Crônicas do Cotidiano

Doido de pedra

13 de Agosto de 2014, por Rafael Chaves 0

Se há uma coisa que eu acho interessante é a total impossibilidade de um assunto se esgotar. O surgimento da loucura humana deve ter sido quando, encontrando-se sozinho e isolado, um homem (ou mais provavelmente, uma mulher, porque as mulheres dificilmente ficam sem falar...) começou a conversar consigo próprio, em voz alta. E como não chegasse a nenhum denominador comum, continuou falando e falando até que o encontraram neste solilóquio.

- Este é doido de atirar pedra! – disseram.

Engraçado que, observem, atirava palavras e não pedras. As pedras, essas vieram com a loucura coletiva. Quando pelo menos dois se reuniam e um já não se entendia mais com outro com palavras, vieram as pedras, e depois as flechas, e depois as balas, e depois os mísseis: insanidade geral.

Bom, mas este assunto começou em razão de, nessa época de inverno, os amigos se encontrarem mais amiúde, para conversar sobre cavalo. É a época das exposições, das cavalgadas... Pode parecer que a conversa é sempre a mesma, mas não é.

Certo é que entre uma conversa e outra eu vendi uma potra. Uma potra maravilhosa, muito boa mesmo, que encantava a todos que a viam. Potra alazã, frente alta, marchadeira no último! Eu já havia dito que a potra era inegociável, mas a oferta foi boa e eu andei consultando um e outro sobre o negócio.

- Óia, coisa de sereno, sei não...

Esse primeiro conselho feriu meus brios de morte. A potra que eu endeusara deixara o olimpo e, num passe de mágica, vagueava ao deusdará, desprotegida, ao relento, pelos campos. Fui ter com ela no outro dia, bem cedinho. Custei a encontrá-la galopando entre a neblina fria. “Vai que tropica”, gelei.

- Coisa que pisca o ôio e bate coração, sei não...

“Ai, meu Deus, que isso!”, exclamei comigo mesmo. De ferido de morte, o meu orgulho de possuir aquela potra agora dava seu último suspiro. E morria de vez, para ser enterrado, antes que fosse tarde. Antes que o sereno molhasse todo o pelo, antes que o olho parasse de piscar, antes que o coração parasse de bater. Um aviso, nessa situação, era muito, e dois então! Vendi a potra.

Dias depois encontrei um companheiro e contei a ele o caso.

- Meu amigo – disse ele, dando-me um tapinha nas costas –, lá na nossa terra a gente diz que cavalo bão é cavalo no bolso.

 

A potrinha que embalou meus sonhos estava, agora, no bolso. Apalpei o bolso e pensei comigo mesmo que tinha feito o que devia ser feito. E resolvi que ela não era mesmo para ser minha, assim pela coisa do destino, pela coisa do sereno (que podia querer se vingar, se eu o contrariasse). Ela ia brilhar noutros cantos, debaixo de outros mantos. Disso eu tinha certeza. E, absorto, andava pela rua, até que me dei conta de que conversava sozinho, em voz alta, comigo mesmo. Se alguém me viu e ouviu nesse dia, mais que nunca, deve ter deduzido que eu sou doido de atirar pedra!

Ardume

16 de Julho de 2014, por Rafael Chaves 0

Zé Rameiro vinha carregando essa alcunha não era à toa, embora pouca gente pudesse entender o que estava subentendido, o que estava na origem do seu apelido. Assim, de supetão, os mais desavisados poderiam pensar que Zé fosse algum curandeiro, dado a rezas de benzer maldições ou entendido de formular beberagens feitas de ervas para curar doenças. Que nada! Mas depois eu explico, antes tenho que contar o caso da cuia.

O nome de Das Dores, como era conhecida, era, na verdade, Maria das Dores. Seu nome, coitada, lhe era apropriado. Das Dores era uma sofredora. Casou-se ainda adolescente e inocente com Bastião e vivia para cuidar dos dois filhos e do marido. Tudo seria normal na vida de uma mulher daquela época, não fosse a estupidez e ignorância de Bastião. Bastião era um fazendeiro de modos primitivos e ações violentas. Todos os dias, ao chegar dos afazeres rurais, não se dava sequer ao trabalho de limpar as solas da botina e ia casa adentro despejando uma mistura de poeira, barro, bosta de vaca e todo tipo de sujeira. Não satisfeito, olhava de soslaio por sobre seu ombro e resmungava de Das Dores, dizendo que ela não fazia a limpeza da casa direito. Ainda que ela se esforçasse para esperá-lo com uma janta gostosa e farta, Bastião costumava reclamar cada hora de uma coisa. Um dia era que a comida estava fria, noutro que estava salgada, noutro que o bife estava malpassado... Havia os dias em que Bastião, já na primeira garfada, cuspia a comida no chão, enquanto esbravejava reminiscências: “êta saudade da comida da minha mãe!”. Tinha também o costume de gritar desaforos, ameaças e palavrões para Das Dores, na vista das crianças. Não raro, Bastião deitava-se sem tomar banho e, catinguento, exigia carícias e intimidades de Das Dores.

