O Brasil acordou no primeiro dia de 2009 escrevendo de outra maneira algumas palavras. É o que reza o acordo ortográfico firmado em 1990 pelos integrantes da Comunidade dos Países de Língua Portuguesa (CPLP) – Brasil, Portugal, Angola, Moçambique, São Tomé e Príncipe, Cabo Verde e Guiné- Bissau. O Timor Leste, jovem país asiático, também assinou, depois, o acordo de unificação da grafia da língua portuguesa, mas os prazos de implantação das novas regras não foram cumpridos. Por falta de adesão de Portugal às medidas, o governo brasileiro veio adiando as mudanças. Essa situação perdurou até março de 2008, quando Lisboa anunciou o desejo de aderir à reforma. Em setembro do mesmo ano, o presidente Lula assinou decreto com o cronograma de aplicação do acordo no país, segundo o qual os brasileiros terão quatro anos para se adequar às novas regras.
De imediato, como não poderia deixar de ser, já se vê a aplicação da nova ortografia por parte da imprensa escrita. Palavras como “ideia”, “plateia”, “voos”, tão usuais nos textos jornalísticos, aparecem hoje sem os seus outrora obrigatórios acentos gráficos. O trema, que muita gente já tinha abolido por conta própria, deixou de existir, mantendo-se somente em nomes próprios estrangeiros e derivações. Devo dizer que, dia desses, ao fazer uma singela lista de compras e incluir nela o item “linguiça” assim, sem o trema, conforme prevê o referido acordo, estranhei o termo. Pudera! Minha condição de professora de português me fez defender os tais dois pontinhos sobre o “u” (güe, güi, qüe, qüi) e, evidentemente cobrar dos alunos a aplicação deles. Inversamente ao destino do trema, as letras k, w e y, vistas como intrusas, mas usadas assim mesmo, fizeram crescer o nosso alfabeto, agora com 26 letras. A dificuldade quanto ao uso do hífen continua. Por exemplo, o que antes era “anti-social” (com hífen) virou “antissocial” (sem hífen e com o “s” dobrado). Contrariamente, “antiinflamatório” (grafia antiga) virou “anti-inflamatório”. A explicação para isso a gente confere ainda na coluna deste mês. E havia também os acentos diferenciais em palavras como “pêra”, “pêlo”... (substantivos) que viraram “pera”, “pelo”... Caíram quase todos. Mantém-se o acento circunflexo de “pôde” e do verbo “pôr”.
Desnecessária, dispendiosa, insignificante ou acertada, a reforma ortográfica, que altera cerca de 2% das nossas palavras, é polêmica, mas acima de tudo, é hoje uma realidade. Vocês conhecem aquela história do “manda quem pode, obedece quem tem juízo”? Pois é, obedeçamos! Uma consulta ao texto da jornalista Dad Squarisi, editora de Opinião do “Correio Brasiliense” e autora do “Manual de Redação e Estilo dos Diários Associados” e de outros livros, esclarece os pontos básicos sobre as novas normas gráficas da língua portuguesa. Eis o que o resumo diz:
O QUE MUDA?
1- Alfabeto: com a entrada do k, w e y, passa a ter 26 letras.
2- O trema desaparece. Freqüente, tranqüilo, lingüeta, lingüiça & cia. passam a se escrever frequente, tranquilo, lingueta, linguiça, (mesmo sem o trema, a pronúncia se mantém).
3- O chapéu do ditongo ôo se despede: vôo, abençôo e perdôo viram voo, abençoo e perdoo.
4- O circunflexo do hiato êem (que aparece na 3ª pessoa do plural dos verbos ler, ver, crer, dar e derivados) diz adeus: eles lêem, vêem, crêem, dêem, relêem & cia. se grafarão eles veem, creem, deem, releem.
5- O agudão do u tônico dos verbos apaziguar, averiguar, argüir. Vai plantar batata na esquina: apazigúe, averigúe, argúem se escreverão apazigue, averigue, arguem.
6- O i e u antecedidos de ditongo perdem o grampo. Feiúra vira feiura; baiúca, baiuca; Sauípe, Sauipe.
7- Os ditongos abertos éi, ói viram ei, oi: idéia e jóia se escreverão ideia, joia.
Abra os olhos: só o grampinho das paroxítonas se vai. O das oxítonas e o dos monossílabos tônicos permanecem firmes e fortes: papéis, herói, dói.
8- Os acentos diferenciais usados em pêlo, pélo, pára, pólo, pêra & cia. se vão. As palavras ganharão forma mais leve: pelo, para, polo, pera.
Atenção, atenção! Mantém-se o chapéu de pôde e do verbo pôr (monossílabo).
