Retalhos Literários

Fundamentos em memória

15 de Janeiro de 2019, por Evaldo Balbino 0

Aos 15 anos, em 1992, entrei no que se chamava 2º grau de ensino, ou seja, no curso colegial. Em 1996, já fazendo a faculdade, esse curso mudou no Brasil para o que se denomina hoje em dia Ensino Médio.

Ainda cursando o que se chamava ginásio, 5ª à 8ª série (hoje 6º ao 9º ano do Ensino Fundamental), me perguntavam alguns professores se eu faria no colegial o Magistério ou simplesmente o Científico. E minha vontade manifesta era o Magistério, pois eu queria desde então estudar para dar aulas.

O Científico se resumia em três anos, numa educação introdutória e geral, porém mais aprofundada do que no ginásio, englobando todas as matérias básicas da escola. Já quem percorria o Magistério estudava o Científico por três anos e fazia mais um quarto, voltado este para formar professores da 1ª à 4ª série (hoje 1º ao 5º ano do Ensino Fundamental).

Muitos nomes esses, né?! E há outros mais no âmbito da história da Educação. Não se espantem os mais novos.

No justo ano de 1992, a escola em que eu estudaria, E. E. Assis Resende, parou (ou tinha parado havia pouco, não sei) de ofertar o Magistério. Então minha única escolha foi fazer o Científico mesmo. Depois achei até bom isso, pois assim tive uma formação mais geral e me preparei melhor para o vestibular.

Anos depois fiquei sabendo sobre um tal de Curso Clássico, que antes se ofertava em nível de 2º grau e que enfatizava as ciências humanas e as letras. Fiquei encantado! Cheguei a me ver, lá entre os 15 e 18 anos, estudando latim ou grego e suas literaturas, namorando mais de perto os filósofos, entrando mais pela literatura luso-brasileira, cultivando tudo aquilo que passaria a ser mais a minha vida da faculdade em diante.

Voltando ao curso colegial que fiz, e ainda falando de tantos nomes acadêmicos e os espantos que eles me causavam, foi com medo que comecei a encarar as novidades que me chegaram em 1992.

Os desdobramentos da matéria de Ciências do 1º grau me excitaram. Aproximei-me deles com olhos curiosos e medrosos, cheios de temor e exultação. Biologia, Química e Física. E as leis de Newton, os balanceamentos químicos, as células e os nomes exóticos de tudo o que as compõe. Os cruzamentos genéticos, o carbono que nos arranja e a ótica e suas ilusões...

As matemáticas ficaram um pouco mais aprofundadas, ainda que de modo preliminar. Os conjuntos revisitados, os logaritmos que me eram apelos hieróglifos, as equações e suas incógnitas a me convocarem para a decifração. Não me esqueço da trigonométrica argúcia de que os lados de um triângulo retângulo me faziam medir sombras de prédios sobre as ruas. E lembro que meu pai, mestre-de-obras experiente e com pouco tempo em escola formal, fazia cálculos práticos mais ágeis do que as minhas pobres contas perdidas nos corredores das ilações de fórmulas.

As discussões históricas me desvelavam pouco a pouco um mundo em constantes tensões e mudanças, com avanços e recuos de fatos e ideias. As questões filosóficas me faziam cada vez mais um labirinto pensante. Os preceitos da Sociologia me revelavam as sociedades e suas complexas estruturas. E a nossa existência física e política se descortinava palmo a palmo nas geografias da vida.

E o aprendizado do inglês, para mim tão difícil!? Meus passos aí eram tonto caminhar por outras latitudes. Uma fonética estrangeira aos meus ouvidos, um acanhamento de dizer não sabendo se dizia bem. You’re welcome to visit the English-speaking world! There are seven days in a week. My name is John, and yours? Spell it, please! E minha lingual ia soletrando a língua de Shakespeare.

E a língua portuguesa, tão minha e tão outra às vezes!? A despeito da árdua gramática em certas regras, o português me seduzia com manhas e artimanhas. A ele eu me declarava em amor dia e noite. Eram horas esperadas as das incursões pelas letras maternas e suas literaturas.

Tudo isso era o que se chama uma formação propedêutica, outro nome pomposo e estranho a muitos ouvidos. Uma formação intermediária entre o basilar e o alto, preparatória para saberes especializados num futuro curso superior. Mas, como dizem e é fato, o que sustenta uma casa não é um alicerce bem firme? Pois então: meus anos de estudo em minha cidade natal foram esse alicerce. Estrutura inabalável que ainda me sustenta.

