De um ponto de vista

Bom senso

19 de Maio de 2021, por João Bosco Teixeira 0

Num artigo de quinze dias faz, falei que não via bom senso algum nas autoridades religiosas que, contrariando determinações, insistiam em manter seus templos abertos para receber os fiéis. Houve quem se manifestasse contrário à minha opinião, não sem apresentar bons argumentos. Entre esses, diziam da importância das celebrações comunitárias. Nada contra, pelo contrário, tudo a favor.

Não é disso, porém, que se trata. Vive-se particular momento no qual, mesmo acontecimentos importantíssimos, quais as reuniões no culto, devem ceder lugar a outras maiores exigências circunstanciais, provisórias.  E, o que é importante, sem desdenhar o que ficou relegado para um segundo momento.

Não nego, portanto, a importância da celebração comunitária. Nasci e cresci, formei-me e reformei-me, com absoluta convicção sobre isso. E aprendi: não há cristianismo sem comunidade. O assunto, porém, é outro. A saúde pública, no momento, proíbe as reuniões provocadoras de aglomeração antes, durante e depois dos eventos. E, para as autoridades competentes, essa norma atinge também os templos de oração. Não há, nessa determinação, nada de teológico, de religioso. Trata-se, exclusivamente, de cidadania, do esforço que a comunidade está fazendo para evitar circunstâncias facilitadoras da expansão do coronavírus. 

Disseram-me: “Mas as igrejas têm seguido o protocolo exigido.” Sei disso e sou prova. Quando participei de uma celebração eucarística, depois de obter o “ingresso”, pude verificar que na igreja havia, seguramente, menos de um terço de sua capacidade. Presença controladíssima.  Por isso digo: sou contra a proibição. Mas não posso concordar em desobedecer à norma, embora hipócrita, uma vez que o povo continua vítima de um transporte público incapaz de evitar a aglomeração.

Prezado leitor, passa da hora de nós católicos entendermos que a santa celebração do “Isto é meu corpo”, não pode se desvincular do mandamento que se segue: “Fazei isto em memória de mim”.

Passa da hora de entendermos que “meu corpo e meu sangue” acontecem no pão distribuído, no agasalho provido, no amparo dado, na acolhida ofertada, na sede dessedentada, no enfermo visitado. “Isto é meu corpo”, sim. Mas, “fazei isso em memória de mim”, também. Uma coisa não existe sem a outra. Acreditar que o pão e o vinho são o corpo e o sangue de Jesus, sem a repartição do pão e do vinho, é uma crença ineficaz, inconsequente até.  O mandamento “Fazei isso em memória de mim” pede que vejamos “o meu corpo e o meu sangue” no faminto, no desamparado, no sozinho, no pobre. A celebração de “isto é o meu corpo” sem o complemento do “fazei isso” é uma celebração de culto, sem vida.

O que se pede, no momento, é que celebremos espiritualmente a cerimônia eucarística, para continuarmos a ter a força, a coragem, o sustento para realizarmos o mandamento de Jesus: repartir o pão.

Sem receio: a celebração é, provisoriamente, dispensável. O mandamento, não.

Ele está no meio de nós

14 de Abril de 2021, por João Bosco Teixeira 0

Ele está no meio de nós. É o que de nós se pede neste dia. Dizê-lo em plena convicção. Dizê-lo como proclamação, como grito de absoluta confiança. Ainda que em algum desespero. Cremos, sabemos e vivemos a realidade da presença de Jesus em nós, conosco, para nós. Sem essa fé, não há o dia que o Senhor fez, não há a festa da vida e Jesus não é um vivente.

Dia que o Senhor fez”. Não pode haver dia maior. Dia, por excelência, da realização da Aliança, dia em que, convictamente, atestamos que Deus é um aliado fiel. Esta é a certeza que se tem quando se atende ao convite de não procurar entre os mortos aquele que está vivo. Esta a postura a que somos chamados: aceitar a boa nova, crer no Evangelho. Esta a evidência que temos: não é preciso buscar a Deus nos céus, pois ele está aqui embaixo, na terra, no meio de nós.

Páscoa, a festa da vida. Festa que nos leva a fazer uma decisiva opção pela vida. Festa da vida, pois dela é que Jesus se encantou. E porque se “encantou”, nos “encanta”, nos leva a declarar que Ele está no meio de nós. É essa declaração que ilumina nossas vidas presentes, com a garantia de uma vida prolongada sem tristeza, sem sofrimento, sem discriminação. Festa de todos e para todos, porque assim é a festa da vida. Festa em que o centro é a partilha. Festa que não se acaba. Festa em que despedidas não acontecem. Festa em que a distância física não separa irmãos. Festa em que a variedade e a diversidade de expressão de vida são riqueza.

Ele não está aqui: ressuscitou. Jesus é um vivente. Vivente de uma vida nova. Vivente a garantir-nos que tudo quanto aqui se constrói, em seu nome ou sob sua inspiração, não cairá no vazio. Vivente porque libertador. Vivente porque o encontro com ele continua sendo sempre provocador. Vivente porque junto dele não há a mínima possibilidade de mesmice. Jesus é. Mas, também, é o que vem e vem continuamente. Hoje e sempre a inflamar-nos o coração.