Apesar do sofrimento, Das Dores conservava uma beleza e um encanto que não havia homem na cidade que não a admirasse. Zé Rameiro já havia se apercebido disso. De há tempos, Zé Rameiro vinha dando um jeito de se ajeitar nas proximidades de Das Dores, nas missas dominicais. A mulher de Zé Rameiro, Aninha, beata juramentada, não dava conta dos propósitos de Zé Rameiro. E à medida que Zé cada vez mais se aproximava de Das Dores, ele a alcançava com olhares insistentes de segundas intenções que Das Dores já não conseguia mais ficar indiferente. Desse modo, sucessivamente e sorrateiramente, Zé Rameiro foi se apresentando a Das Dores, ganhando-lhe a confiança, despertando-lhe desejos até o dia que lhe fez, finalmente, propostas libidinosas a que Das Dores não teve como resistir.

Mas sabe como é, em cidade pequena não se consegue acobertar segredos por muito tempo e o caso veio ao conhecimento público, não se sabe como. Em nome dos bons costumes e da moral, coube a Seu João, homem pudico e sacristão nas horas vagas, reconhecido por suas intervenções terapêuticas em problemas domésticos, reconciliar os casais. Não foi fácil! Convencer Bastião a esquecer de que carregaria apêndices córneos por toda uma vida foi uma tarefa hercúlea. Até Aninha já não queria perdoar mais essa traição de Zé Rameiro. Chorando convulsivamente para Seu João, desabafou: “não aguento mais!”.

Agora é que explico a alcunha de Zé Rameiro. O “rameiro” vinha de “rameira”, que seria a mulher dada, literalmente, a manter relações com várias pessoas. A fama de conquistador de Zé corria nas entrelinhas e bastidores da cidade. O dia que ele se vestia de roupa domingueira, embora não fosse domingo, passava brilhantina nos cabelos e se perfumava, podia saber, o homem estava excitado.

Voltemos! Seu João conseguiu restabelecer a ordem e os costumes e tudo voltou ao antes. Seu João resolveu comemorar o feito no bar da esquina e, encostado no balcão, pediu uma pinga. Não se via Seu João em bar desde tempos imemoriais. Como o dono do bar não lhe perguntasse nada, ele arriscou:

- Não vai perguntar a razão de eu estar aqui tomando essa pinga não? – fez-se de rogado. Mas como o dono do bar desdenhasse, dando de ombros, ele insistiu:

- Consegui juntar o Bastião e a Das Dores e o Zé Rameiro e a Aninha de novo. – E levantou a pinga na altura dos olhos.

- Num adianta nada! Cuia que levou pimenta jamais perde o ardume. – decretou o dono do bar, impassível.

 

Seu João ouviu aquilo, olhos arregalados, enquanto a pinga descia queimando-lhe as goelas e fazendo brotar uma lágrima em seus olhos. Que tristeza!

Juventude transviada 2014

13 de Junho de 2014, por Rafael Chaves 0

Começara a reunião com os pais dos alunos para decidir sobre os detalhes da viagem que os quase cinquenta formandos do terceiro ano científico, digo, segundo grau, fariam para Porto Seguro. A sala estava cheia. As mães, maioria, cochichavam entre si. A soma dos cochichos produzia um escarcéu quase insuportável. Os pais, poucos, acenavam um para os outros à distância, desconfiados e confusos diante da situação. O professor que conduzia a reunião custou a por ordem na casa.

Foram feitas as considerações iniciais - aquelas que não causam polêmica ou controvérsia. Afortunadamente, transcorreu sem que nenhuma mãe levantasse a mão para questionar nada, embora algumas torcessem o nariz e trocassem olhares de inconformismo e desaprovação, não se sabe por qual motivo.

Ultrapassada essa fase preliminar, passou-se às regras e procedimentos que, por certo, devem reger situações como essas.

- O peso máximo admitido é de quinze quilos de bagagem por aluno para serem despachados no compartimento de bagagem do avião, mais cinco quilos de bagagem de mão! – falou o Professor.

Mal havia terminado de dizer, uma mãe levantou-se desesperada:

- Mas a minha filha vai levar uma caixa de vodca, como é que ela vai fazer?

O Professor surpreendeu-se diante dessa primeira intervenção maternal, entre incrédulo e assustado. Ainda mais que entre os alunos havia muitos menores de idade.