Lições do corpo

12 de Dezembro de 2018, por Evaldo Balbino 0

O Hino Nacional nas filas do pátio, garotos de um lado e garotas do outro, o professor ou geralmente a professora à nossa frente. E todas as bocas cantando o decorado hino, falando de um grito às margens de um rio, um brado com espada em riste, e também de flores e de campos e amores. Os mestres cantavam diante de nós: alguns com livros debaixo do sovaco, outros com as brochuras levadas ao peito bem rentes ao coração, e outros mais com pastas solenes cheias de papéis. Os alunos, de camisa geralmente branca com bolso contendo a logo da escola, deixavam a agitação espalhada pelo entorno do colégio e buscavam domesticar seus humores na canção nacional.

E eram bocas acordadas havia pouco. Algumas vinham de café farto, outras de mesa parca mas suportável, e todas de um sono pacato em cidade pequena. As aulas matutinas começavam com essas bocas caminhando pelos morros da cidadezinha, falando, gesticulando e em seguida cantando o “Ouviram do Ipiranga”. Uns em voz altiva para todos escutarem; outros mais humildes e com a consciência de que o canto afinado é para poucos. Havia alguns sem bom senso, que esganiçavam os versos parnasianos, espichando e espanando as palavras, fazendo com que os ossos de Osório Duque-Estradase mexessem raivososentre escuros.

Depois de todo esse ritual, as filas começavam a andar, de duas em duas. Primeiro a da oitava série, para depois a da sétima, e isso até chegar a vez da derradeira: a da primeira série. Os grandões tinham o privilégio de adentrar primeiro o recinto da construção do saber, só eles viam primeiro as cadeiras onde se sentariam, as mesas sobre as quais disporiam seus cadernos e livros. Os nossos corpos incontidos se continham, por fim, em cadeiras e carteiras também enfileiradas.

As matérias eram as básicas. Preposições buscando ligar palavras, redações sobre namoros sonhados ou sobre um passeio no sítio da vovó que não tinha sítio (pois era pobre como Jó), orações subordinadas sempre insubordinadas, equações do segundo grau com duas inencontráveis variáveis e teoremas que causavam transtorno, o mundo no Antigo Egito dizendo a todos que o mundo é mundo desde que é mundo, os relevos e a hidrografia do Brasil e também as geopolíticas buscando paz nunca existida, os corpos (os sempre alegres corpos mesmo quando tristes) correndo nas partidas de queimada ou vôlei ou futebol e também se espichando em alongamentos sonolentos por lentas manhãs, depois os mesmos corpos lendo sobre a vida de Jesus e de todos os santos e pedindo perdão por terem olhado a silhueta x ou y ou z dum colega ou duma colega e às vezes até mesmo dalgum professor ou professora, os desenhos não se fazendo a contento e fora de qualquer talento para a arte pictórica, o mundo animal e tudo o que nele a zoologia houve por bem batizar...

Em toda essa aprendizagem, vinham certas outras novidades numa época sem internet, com pais cheios de pudor e com enciclopédias atravessadas pelo bem dizer nas entrelinhas o que era do corpo humano e dos desejos desse mero e sublime corpo. Nas aulas de Ciências, para além do esqueleto sem vida, para além duma fisiologia que falava de funções internas dos órgãos escondidos sob a pele, o que sobressaltava aos nossos olhos eram os momentos de educação sexual. Eram mares pouco dantes navegados os capítulos do livro com desenhos mostrando corpos nus, vaginas sugeridas, esboços de pênis, explicações sobre concepção, métodos anticoncepcionais e outras mais notícias para adolescentes com acesso a poucas informações dessa natureza humana e urgente.

O professor dessas discussões científicas era o Seu Élcio. Ele chegava em sua roupa séria, sempre de sapato e calça social, camisa de gola, livros e diários entre um dos braços e o corpo. Sentava-se à mesa circunspecto, dava um bom-dia calmo a todos, fazia a chamada, dizia qual era a página do livro em que estava a lição a ser estudada e ia discorrendo sobre a matéria.

Nessas aulas de sexualidade (pena que não foram ministradas no ano todo), os alunos amavam mais o silêncio. Vez em quando um ou outro mais desinibido levantava a voz e interrompia o professor com alguma pergunta meio “obscena”. Após risos e gestos alegres, todos voltavam a ouvir a voz do mestre e prosseguiam silenciosos com seus corpos jovens forjando rumores.

