Retalhos Literários

Os suaves e ondulados caminhos da leitura

17 de Dezembro de 2014, por Evaldo Balbino 0

A leitura, em todos os níveis, é um caminho de prazer e dificuldades.

Quase toda criança aprende a falar com naturalidade, e só depois adquire a tecnologia da escrita. Assim foi o mundo. Primeiro o ser humano aprendeu a falar, para depois aprender a escrever. A escrita vem depois da fala. Sendo assim, toda criança engasga, tropeça, titubeia, quando adentra pelas primeiras letras. E titubear faz parte da vida.

Eu, por exemplo, sempre gostei das letras. Mas qual não era o meu sufoco quando, na 1ª série, minha alfabetizadora, com vara de marmelo nas mãos, ia me tomar lições de leitura na frente dos meus colegas! Era uma vara para apenas apontar no quadro o que deveria ser lido por meus olhos e bocas de infância, mas mesmo assim eu tinha medo de que ela também viesse a ter outra serventia para menino tão tenso como eu me mostrava na frente de todos. A professora colocava palavras e frases no quadro, que de negro não tinha nada. Era um quadro esverdeado, meio gasto, encimado por um crucifixo sustendo um Cristo com rosto sofrido. O que eu lia eram trechos que ela tirava de antigas cartilhas. E me engasgava com palavras tão parecidas. O macaco é da Moema. Mimi mia e o moinho mói. O chapéu é de Seu Chico. Ele chegou e tirou o chapéu. Seu Chico é educado. A faca é afiada. O foguete vai subir... E assim eu ia atropelando palavras, custando a entender, por exemplo, por que o “u” desaparecia da minha boca numa palavra como “foguete” ou por que o “e”, no final desta mesma palavra, saía fantasiado de “i”. No entanto, mesmo manco na minha leitura, o nervosismo embaralhando tudo, eu amava aquelas palavras solteiras e também as casadas, juntando-se todas em frases e textos que me fascinavam.

Apesar das dificuldades, lembro bem, a professora, mesmo brava, investia na leitura dos alunos. E em casa meus pais me deixavam brincar com as palavras, fazer amizade com elas. Se os familiares fazem isso, as dificuldades são logo superadas, e o ato de leitura deslancha.

Outras dificuldades persistem mais ao longo da vida, como, por exemplo, a de ter de lidar com textos que nos puxam o chão dos pés, que nos sacodem, que nos chamam para a vida, que nos fazem acordar para as dores do mundo.

Mesmo assim, porém, ler sempre é prazeroso, pois a leitura nos leva a pensar melhor a vida, a analisar de modo mais acurado o mundo que nos rodeia. É lógico que estou falando de boas leituras, de textos que me aguçam o estar no mundo, que me tornam um sujeito pensante e, no caso da literatura, também um sujeito desejante e sensível. Aí, então, estou falando de literatura, da palavra em estado de arte, da palavra que me tira do chão e que por isso mesmo me coloca nele, me planta nele. Estou falando do poder da literatura de me revelar a vida, e de fazer isso com estética, com o poder poético das palavras. Ler, e ler literatura, é abrir os olhos para o mundo, é enxergá-lo com atenção, com sentimento, com espírito crítico.

Fico pensando, às vezes, nas pessoas que não gostam de ler. Se não gostam, é porque não foram acostumadas a isso ou porque ainda não sentiram a necessidade de um aprofundamento nas questões da vida, do ser humano, dos sentimentos, do mundo, portanto. As pessoas que não gostam de ler geralmente ficam satisfeitas com as superfícies das coisas, e não procuram, nos diversos momentos de sua vida, pensar mais, sentir plenamente o ar que respiram, a beleza de toda a vida e a tristeza de toda ela também.

Percebemos nitidamente em conversas quando uma pessoa não gosta de ler: seu papo é mais raso, menos provocativo. Até mesmo à mesa de boteco podemos encontrar pessoas que leem. Afinal, ler não exclui outras atividades da vida. O problema é que muitos subsituem a leitura por essas outras atividades, e se esquecem deste artefato maravilhoso que criamos ao longo da história humana: as palavras.

