De um ponto de vista

“São filhos de Deus”

13 de Dezembro de 2020, por João Bosco Teixeira 0

Quando os jornais noticiaram que o Papa Francisco reconheceu que “homossexuais têm o direito de estar em uma família”, muitos jornalistas fizeram questão de dizer que o tema divide a Igreja Católica. 

Francisco, ao dizer que tais pessoas também “São filhos de Deus”, não faz outra coisa senão proclamar sua fidelidade ao Evangelho de Jesus, seu compromisso com o reino de Deus, que é reino de justiça e justiça é dar a cada um o que é seu.

Essa é uma questão em que não é possível tergiversar. Quando Jesus, diante da prostituta, proclama “quem não tiver pecado atire a primeira pedra”, tudo ficou definido: agora há uma nova lei, háum novo parâmetro de vida. A antiga lei mandava apedrejar aquela mulher. A nova lei declara a superioridade do pecador sobre o pecado. Ficou estabelecido, para sempre, que não há atitude alguma que possa superar a dignidade da pessoa. Além disso, naquele momento Jesus condena, com toda clareza, a hipocrisia dos observantes da lei em prejuízo do espírito da lei.

A religião católica, como instituição, tem suas normas, suas regras. Por isso é que o Papa não fala em casamento de homossexuais. Ele fala de família:“Não se pode expulsar ninguém de uma família”. Ora, família não é uma instituição religiosa, portanto não está sujeita a normas institucionais desse tipo.

Francisco fala de coisas que interessam às pessoas de boa vontade, àquelas pessoas dispostas a sair de seu espaço cômodo e ir ao encontro da vida borbulhante, da vida que fervilha, cheia de contratempos e de desencantos, e que, mesmo assim,é vida, ou, sobretudo assim, é vida. Francisco convida os cristãos a abandonarem o constituído para irem em busca do constituinte, daquilo que qualifica, identifica, justifica uma vida de fé. Sabe-se quanto é mais fácil desconsiderar as interrogações da vida que enfrentar seus questionamentos. Quanto é mais fácil crer que amar, contemplar que fazer, embora para se amar seja preciso crer, para se fazer seja preciso contemplar.

Os amantes da lei pela lei se incomodam com as atitudes de Francisco, se escandalizam. Exatamente como aqueles que, ouvindo Jesus recomendar a superação da lei a favor dos homens, no tocante, por exemplo,à observância do sábado, escutaram do mesmo Jesus: “Bem-aventurado aquele que não ficar escandalizado por causa de mim” (Mt 11,6).Mas Jesus é o Evangelho, não é a Igreja.

Francisco escandaliza? Francisco divide a Igreja?

Não. Quem escandaliza, quem divide a Igreja Católica não é a posição do Papa sobre este ou aquele tema. Quem escandaliza, quem divide é o próprio Evangelho. É a sua observância. É a fidelidade a ele.

Se Igreja e cristãos estão se sentindo divididos pelas palavras de Francisco, convém que ambos se perguntem se não é o Evangelho que os está dividindo.  A Igreja pode ser dividida. O Evangelho, não.

Inteligência espiritual

18 de Novembro de 2020, por João Bosco Teixeira 0

Uma grande amiga tomou conhecimento do livro “Inteligência Espiritual”, da doutora Dana Zohar, da Universidade de Oxford. O livro trata da matéria contida no título. E a amiga indagava: Que acha?

Respondi-lhe: “Você quer me colocar numa ‘sinuca de bico’ com essa questão? Em todo caso, não vou deixar de dar minha opinião.”

Nós sempre entendemos por inteligência aquela “aptidão para compreender as relações que existem entre os elementos de uma situação e a ela se adaptar a fim de realizar seus próprios fins”.  Durante muito tempo, tal concepção era única e suficiente. A partir da primeira metade do século passado, Thordinke (falecido em 1949) já falava de três inteligências: a inteligência abstrata ou conceitual, a inteligência prática e a inteligência social. No final do século, ou um pouco antes, passou-se a falar de inteligência emocional.