Castelos de barro

13 de Novembro de 2018, por Evaldo Balbino 0

A nossa arte tinha muitas artimanhas. Gestos, palavras, peraltices. Mas havia uma arte também inigualável, sui generis nas nossas bandas infantis do povoado do Ribeirão de Santo Antônio. Era com as mãos que a fazíamos. Com a mente indo por veredas, com as mãos ávidas de criar. Era de tabatinga que buscávamos fazer mundos possíveis num mundo cheio de impossibilidades.

As panelas eram talhadas com cuidado, pois dar-lhes forma era coisa difícil. Já as colheres eram barrinhas mal desenhadas. E os bonecos, ai dos bonecos, esses se faziam desconjuntados: uma barra meio achatada era tronco inerte, cilindros disformes eram membros mais ou menos perfeitos, uma bolotinha mais encima tinha grãos de feijão para compor a fisionomia do rosto – pretos para olhos e nariz, roxinhos para boca que não se abria. Aviões fazíamos vários: não voavam, mas volitávamos por eles. Bois ali não eram mais de sabugo, mas barro secando pelos cantos para compor juntas de primeira linha nas cangas. Os bois de tabatinga eram até mais fortes que os de espiga nua; eram pesados e aguentavam o tranco. Carrinhos de boi, ovelhas tresmalhadas ou não, cenários nascidos da terra branca e úmida – tudo nos dava ares de deuses criando a vida.

O que fazíamos com mais e mais esmero eram os nossos castelos. De barro e não de areia. Não tínhamos praias, dessas com ondas revolvendo-se, com areia margeando águas desinquietas, com gaivotas fazendo voos rasantes sobre as nossas cabeças líquidas e sobre a água pensativa. Não, não as tínhamos. As praias vistas em livros, e que seriam namoradas mais depois nas telas de tevê, não eram vistas de fato por nós. Tínhamos, então, que imaginar outras possibilidades, outro chão para apoiar nossos pés pequenos e peregrinos. Assim, nossos castelos eram de barro erguido à beira de córregos lentos ou perto de correnteza forte. Barro branco e grudento ganhando forma em nossas mãos que o viam com gosto de criador amando criatura.

E os nossos paços eram imponentes. Dávamos passos largos entre seus umbrais, abóbadas imensas de nos perder. Andávamos nos seus interiores como num mundo vasto. As pontes de acesso a eles não eram levadiças, ficavam eternamente paradas sobre pocinhas d’água fazendo pose de lagos. Circundados de água e monstros aquáticos, seus muros se faziam altos na espera de guerras. Seus alicerces e torres altíssimas, as janelas opacas mas abertas para o mundo, a sala de armas, a casa pública de banho, o pátio para os infantes brincarem, os jardins não suspensos (mas suspendendo olhares por tanta beleza), os corredores e as escadas sem fim, a cozinha e as guloseimas vindas das terras no entorno, os quartos e os sonhos dos moradores, a sala real com seu trono onde todos podíamos ser agora e para sempre reis e rainhas em sua pompa.

De barro e não de areia construíamos os nossos castelos. E a lembrança da parábola de Cristo. As casas edificadas sobre a areia aérea. O vento, a tempestade, as fúrias da vida derrubando tais casas. E também os sábios que sobre a rocha ergueram suas moradas, sólidas como as bases em que se assentaram. E sobre tamanha solidez, uma existência inabalável, a memória do hino ouvido e nunca esquecido: “Sábio e prudente será o varão / Que a casa na rocha erguer; / Sempre terá eficaz proteção, / Pois nada a pode abater. / [...] / Quem sobre a areia quiser construir, / Em vão trabalhado terá, / Pois sua casa virá a cair; / Em falso alicerce estará”. E em mim até hoje a bíblica e hínica lição, lida e cantada e ouvida desde sempre, de que a rocha é Cristo, o filho de Deus: o fundamento eterno de quem busca a glória das coisas que não morrem.

E não morrem os castelos de tabatinga. Argila ardendo na memória. Argamassa de uma brancura a ponto de doerem os olhos. Dizem que o branco é mistura de todas as cores-luz. E multicolorido era tudo. Castelos brancos, mas morando neles todas as cores-luz do mundo, todas as vontades de pequenas e eternas crianças. Candeias acesas a noite inteira. Claridade que nunca se apaga e que fica eterna nestas palavras. Escrever é manter acesa a lâmpada da vida que carregamos.

Os ipês sempre florescem

17 de Outubro de 2018, por Evaldo Balbino 0

Meus irmãos, seus amigos e alguns de nossos primos eram amantes da viola, mas sempre entregues ao dileto violão. Sentavam-se às noites no passeio de fora da nossa casa e cantavam como cigarras noturnas e alegres. Eram diletantes, porém com um labor de ourives que só vendo! Risadas e falação se misturavam para decidirem que música viria à baila em cada vez que as mãos dedilhavam o instrumento. Tinham eles vozes prontas para um canto gostoso de se ouvir.

