerge de novo com toda a sua pujança.

Diante do mistério que atitude se deve ter? A atitude de adoração. Diante do mistério, que é maior que nossa inteligência humana, convém dobrar os joelhos em adoração silenciosa, numa atitude de reverência. Contudo, só nos calamos e adoramos, depois de termos pesquisado, aprofundado. Devemos buscar o conhecimento, afinal somos chamados a “dar razão de nossa esperança”. 1Pd. 3, 15 Entretanto, não deve perder de vista que o mistério é maior do que nós. É princípio da física: o maior não cabe dentro do menor. Ficamos então com aquela célebre frase de William Sheakespeare “há mais mistérios entre o céu e a terra do que julga nossa vã filosofia”.

Grandes e poderosas são tuas obras, Senhor, Deus, todo poderoso! Ap. 15,3

19 de Maio de 2008, por Pe. Dirceu de Oliveira Medeiros 0

“O meu Pai trabalha sempre e eu também trabalho”, Jo. 5, 17. Essas são palavras de Jesus no Evangelho. Deus criador, ao criar todas as coisas, trabalhou e usufruiu o direito de contemplar a obra de suas mãos e de constatar que “tudo era muito bom”. O Filho de Deus também realizou uma obra admirável ao implantar o Reino de Deus e nos salvar. Uma vez que somos imagem e semelhança de Deus, podemos dizer que o trabalho tem algo de divino e é também parte constitutiva de nossa vida.

Segundo a encíclica Laborem Exercens, o trabalho possui dois sentidos: um subjetivo e outro objetivo. O sentido objetivo toca à questão da sobrevivência e o subjetivo expressa uma dimensão intrínseca do ser humano que é homo faber. Em outras palavras, o trabalho é, ou deveria ser, simultaneamente, fonte de realização humana e garantia de vida digna para todos aqueles que trabalham e para os seus. No tocante à dimensão subjetiva ou realizadora do trabalho, é fundamental fazer o que se gosta. Nas primeiras páginas da bíblia, depois do pecado de Adão e Eva, o trabalho emerge como um castigo. Assim lemos: “..maldito é o solo por causa de ti! Com sofrimento dele te nutrirás”, Gn 3, 17. Para que o trabalho seja fonte de prazer e não um fardo é indispensável que cada um descubra sua vocação, a sua aptidão. A já mencionada encíclica papal adverte sobre a ameaça a uma hierarquia de valores, uma vez que o trabalho não é simples “mercadoria” que o trabalhador vende, mas antes participação do ser humano na obra do criador. O “trabalho é para o homem” e não “o homem para o trabalho” diz a Laborem Exercens. Desse modo, o homem não pode ser tratado como mero instrumento de produção, mas como sujeito e artífice.

À luz da Doutrina Social da Igreja podemos afirmar que muitas sombras existem ainda no mundo do trabalho, tais como a exploração, o sub-emprego, as condições degradantes de trabalho, o trabalho infantil, o trabalho escravo. Também à luz da doutrina social da Igreja é mister lembrar que a relação empregado e empregador deve ser marcada não pela dominação de um e a submissão de outro, mas pela justiça. Esta relação é perpassada por direitos e deveres. Ambos têm direitos e deveres e um dos problemas mais candentes nesta relação é a questão do justo salário ou da justa remuneração. Há hoje, também na pauta do dia, um debate sobre a flexibilização das leis trabalhistas. Muitos argumentam que tal flexibilização provocaria um crescimento na oferta de empregos. A questão que se coloca é: a perda de alguns direitos trabalhistas não deixaria o trabalhador ainda em situação mais vulnerável? Os sindicatos e a sociedade civil organizada devem aprofundar o tema e se colocar na defesa de seus direitos.

Por fim, outro dia viajando e observando uma estrada recém asfaltada me ocorreu a seguinte reflexão: quem participou da construção dessa rodovia, dessas pontes, deveria se sentir realizado, afinal, existe um sentido nobre e sublime na obra humana. O progresso, a aproximação das pessoas, o conforto, o fato de ter participado de um grande empreendimento elevam o ser humano. O ser humano é capaz de grandes coisas, é capaz do melhor e do pior. Por isso, ao celebrarmos o dia do trabalhador, precisamos desenvolver uma espiritualidade do trabalho que nos leve a ver que o ser humano é aquele que participa, mediante o seu trabalho, da obra do criador. Pelo seu trabalho, de certa forma, “aperfeiçoa” a obra do criador e contribui para o desenvolvimento dos povos e da família humana. O desafio é enxergar o trabalho com os olhos da fé e descobrir o lugar que o mesmo ocupa na história da salvação.