Muitos físicos falam de muitas inteligências. Mas, não sei bem que conceito de inteligência adotar em tais casos. É certo que a “aptidão para compreender as relações” é muito diversificada em um engenheiro, em um artista, em um marceneiro ou em um médico.Como, porém, é isso neuro-fisiologicamente? Haverá partes distintas no cérebro para cada uma das inteligências?

Por isso, minha opinião é assim: não há dúvida de que não existe ninguém puramente inteligência, puramente emoção, puramente “espírito”. Somos, constituímos uma belíssima e extraordinária unidade, continuamente sujeita a mil condicionamentos que nos levam a viver dessa ou daquela forma, a emitir os mais variados comportamentos.  Hoje, esse movimento expresso no livro citado pela amiga toma fôlego. O próprio brasileiro Marcelo Gleiser, físico de renome, vem dando notável contribuição a essa nova preocupação da física, tendo ganho, em março de 2019, um prêmio considerado “O Nobel da Espiritualidade”. Na semana passada, ele participou de um encontro sobre espiritualidade, que ele define como “uma conexão com algo maior do que somos que inspira crescimento e humildade”.

 O que sinto nesta hora (talvez isso seja inteligência emocional) é que a humanidade não anda se aguentando, sustentada apenas sobre os próprios pés. É muita coisa, muita coisa mesmo, que está fora dos trilhos. Se não conseguirmos enxergar além dos nossos passos, se não conseguirmos imprimir aos nossos passos olhares mais longínquos, “sobre algo maior do que somos”,acho que chegará um momento em que a loucura, ou o desespero, será a saída. E isso é muito triste.

Então, que venham os físicos nos ajudar. Tenho profunda convicção sobre a dimensão espiritual do ser humano. Mas não sei se isso é inteligência espiritual. Sei, sim, que se pode até “perder-se no espírito”. E, à luz dele, estabelecer relações fortes, capazes de alimentar, iluminar e até transformar vidas.

À amiga, médica patologista e cantora lírica, casada com um médico doutor em doenças infecciosas, eu não duvidei em dizer que existe, sim, uma inteligência espiritual. Afinal, neles, na vida deles, vibra o transcendente, feito de dedicação à ciência da vida, à arte e a tanta coisa mais que “entusiasma”, palavra que no grego significa “dentro de deus”.

Religião mal concebida e mal resolvida

11 de Outubro de 2020, por João Bosco Teixeira 0

“As crises e as mudanças pelas quais a vida e a cultura ultimamente estão passando, nossas dúvidas e nossas obscuridades, as muitas perguntas sem resposta que atualmente se nos apresentam, justamente no momento em que alcançamos os mais altos níveis científicos e tecnológicos, colocam em evidência não só as limitações que nossa condição humana arrasta consigo, mas, além disso, estamos vendo melhor do que nunca que o recurso ao divino, ao religioso, ao sagrado também – com toda certeza – está mal concebido e mal resolvido”.

Essas são palavras de abertura do livro “A humanidade de Jesus”, do extraordinário teólogo José M. Castillo.

Castillo não mora aqui, é europeu, é espanhol. Parece, no entanto, estar escrevendo face a acontecimentos que temos presenciado. Parece ter presenciado as manifestações na porta do hospital em que, uma menina de dez anos, engravidada por força de estupro, foi submetida a aborto. Parece conhecer, em detalhe, a governança do santuário dedicado ao Pai Eterno, que vai acumulando riqueza sobre riqueza, ao que parece nada para atender ao espiritual. Pelo jeito, o escritor espanhol conhece bem a força do grupo evangélico no Congresso Nacional que diz empenhar-se na preservação dos valores cristãos para a sociedade, sem nunca pensar em abrir mão de privilégios e mais privilégios pessoais. Castillo, com certeza, tem ouvido os gritos e contemplado as lágrimas de deputada federal que, acusada da morte do marido, pastor evangélico, suplica pela preservação de seu mandato popular. Ela que se recusava a divorciar-se para não escandalizar os frequentadores de sua igreja.