Eu sempre falo para meus alunos que é mais fácil ir para um boteco, jogar uma sinuca, beber uma cerveja ou um refrigerante, comer uma pizza, andar numa roda gigante. Tudo isso é fácil e bom. Não nego nada disso, pois tudo faz parte da vida. Mas ler é mais difícil, porquanto demanda de todos nós silêncio e solidão. É uma solidão falsa, já que na verdade, quando estamos lendo, conectamo-nos com autores e outros leitores do mundo. Lendo, estamos conectados com outros tempos e espaços.

 

A leitura muda nossa vida, porque nos tira do comodismo do pensamento, nos move na direção da mudança de pensamento, trabalha nossos preconceitos. Tudo bem que há leitores assíduos extremamente preconceituosos. Mas hoje em dia, cada vez mais aparecem textos e livros que nos levam a quebrar preconceitos. E eu defendo que, quanto mais abrirmos nossas mentes, nossos modos de pensar poderão aceitar mais as diferenças, poderemos aceitar mais os outros no dia-a-dia.

A contemplativa ação da poesia

13 de Novembro de 2014, por Evaldo Balbino 0

A poesia requer uma contemplação inteligente, um sentido apurado das palavras e do poder que elas têm no mundo. Assim, como crítico e como poeta, estabeleço um tipo de namoro com as palavras. Um namoro cheio de estranhamentos. Pois a linguagem poética também pode adquirir essa função de choque. É quando você tem de parar de ver as palavras em seu sentido diário e comunicativo para, num ato amoroso com elas, debruçar-se sobre seus corpos verbais e ver neles outras possibilidades, outros usos, outros sentidos.

A poesia, como sempre, é o que me tira do sufoco da vida contemporânea, me ensinando, inclusive, a encarar mais esse sufoco. Devemos ler poemas sem pressa. Cada poema merece nossa atenção. Só compreendemos a poesia se mergulhamos nela, se sentimos cada palavra falando conosco. Um poema deve ser lido com amor, com vagar, num ato lento e demorado.

Digo a todos os poetas, àqueles que escrevem por necessidade psíquica e espiritual, que persistam na escrita e na publicação dela. Escrever literatura, escrever poesia, é remar contra a corrente, mas é remando que vamos ganhando força e maturidade. Porque escrever é conhecer-se e conhecer os outros. Camões já lamentava sobre a surdez do mundo para com a poesia, mas não deixou de poetar por isso.

Também digo a todos os que leem poesia, que vale a pena fazer isso. Lendo, não passamos a vida à toa, como nos disse certa vez Manuel Bandeira. Quando terminei meu curso de Letras, ganhei da minha ex-professora Regina Coelho uma terna e rica lembrança: as poesias completas de Manuel Bandeira. Estrela da vida inteira. Um título assim, tão alto, só pode é fazer brilhar nossa vida. Brilhar como brilhou a poesia desse maravilhoso franciscano nas letras brasileiras. De uma capa azul a ponto de dar paz, o volume que ganhei da minha ex-professora traz o belo título encimado pelo nome do autor. E mais acima, no topo mesmo da capa da brochura, uma grande estrela, num brilho opaco, mas imenso, iluminando todo o livro e a minha vida. Transcrevo aqui o que me escreveu em dedicatória a minha mestra: “‘Passei a vida à toa, à toa...’. Bandeira que nos perdoe, mas sentir a poesia é passar pela vida plenamente, não é mesmo, Evaldo? A você uma lembrança de quem muito lhe quer bem”.

Passar pela poesia não é ato vão. Passando por ela, fugimos dos vãos da existência. Caminhamos de braços abertos, e não cruzados. Abertos como os de Cristo em seu sangue derramando, abertos para que a vida aconteça com plenitude, a ponto de vencer a própria morte.

Contemplar não é ficar parado. Contemplar é amar com ação, pois queremos o movimento puro. Cantar TE-DEUM nos faz um gado no alto da colina, mais próximos das nuvens, voando com elas. Ficamos mais próximos de Deus, andando sobre montanhas.

Contemplar, pela poesia, é ver Santa Teresa d’Ávila sendo perfurada por um anjo em forma corporal, seta de fogo devassando-lhe as entranhas amorosas. Contemplar é ver Teresa em sua alcova escrevendo enquanto uma luz desce sobre sua cabeça, seu corpo levitando de palavras, e as sinuosas e barrocas linhas se compondo. Contemplar é também ver Teresa, já envelhecendo, no entanto firme no propósito de fazer aquilo que só homens faziam. Sobre muares, atravessando a Espanha, cortando o frio das madrugadas, batendo palma para Deus e para Cristo, fundando conventos e os administrando.