Então: este é o dia que o Senhor fez; esta é a festa da vida. É o dia do Vivente. Há que celebrar tudo isso, fazer brotar, tornar visível, inegável e inevitável a verdade de que Ele está no meio de nós, a despeito de tudo, até na aparente contradição com a vida cheia de mortes que estamos chorando.

Feliz Páscoa, de fé: Ele está vivo. De alegria: é festa. De paz: ele está no meio de nós.

Dois livros

17 de Marco de 2021, por João Bosco Teixeira 0

Li bastante, em 2020, até devido à quarentena. Foram leituras ricas. Duas delas, entretanto, considero terem sido as mais importantes e proveitosas.

Primeira delas, de Rosamund Bartlett, TOLSTOI, A Biografia. O subtítulo já diz tudo: uma biografia completa, inapelável, que deixa qualquer um satisfeito pela sua completitude.Pela obra, sabe-se por qual razão Tolstoi tornou-se um modelo arquetípico de seu país.  É que, além de compor com Dostoiévski e Tchekhov a extraordinária tríade de escritores russos, Tolstoi desempenhou papel relevante na política e na vida social de seu tempo. Dedicou-se à educação, como poucos, a ponto de desenvolver metodologia especial para o aprendizado do conhecimento, levando as pessoas a se posicionarem adultamente frente à realidade. Tudo a lhe custar o ódio do Governo. Tolstoi, uma leitura muito proveitosa, nas suas seiscentas páginas, em que palpita a rica e complexa Rússia.

O segundo livro que me prendeu foi A HUMANIDADE DE JESUS, do espanhol José M. Castillo. Do autor já conhecia A humanização de Deus, obra portentosa de mais de quinhentas páginas. Esta agora, nas suas pouco mais de cem páginas, convincentes, enraizadas nos Evangelhos, tornou-se para mim obra de necessária referência.

O autor lembra que o termo humano vem do latim humus, terra. Daí a conexão do humano com o que é literalmente próprio do mais baixo, do que é terra, do que está agarrado ao solo. E, portanto, oposto a tudo aquilo que significa grandeza, poder, honra. Foi o que Jesus viveu. É o que ele é. Falar da humanidade Jesus equivale a falar de sua condição terrena, de seu jeito de viver, radicalmente humano.

O livro vai demonstrando, pouco a pouco, a integridade e a grandeza da humanidade de Jesus, baseando-se o autor nas numerosas referências ao Evangelho. Uma demonstração contundente, porque evidente. E causadora de consequência: para muitos cristãos, crer na divindade de Jesus é mais fácil que acreditar em sua humanidade. Sem esta, não existe aquela. Esta nos aproxima dele. A outra nos afasta, pois o que somos é humanos. E como tal, apenas o que é humano é que pode ser objeto de nosso conhecimento e de nosso existir. O divino só nos é dado imaginar. Se achamos que conhecemos algo que é divino, é porque divino não é.

O livro de Castillo, que é doutor em teologia pela Universidade Gregoriana de Roma, é um monumento. Monumento é algo que celebra. E a “Humanidade de Jesus” celebra. Celebra a vida. Celebra a verdade que de nós humanos nada mais se pede que sejamos humanos. De nós nada mais se espera que sejamos humanos. De nós nada mais conta senão nossa humanidade. O livro celebra a plenitude da humanidade que Jesus de Nazaré vivenciou. Até na morte humilhante.

A grandeza – e o esquecimento – da humanidade de Jesus leva Castillo a dizer que vivemos muito mais a “religião” que o Evangelho. Somos mais “religião” que Evangelho. Empobrecidamente.

Sete Pecados Capitais

18 de Fevereiro de 2021, por João Bosco Teixeira 0

Numa manhã de sábado de janeiro, participei de um programa de rádio, com duas horas de duração, em que se falava sobre os SETE PECADOS CAPITAIS. Além do coordenador do programa, éramos três expositores: um psicanalista, um jornalista-radialista-influenciador digital e eu. Dada a diversidade de formação dos participantes, os vários enfoques emprestados ao assunto enriqueceram a informação. Não se tratou de um debate. Tratava-se, muito mais, de gerar informação sobre a matéria e elucidar os vários conceitos.

Desde minha primeira intervenção me posicionei contrário à ideia de pecado. É que pecado, gerador de culpa, é assunto restrito a cristãos católicos. E a soberba/vaidade, a avareza, a inveja, a ira, a luxúria, a gula e a preguiça são temas, são matéria comum a qualquer pessoa. Qualquer um, no seu dia a dia, pode ter nessas manifestações de personalidade, comportamentos indevidos, atitudes condenáveis, pelo excesso. Excesso gerador de desequilíbrio na personalidade. Isso, porém, nada tem a ver com o pecado incluído na doutrina cristã. É que o pecado, por sua definição, exige o pleno conhecimento de ofensa que se faz a Deus e a total liberdade de fazê-la: eu sei o que estou fazendo e quero fazê-lo. A instrução latina dizia: sciens et volens (sabendo e querendo). Convenhamos: além de não ser fácil pecar, querer transformar em pecado características, traços de personalidade, é um despropósito.