Eram tristes e também alegres as músicas. Sertanejo de antigamente, sem modinhas “urbanas” ou “universitárias” que hoje se perfazem com outras configurações. Era a voz do gado, a lida do boiadeiro, era a manada de flores e o buquê de animais e pessoas vivendo um mundo rural, às vezes bucólico, noutras vezes dramático. Tudo era uma coisa só e ao mesmo tempo confusa nessa infância do mundo. Histórias de amor, sangue derramado, arrependimentos, encontros e desencontros, e mais a lida entre homens e bichos, animais prestimosos e amados mas também subjugados.

Entre as canções ao som do violão e das vozes, “O ipê e o prisioneiro” de José Fortuna e Paraíso era coisa certa. Todos os dias, no rádio grande lá em casa, bem como no radinho que meus irmãos levavam consigo para o serviço de pedreiro, a cantoria afinada de Liu e Léu era ensinamento, escola espontânea na hora dos afazeres. A voz meio tremida dos sertanejos; o agudo do tom; a segunda voz acompanhando o ritmo choroso e dorido e fazendo parceria com a primeira, casando-se com ela, unindo-se ambas para nunca mais separar. E o enredo cortado de dor da música se tecendo aos nossos ouvidos.

Uma sala fria. Do segundo andar da penitenciária o prisioneiro canta e conta sua sina. Seus olhos veem o jardineiro que planta um ipê. A arvorezinha vai crescendo ao correr dos dias e do canto. Ela vai ganhando vida enquanto o prisioneiro sofre, escala alturas e chega à janela da cela. Os olhos sentem e o coração percebe: dentro do cárcere as noites não têm mais aurora; e o ipê é pura claridade no mundo lá fora.

Porém a teia musical avança e destrança o fado de todos. Os olhos encarcerados são livres para ver toda prisão. O cipó parasita abraça forte e amoroso o tronco do ipê, e de tanto amá-lo o vai sufocando. Existem amores assim; precisam do outro, sufocam-lhe a vida. Enquanto as ramas apertam a árvore clara e alta e a levam pouco a pouco à morte, o carcerário pensa e canta o que pensa: sua mulher também o abraçava e o traía. Mata-pau. E a causa da prisão se revela: traído pela companheira, o cantor a matou e purga agora o frio da solidão prisioneira.

Isso tudo dá um debate. Escrita em tempos outros, hoje essa canção daria muito o que falar. Ainda mais com leis mais exatas e necessárias que combatem o feminicídio. Lá na minha infância, no entanto, não me lembro de ninguém debater isso, questionar o ato da voz cantora e aprisionada. Não se debatia mesmo, infelizmente. Era tácita, contudo, a ideia perfeita de que o homem da história errara e de que estava pagando perante a sociedade e a justiça por seu erro. Pelo menos isso.

Na minha meninice, eu não deixava de ver a dor do homem cativo. E com certeza a dor do ipê. Um tronco robusto e alegre, um coração amante e ciumento, uma fronde espalhada sob o sol, uma fronte fechada no escuro, uma respiração gerando vida, um ato violento ceifando a seiva. E o cipó da existência nos abraçando sempre. Ele, o cipó, sem culpa alguma. Já o coração, movido pelo demônio do ardor, não medindo consequências.

Hoje e sempre meus olhos relembram tudo. Meus irmãos, seus amigos e os primos ainda cantam em meus ouvidos. Hoje, cada um para um lado, com alguns nem tenho mais contato, mas todos entrelaçados nos cipós da vida. Ouço suas vozes, seus risos, e todo o drama do prisioneiro e do ipê acontece de novo diante de mim.

Do mesmo modo ipês floridos me acontecem sempre. Nas viagens, pelas estradas, nas ruas de qualquer cidade, eles crescem alegres e me deixam feliz e pensativo. Me fazem rever pessoas, ouvir a canção de Zé Fortuna e Paraíso. E me dão o senso de que no jardim da vida existem quedas, de que querubins nos impedem a felicidade meneando espadas de fogo nas mãos. E ficamos aqui deste outro lado do paraíso, fazendo e ouvindo canções, cultivando floridas belezas.