A ignorância religiosa faz menos mal que o seu conhecimento voltado para o mal. O ateísmo é menos maléfico que a crença usurpadora dos direitos das pessoas. A não necessidade de Deus é melhor que a crença invocadora de Deus para caminhar por caminhos que não sejam os de Deus, isto é, que não sejam favoráveis aos humanos.

Ao avanço tecnológico e científico não tem correspondido o avanço na concepção do transcendente, na concepção do profundamente humano que leva, que pede, que exige a dimensão divina. O humano absoluto invoca o “acima das coisas”. O pouco humano é que não se comove diante da criança grávida. O pouco humano é que não sabe servir a Deus sem muito dinheiro, sem templos faraônicos, sem investimentos lucrativos. O pouco humano é que se preocupa com o próximo sem tocar nos próprios prazeres. O pouco humano é que se rodeia de numerosos filhos e não se incomoda de não terem eles um pai.

“Recurso ao divino, ao religioso, ao sagrado mal concebido e mal resolvido”. Espíritas, evangélicos, católicos sabem, muito bem, que, na base de suas convicções religiosas, ou há um compromisso radical com o humano ou nunca encontrarão o sagrado, o religioso e o próprio Jesus, divino, porque profundamente humano.

Fora do humano não há espaço para o Deus de Jesus.

O vice-treco do sub-troço

16 de Agosto de 2020, por João Bosco Teixeira 0

Li na Folha de S. Paulo uma articulista interessante. Começou por dizer que “Dor é o que sinto, pois é tão difícil entender este país”. Depois, narra dois fatos. “Vi na televisão o segundo homem do Ministério da Saúde enxotando de uma reunião um garçom que só tentava fazer o seu trabalho. Com gestos bruscos de braço, gritava: ‘Sai daí. Eu falei ‘não’”. Mais adiante, narra outro acontecimento, no qual teve participação. Ocorreu num aeroporto. Buscando interagir com um cidadão que se comportava de modo pouco elegante, ouviu dele, de maneira arrogante: “Você sabe com quem está falando? ”.

Não se pode culpar a pandemia, a quarentena por tantos desaforos. Atribuo tais comportamentos a uma razão muito simples: “prepotência”. Segundo o dicionário, prepotência significa abuso de poder, abuso de autoridade, tirania, poder mais alto, entre outros significados. Vou bem além, pois o dicionário não cuida da gênese psicológica do prepotente.

Ele é um cego. Não vê ninguém, nem acima nem além de si mesmo, apesar de estar sempre acompanhado. Mas todos que o acompanham estão “sub-ele”. Ele é surdo: não ouve ninguém. Se ele ouvisse, correria o risco de provar alguma insatisfação, o que não lhe convém. Ele se cabe, ele se basta. É cheio de si mesmo, rempli de soi-même, na bonita expressão francesa. Mas, diferentemente do surdo, ele não é mudo. Falar é sua arma preferida. Aplica-se em falar, para não correr o risco de ouvir. Ele tem grande cuidado consigo mesmo. Ele se preserva. Ele se blinda. Ele não pode dividir nada do que é seu com outros. É um absurdo ele precisar de alguém. Ele se enxerga como tendo tudo o de que necessita para estar presente, não importa onde, em que lugar, em que tempo. E ele não conhece derrota. Seus fracassos são fruto da incompreensão alheia. Ele se orgulha em dizer que uma mentira dele vale mais que duas verdades de seu interlocutor.

E não se pense que ele se julga uma pessoa que abusa do poder. Não. Ele tem o poder, ele é o poder. Não há como abusar de alguma coisa que ele é, que ele pensa que é. O prepotente é um fraco. Só aprendeu a obedecer. Por isso, só sabe mandar.