Além do mais, quis me opor à ideia de pecado porque em nenhuma de tais manifestações de comportamento aparece a ideia, o enfoque social. E se algum pecado hoje cometemos, é o pecado de omissão diante de tantos problemas vitais. Não por nada, o grande teólogo Ratzinger, emérito da Cátedra de Pedro, disse que os pecados capitais hodiernos são: a pressa, a manipulação genética, a interferência no meio ambiente, o causar a pobreza, a muita riqueza, as drogas e a injustiça social. Quer se concorde quer não com essa lista do bispo emérito de Roma, há nela um claro viés social, como convém.

O diálogo longo com os colegas do programa foi muito proveitoso, sobretudo porque deixou clara a noção de excesso, o que, sem dúvida, deve ou pode ser evitado, sob qualquer ponto de vista.

De minha parte, solicitada uma palavra final, não pude deixar de dizer: erro hoje, não falei pecado, é a desumanização. Essa atitude, sim, é causadora de males perniciosos, ofensivos à humanidade, indignos dos que se dizem seguidores de Jesus de Nazaré.

E veio-me, espontaneamente, a lembrança de Guimarães Rosa: Existe é homem humano: Travessia.

Assim é que nos convém caminhar.

                  

NOTA - O Catecismo da Igreja Católica, editado depois do Vaticano II, na edição das Vozes, de 1993, de setecentas páginas, dedica seis páginas ao tema do pecado. E em tais páginas, três linhas para falar sobre o que são os pecados capitais, sua origem e quais são eles. Muito significativo. Faz muito sentido.

CUIDADO

20 de Janeiro de 2021, por João Bosco Teixeira 0

Um programa de televisão indagou de certo número de pessoas qual a palavra que melhor sintetizava o que a população viveu em 2020.

Houve uma série de respostas, como se pode imaginar. Ao final, concluiu-se pela palavra CUIDADO, que superou outras igualmente significativas, quais “generosidade”, “responsabilidade”, “solidariedade”.

Houvesse eu sido indagado, também teria dito a palavra CUIDADO. Do latim arcaico coitare, significa pensar em, pensar sobre. Dar atenção à saúde. Uma palavra síntese, portanto, de tudo quanto se fez em dois mil e vinte, face à Covid-19. De fato, além do CUIDADO notável por parte dos profissionais da saúde, parte notável da população esteve, direta ou indiretamente, transitória ou permanentemente, envolvida, preocupada no dispensar CUIDADO às pessoas, contaminadas ou não pelo vírus destruidor de vidas, aniquilador do bem-estar social e limitador das manifestações de carinho e afeto.

CUIDAR é dimensão essencial da vida. É no dispensar cuidado que as pessoas tomam consciência dos limites da vida, na fragilidade da existência e, por conseguinte, se supera a arrogância, incompatível com qualquer postura humana. Mas é também pelo CUIDADO que se alcançam e se conhecem os valores da existência. Pelo CUIDADO é que se chega ao outro, que se acolhe o outro na realidade que o envolve. Pelo CUIDADO é que se pode chegar a uma forma de situar-se no mundo, com a delicadeza espiritual expressa na empatia e no sentimento de admiração. Sem o CUIDADO, nada de humana interação. Pobreza de vida.

Além do mais, o CUIDADO, a atenção dispensada ao outro, o preocupar-se com o outro traz consigo um outro fator de importância capital para a vida saudável das pessoas.  Quem se sente CUIDADO, sente-se RECONHECIDO. Que riqueza de atitude: prestar reconhecimento ao outro. Que pobreza de atitude: não prestar reconhecimento ao outro na sua peculiar característica. Sem o CUIDADO não há reconhecimento. E sem reconhecimento ninguém é gente, ninguém é nada, a pessoa não existe. Se numa pessoa nada se vê, nada se reconhece, é o mesmo que dizer da sua inexistência. Pois bem, é o CUIDADO que leva alguém a reconhecer o outro. E como cuidar é também dar atenção à saúde, quando se cuida se está dando atenção à vida. Nada mais essencial.

O grande biólogo chileno – Maturana – escreveu em um de seus livros: Sustentei muitas vezes que, se não todas, a maior parte das doenças que nós seres humanos contraímos, têm sua origem no desamor e, igualmente, se curam pelo amor no amar. Ora, expressão maior do amor é o CUIDADO.

Dois mil e vinte e um chegou. Vamos festejá-lo. E levá-lo com CUIDADO, pois festejar é partilhar, é ter com quem se encontrar, é reconhecer que outros, além de nós, fazem jus à festa em que, mais que qualquer coisa, é preciso ter CUIDADO, pensar no outro como possuidor do direito a uma vida reconhecida.