9- Exigem o hífen:
9.1- Além, aquém, ex, pós, pré, pró, recém, sem, vice: além-mar, aquém-muros, ex-presidente, pós-graduação, pré-primário, pró-reitor, recém-chegado, sem-terra, vice-presidente.
9.2- Os prefixos seguidos de h: anti-higiênico, super-homem, micro-história, extra-humano, co-herdeiro, proto-história, sobre-humano, ultra-heróico.
Exceção: subumano.
9.3- Os prefixos terminados em vogal seguidos por palavra começada pela mesma vogal: anti-inflamatório, auto-observação, contra-ataque, micro-ondas, semi-internato.
Exceção: co- se junta ao segundo elemento mesmo quando ele acaba com o: coordenar, coobrigação.
9.4- O prefixo terminado por consoante seguido por palavra começada pela mesma consoante: hiper-rico, inter-racial, sub-bloco, super-resistente, super-romântico. (O sub vai além. Usa hífen com palavra iniciada por r: sub-região, sub-raça).
Os sufixos de origem tupi-guarani açu, guaçu e mirim: amoré-guaçu, anajá-mirim, capim-açu.
10- Rejeitam o hífen:
10.1- Os prefixos terminados em vogal diferente da vogal com que se inicia o segundo elemento: aeroespacial, agroindústria, antieducação, autoescola, coedição, coautor, infraestrutura, plurianual, semiopaco.
10.2- Os prefixos terminados em vogal que se juntam a palavras começadas por r ou s. No caso, duplicam-se o r e o s pra manter a pronúncia: antirrábico, antirrugas, antissocial, biorritmo, contrassenso, infrassom, microssistema, minissaia, multissecular, neossocialismo, semirrobusto, ultrarrigoroso.
Atenção, muita atenção
A reforma é ortográfica, só atinge acentos e letras. Pronúncias, concordâncias, regências, flexões, etc. e tal estão fora. Não foram nem sequer arranhadas.
Apenas as paroxítonas sofreram alteração nos acentos. As oxítonas, as proparoxítonas e os monossílabos tônicos permanecem com a grafia de sempre. Vale lembrar: trema não é acento.
SIM, NÓS FALAMOS PORTUGUÊS
Sediada em Lisboa, a Comunidade dos Países de Língua Portuguesa (CPLP) é uma organização criada em 1996 que congrega os países de língua oficial portuguesa com o objetivo de aumentar a cooperação e o intercâmbio cultural entre seus membros e uniformizar e difundir o idioma de Camões.
Formamos um contingente expressivo. Somos mais de 230 milhões de lusófonos (falantes do português) espalhados em quatro continentes. Da referência ao tradicional bacalhau, passando pelos belíssimos azulejos, alguns dos símbolos de Portugal tão apreciados por nós, é mesmo pela língua lusitana que nos identificamos como irmãos. E mais ainda pela arte literária de um idioma que abrange nomes como os de Eça de Queirós, Fernando Pessoa, Florbela Espanca, José Saramago. De brasileiros como Machado de Assis, Guimarães Rosa, Carlos Drummond de Andrade, Manuel Bandeira. E há também uma nova e vigorosa literatura africana produzida em língua portuguesa representada por autores que vão de Agostinho Neto e José Luandino Vieira (Angola) José Craveirinha e Mia Couto (Moçambique) a Alda Espírito Santo (São Tomé e Príncipe), entre outros.
Consta que o espanhol Miguel de Cervantes, célebre autor de “Dom Quixote”, teria qualificado de “doce e agradável” a nossa língua materna. “A última flor do Lácio” de Bilac se traduz perfeitamente por ninguém menos que Clarice Lispector: “SOU BRASILEIRA NATURALIZADA, QUANDO POR UMA QUESTÃO DE MESES, PODERIA SER BRASILEIRA NATA. FIZ DA LÍNGUA PORTUGUESA A MINHA VIDA INTERIOR, O MEU PENSAMENTO MAIS ÍNTIMO. USEI-A PARA PALAVRAS DE AMOR”.
Reformando o português...
07 de Fevereiro de 2009, por Regina Coelho
Leitor do JL - 25/03/2009
Prezada Mestra Regina, seu texto sobre a reforma ortográfica, didático, criativo, brincalhão com pura seriedade, está maravilhoso! Cheguei, inclusive, a utilizá-lo em sala com meus alunos, indicando, é claro, a autoria e a fonte. Eu já havia trabalhado com meus discentes sobre a dita reforma, mas sua crônica veio tornar mais prazerosa a aula. Parabéns! Abraços do seu sempre discípulo.