É um pobre coitado. Ele não sabe que o único lugar em que estará sozinho, sem precisar de ninguém, mas também não tendo ninguém a quem dar ordem, será no caixão.

Para muita gente, trata-se de tipo insuportável. Só que o prepotente não se vê assim. Ele se considera um iluminado. Tem certeza de que quem tem estrela não precisa de bússola. Ele se julga um estrelado.

Para Mário Sérgio Cortella, entretanto, “essa gente é o vice-treco do sub-troço”.

O leitor poderá indagar se esse tipo de personalidade, assim puro, existe na natureza. A experiência de cada um responderá se sim ou não. O interessante, porém, é que para cada um de nós poderão ocorrer momentos em que assim nos comportemos. Vale pensar.

Alguma coisa vai mudar?

12 de Julho de 2020, por João Bosco Teixeira 0

Nesse tempo de pandemia, uma pergunta não nos abandona: quando tudo isso acabar, vai mudar alguma coisa em nossas vidas? Para muitos, tudo continuará como sempre. Para outros, não.

No meu campo específico de conhecimento, educação e escola, tenho absoluta convicção: é preciso mudar. Se vai, não sei. Mas que seria preciso, não tenho dúvida.

Faço algumas considerações relativas apenas ao aprendizado, nos níveis Fundamental II e Médio da rede pública.  O que fazer?

Em primeiro lugar: foco absoluto na leitura. Leitura como capacidade de interpretação, de crítica, de dedução, de indução, de criatividade, como competência para dizer com as próprias palavras o que se leu ou ouviu. Leitura é tudo isso. Longo aprendizado, indispensável num mundo bombardeado com tanta informação. Leitura para se saber ler a vida.

Em segundo lugar: foco nas quatro operações da matemática. Saber que as pessoas se servem de tal conhecimento o tempo todo na vida: sempre se está fazendo cálculo, organizando tempo e espaço, equacionando ofertas que se apresentam a cada instante, ponderando oportunidades.

Foco nessas duas áreas, sem brincadeira, sem concessões.

Em terceiro lugar: reduzir drasticamente os conteúdos das muitas disciplinas. É incrível o que se oferece e se espera dos alunos. O peso das mochilas já o diz suficientemente. São programas imensos que não deixam oportunidade alguma de serem levados a efeito, seja por parte do professor, seja por parte do aluno.

Em quarto lugar: trocar a metodologia do ensino. É hora de acabar com aulas para vinte, trinta alunos. Enganação. Dinheiro jogado fora. O percentual de alunos que aprendem em aula expositiva é baixíssimo. Dentre os poucos que aprendem estão aqueles que não precisariam do professor para aprender. Fazer o quê, então?

É preciso criar o máximo de oportunidade de encontro entre professores e alunos. Encontros individuais ou, quem sabe, em grupos de até três. Grupos maiores já viram brincadeira enganadora. Todos sabem disso.

Não é simples, mas é factível. Imagine-se um professor que dê quatro aulas por semana, de cinquenta minutos, para vinte e cinco alunos: ele terá duzentos minutos à sua disposição. Se atendesse seus alunos individualmente, teria oito minutos para cada um, por semana. Se atendesse dois de cada vez, seriam dezesseis minutos. Se três, vinte e quatro minutos. Não tenho a menor dúvida de que tal tempo seria muito melhor aproveitado que com todos os alunos na sala de aula durante os duzentos minutos. Como é evidente, a metodologia de ensino, o material instrucional, tudo teria que ser revisto.

Algumas dificuldades existem. A maior é vencer o pressuposto de que o professor ensina. Não ensina, o aluno é que aprende. O método, pois, tem que se radicar na atividade do aluno e não na do professor.

A escola precisa mudar, no aspecto do aprendizado. As coisas não são simples. Mas, se a escola e o professorado quisessem, seria possível encontrar caminhos mais gratificantes para o próprio trabalho.