- Que ela leve a caixa de vodca e se o peso for menor que quinze quilos, leve o restante de roupas. – disse o professor, mudando imediatamente de assunto para que não despertasse nenhum outro comentário.

- O café da manhã será servido até as dez horas da manhã!

Também, quase que instantaneamente, uma mãe levantou a mão:

- Mas professor, e se meu filho ficar até tarde em alguma comemoração? Ele não vai acordar a tempo do café. Tinha que ser pelo menos até ao meio dia.

Algumas mães aquiesceram com a cabeça. O professor, meio sem jeito, disse que eram normas do hotel e que não havia como modificá-las. E aproveitando-se da oportunidade disse:

- Senhores e senhoras, o hotel não permite som alto nos quartos ou áreas comuns, permanência sem motivo nos corredores, farras e bagunça nas áreas de lazer, atos de depredação e...

- Mas professor – levantou-se, queixosa, uma mãe -, esta é a viagem da vida do meu filho! Ele quer aproveitar, curtir a vida... – completou.

- Minha senhora, esta viagem é a viagem da vida de seu filho e de muitos outros, mas acontece que, no hotel, estarão outros hospedes e outras pessoas a quem devemos respeitar! – disse o professor, em tom professoral, medindo palavras, porém soltando ares inflamáveis pelas ventas.

Depois de respirar profundamente por três vezes na tentativa de resfriar seu pulmão, continuou:

- Por motivos operacionais, costuma não haver possibilidade de pagar contas com cartão de crédito ou débito. Em razão disso, é conveniente que os alunos levem algum dinheiro para emergência. – continuou o professor.

- Ai, meu Deus! Meu filho não tem costume de andar com dinheiro! – tomou-se de aflição uma mãe, colocando a mão sobre a testa.

Àquela altura, um tititi tomara conta do salão. Quase ninguém ouvia ninguém. Uma revolta sem causa tomara conta dos espíritos. Já não importava mais o que o professor dizia. E como lhe era conveniente, o professor lia, ligeiro, as últimas instruções. E assim foi até decretar, à moda judicial, sem direito a recurso ou duplo grau, o fim da reunião.

Antes que fosse embora, um pai o cutucou nos ombros:

- O senhor vai fazer uma caminhada com os alunos na serra, não é? Nessa época está cheio de micuim, como é que o senhor vai fazer?

- Ora, meu senhor, vai quem quiser, não é obrigado! – falou meio impaciente.

- Minha filha pode ser alérgica. Quero um termo de responsabilidade da escola...

- Senhor – interrompeu o professor -, essa é uma atividade extraescolar, vai quem quiser, por livre e espontânea vontade, assumindo os riscos...

 

E antes que lhe fizessem outro questionamento, o professor deu as costas e foi embora, soltando ares inflamáveis pelas ventas...

Fio de bigode

16 de Abril de 2014, por Rafael Chaves 0

Ele lhe disse que a situação tinha chegado a tal ponto que nem todo o bigode junto, arrancado a poder de cera quente de depilação, podia mais atestar o compromisso e a honestidade de alguém. “Sujeito quando resolve ser fintão nem exorcismo em terreiro de macumba resolve. Ah saudade do tempo do fio de bigode!”, emendou. A indignação dele veio em razão de uma dívida que um sujeito tinha com ele e que já tentara de todo modo receber, inclusive através da justiça, e nada de receber. E o sujeito ainda tinha a capacidade e o desplante de caçoar dele, quando tinham a oportunidade de se encontrar pelas ruas da cidade, desferindo risos maquiavélicos e descarados a ele. “Desgraçado, filho de uma égua!”, xingou.

O fio de bigode lhe lembrou os tempos em que se mudou para Resende Costa. Ele, recém-formado, recém-casado, recém-empregado e recém-chegado, começou a circular com o seu pai a tiracolo, para que ele o apresentasse aos comerciantes e, naturalmente, lhe abrissem crédito. Crédito, diga-se de passagem, era a tal da caderneta. Na caderneta anotavam as compras do mês, linha por linha, produto por produto, preço a preço para, no final de mês, somar tudo e pagar conta. Costumes!

Ele tinha esse desejo recôndito de ter uma caderneta com seu nome estampado na frente. Sinal de que já podia andar com suas próprias pernas, seguindo sua vida e seu destino, independente. Poderia, então, fazer sua própria lista de compras e incluir nela coisas que quis quando era criança e não podia: manteiga, ao invés de claybom, doce de leite, ao invés daquela goiabada de chuchu e pirulito Zorro, hummmm, pirulito Zorro!