O nosso jardim de Cecília (canto a quatro vozes)

19 de Setembro de 2018, por Evaldo Balbino 0

O principal de tudo era o sapo jardineiro. Chapéu e calça azuis, uma camisa vermelha com esmaecidos laivos de branco. O chapéu era meio mexicano, para proteger do sol: rebaixado na cabeça e de abas razoavelmente largas. As cabeças dos sapos já são mesmo achatadas. Talvez fosse por isso que o chapéu era assim. E o sapo de que falo era verde. Nunca vi de verdade nenhum dessa cor. Os sapos da minha vida sempre foram de um tom mais sério, fechado. Me apaixonei pelo sapo que, sei muito bem, nunca viraria príncipe. Nem precisava virar.

As flores eram várias e muitas. De cores que eu nunca imaginara habitassem em flores. Rosas, vermelhas, azuis, amarelas, verdes, anis, violetas, laranjas e outros tons mais que já se misturaram nas memórias dos meus olhos. Brotavam do chão como brotam desejos de vida, anseios por alegria e eternidade. As florezinhas e suas folhas enfeitavam a terra e o gramado do jardim.

As borboletas também eram multicores: leves sobre o jardim, levitando entre lavadeiras e passarinhos. Se não fosse o apelo visual aos meus sentidos, eu imaginaria mulheres lavando roupas num riacho, bem no debaixo de pássaros folgazões. Mas meus dedos tocavam o livro, meu corpo sentia seu cheiro, meus olhos beijavam sua página colorida. E o que eu via eram insetinhos alados sobrevoando como helicópteros vivos as águas de uma fonte azul e branca.Com seus dois pares de asas transparentes, com seu corpocompridinho e cheio de anéis, cada uma das lavadeiras dava voltas pelo jardim e retornava sempre em voos rasantes para a fonte fresca e convidativa.

Eos ovos verdes e azuis nos ninhos? Onde estavam? Lá jaziam, porém num só ninho, bem em cima do braço da estátua de primavera, uma menina linda, fantasmal, com cabelos longos e face branda. Toda ela de pedra, talvez, mas parecendo macia na sua alvura quase transparente. Sobre a sua cabeça, um pássaro descansando de voar. Em cada orelha uma flor, possivelmente furtadas por ela mesma do jardim. Ou então não tenha sido roubo, e sim oferta amável do sapo jardineiro e dócil. A menina de pedra segurava um balde também pétreo, do qual jorrava a fontede água azul e branca.

Vagando sobrea mureta da fonte, o caracol namorava a queda d’água. Tomava sol úmido, esperando pelo arco-íris que ainda não aparecera. O raio de sol já atravessava as águas, só que o arco-celeste trazia ares tímidos, hesitando em mostrar-se ao caramujo exibido e celestroso. As antenas da lesminha estavam ligadas, voltadas para o ar líquido e levemente rumoroso à beira da fonte, esperando por mais vida onde a vida já era muita.

O lagarto, também verde, andava entre o muro e a hera. Do mesmo modo nunca vi, de verdade, lagartos verdes. Nunca fui apresentado a nenhum de carne e osso. Porque os répteis são vertebrados, aprendi isso desde cedo. E o verde lagarto, embrenhando-se pela trepadeira, sentia cada tijolo frio do muro, que era coberto de musgo num setembro que ia entrando. E ali o bichinho se misturava ao verde da planta.

O formigueiro, bem perto de tudo, era cerro alto galgado por formigas incansáveis. Em fila indiana, subiam e desciam as obreiras. Perto do sapo e do formigueiro, um grilinho dentro do chão, vindo de um buraquinho da terra e espreguiçando-se do sono tranquilo que tivera lá no escuro da toca. Era um grilinho preguiçoso, se podia ver.

Sentada no muro da fonte, ao lado da estátua de primavera, a cigarra tinha as pernas cruzadas onde apoiava seu violão. Ela e o instrumento eram uma coisa só, pura música e cor e vida. De olhos fechados, ela parecia sonhar com o que cantava. Sua bocafundava mundos, ditava o compasso da existência. O sapo, as flores, as borboletas, as lavadeiras, os passarinhos, os ovos verdes e azuis nos ninhos, a estátua de primavera, o caracol, o raio de sol, o lagarto entre o muro e a hera, o formigueiro, o grilinho e a cigarra cantando eternamente. Tudo isso era fruto do canto da cigarra.

E a cigarra verdadeira, voz humana poetizada, era Cecília Meireles no seu canto. A poeta leiloava com palavras um jardim e as belezas dele. E assim ela me vendeu a beleza para a vida inteira. Não somente ela, mas também Maria Ângela Haddad Villas e Roberto Caldas, os ilustradores que tornaram mais pictural ainda o poema da autora que me enfeitou a infância.