E o pai dele, que sempre privilegiou o indispensável, começou por levá-lo ao armazém do Cirilo, onde se vendia arroz, feijão, enlatados, óleo, sal, embutidos, os mantimentos, enfim, tudo atrás do balcão. Nessa época ainda não havia essa variedade que se tem hoje. Arroz era arroz, feijão era feijão, massa de tomate era massa de tomate, tinha escolha de marca não. E nem você podia atravessar o balcão, para selecionar o que fosse levar. Self-service foi uma inovação que veio depois.

Lembrou-se da cortesia com que o Cirilo os recebeu, cumprimentando seu pai que há tempos não via. Todavia sentiu desconforto quando percebeu, pela expressão em seu rosto, que Cirilo abria a caderneta meio a contragosto, quase que por dever. Alguma coisa estranha e nebulosa pairou no ambiente, que veio a se tornar conhecida e transparente quando, pouco tempo depois, o armazém fechou, encerrando suas atividades. E sua caderneta veio e se foi do mundo dos negócios praticamente virgem, quase intata.

 

Enquanto seu amigo desfilava impropérios contra seu devedor, cada vez mais efusivos e descontrolados em razão das inúmeras cervejas que haviam tomado no Bar da Maura naquele anoitecer de sábado, ele, em seus devaneios, somente assentia com a cabeça. “Emblemático”, pensou ele sobre o caso do armazém, o caso da caderneta que nasceu morta. De repente, ele o cutucou, apontando para o outro lado da rua: “é ele, é ele!”. E do outro lado passava um sujeito rindo um riso de escárnio em nossa direção...

A academia II

12 de Marco de 2014, por Rafael Chaves 0

Algum tempo atrás eu escrevi “A Academia”. Essa crônica “malhava” pejorativamente quem “malhava” em academias. Mas as coisas mudam...

Estou entrando no quinto mês de academia. O primeiro mês, em novembro, coincidiu com uma quinzena de minhas férias e eu frequentei a academia por seis dias apenas. Em dezembro vieram as festas de fim de ano que tomaram meu tempo e minha disposição por mais uma quinzena. Resultado: mais seis dias de academia. Janeiro é ano novo, propício para novos desafios, regimes, metas e etc.: dezoito dias de academia! E em fevereiro dezessete dias de academia, com carnaval e tudo.

Tudo começou por dois motivos. O primeiro foi quando eu, no sítio, senti dificuldades em montar num cavalo. Pensei que algo estava errado comigo, que não era tempo de eu ter essas dificuldades, ainda mais que tinha encontrado o David do Ciro há poucos dias, com seus mais de noventa anos, tocando uma boiada de cima de um cavalo. O segundo foi a notícia do casamento da minha filha, que vai ser realizado numa praia. Fiquei me imaginando encolhendo a barriga para as fotos em pleno casamento dela. Peguei o telefone e liguei para ela: “filha, acabo de me inscrever no programa “pai enxuto no casamento da filha!”

Um amigo meu, José Maria, me disse que nós temos que nos propor a ir à academia cinco vezes por semana. Fazendo isso, provavelmente iremos pelo menos quatro vezes. Mas se se fizer o propósito de ir três, provavelmente iremos duas vezes, ou menos... Ele sabe o que diz, tem minha idade e anos de academia. Assim tenho feito e assim tem dado certo.

Todos os dias eu acordo cedo, muito cedo. Acordo com o clarear do dia. Antes, enrolava na cama com o notebook, lendo e-mails, até a hora de levantar para ir para o trabalho. Agora não. Levanto, tomo um café e vou para a academia. Volto, tomo um banho e chego a tempo ao serviço. Quem diria? As coisas realmente mudam.

Há poucos dias, Cleisiane, uma amiga, postou na sua página do facebook que estava começando academia “até que a preguiça nos separe”. Acho que quer reaprender Inglês também (e eu também). Tudo agora, em 2014. A preguiça é nossa maior inimiga mesmo, ela tem razão. Mas ao mesmo tempo, ela é como um vício, uma vontade que a gente pode dominar e a satisfação de conseguir dominá-la nos dão um conforto e um prazer muito grandes. Tenho sentido conforto e prazer em frequentar a academia.

As pessoas começam a notar alguma diferença em mim. Dizem que emagreci. Neste carnaval, montando a cavalo, eu próprio reparei que estava mais ágil para montar. Pensei: “já estou quase igual ao Seu David”! E ri de mim mesmo. O casamento é em agosto. Até lá quero estar igual ao José Maria, o amigo de que lhes falei. Minha filha merece!

 

Apesar de tudo isso e ao mesmo tempo deixei um alerta no quadro de avisos lá em casa: “se me virem andando de camiseta regata mandem me internar porque pirei de vez”. Afinal, tudo tem limite!