Contemplar é ser Marta e Maria. É poético ler isto, em São Lucas: “E aconteceu que, indo eles de caminho, entrou Jesus numa aldeia; e certa mulher, por nome Marta, o recebeu em sua casa; E tinha esta uma irmã chamada Maria, a qual, assentando-se também aos pés de Jesus, ouvia a sua palavra. Marta, porém, andava distraída em muitos serviços; e, aproximando-se, disse: Senhor, não se te dá de que minha irmã me deixe servir só? Dize-lhe pois que me ajude. E respondendo Jesus, disse-lhe: Marta, Marta, estás ansiosa e afadigada com muitas coisas, mas uma só é necessária; E Maria escolheu a boa parte, a qual não lhe será tirada”.

 

Mas também é poético ver obras acontecendo, ver as mãos se movimentando, não apenas em louvor num altar. Amo as mãos em movimento para a vida, antes que venham a parar definitivamente, colocadas sobre um peito frio e dormidas. E as amarei depois também, lá nos sítios onde se esconderem e onde ficarão brancas, magras, porém levando consigo memórias dos gestos que fizeram, das sensações de outras mãos que seguraram e lhes ficaram na memória digital da existência.

As inquietas asas da paz

17 de Outubro de 2014, por Evaldo Balbino 1

Recentemente, num ritual simbólico pela paz, um dos pombos soltos pelo papa Francisco e por duas crianças acabou atacado instantes depois por uma gaivota e por um corvo. O animalzinho foi estraçalhado em pleno ar, perante os fiéis terrificados que estavam em frente do apartamento papal. O incidente ocorreu durante a tradicional oração do Ângelus, na Praça São Pedro, no Vaticano.

Pipocaram pela mídia comentários fanáticos e reducionistas sobre o episódio. Transformou-se um incidente em maus presságios.

Tudo bem que o papa passou por um constrangimento, numa cena delicada, tão contrária aos sentidos que o ritual buscava apregoar. Mas daí associar uma ocorrência dessas ao dilema da falta de paz no Globo já é demais!

Foi uma fatalidade os pombos serem soltos naquele momento, no mesmo momento em que dois predadores estavam à espreita. A vida é assim. Basta estar no lugar errado, na hora errada, e muita coisa ruim pode deflagrar-se. Eu, particularmente, não gosto de ver cenas de predação. Tanto que eliminei da minha TV aqueles canais que fazem disso um espetáculo. Um amigo meu, da área de ciências biológicas, já me chamou de sentimental por isso e, o que é pior, acusou-me de preconceituoso nessa minha atitude. “A natureza é bela”, ele me disse. “E como tal, tudo nela é belo. Faz parte da vida esse tipo de coisa”.

Obviamente não aceitei a acusação. Refutei-a com unhas e dentes, como um predador ataca sua presa. E minhas unhas e meus dentes foram palavras com as quais me defendi. Sei que a predação faz parte da vida, da tal cadeia alimentar. Sei que a vida é uma cadeia, uma inter-relação em que a morte é necessária à vida. Afinal, não matei as aulas de Ciências e de Biologia que tive na escola. Tanto não as matei, que refutei a acusação impiedosa do meu amigo cientista com argumentos tirados da minha memória escolar.

– Simplesmente – eu lhe disse – não sou obrigado a ver as coisas ásperas da vida sendo transformadas em espetáculo. Suporto a morte na arte. Num quadro pintado, numa música que me faz sofrer, numa descrição poética que me abala. Mas da realidade nua e crua não dou conta. Muito menos dela sendo objeto de contemplação para olhos que brilham com a dor. Pois é isso o que acontece. Tenho medo dessa mania sadomasoquista dos pobres humanos que somos.

Ele me olhou com olhar de superioridade e foi dizendo que os “literatos” são mesmo de outro mundo, aéreos demais da conta.

Eu me silenciei depois disso. Não me senti mais na obrigação de dar explicações. E valeu a pena eliminar os tais canais. Passei a dormir, desde então, com mais tranquilidade. Uma irrequieta calma, pois estou sempre cônscio de que em algum momento e em algum lugar do planeta sempre há mortes e dores cedendo lugar às vidas. Isso é necessário.

Mas voltemos ao episódio do pombo devorado na Praça São Pedro. Sem fazer as malucas e fanáticas conexões que vi serem feitas, tal cena me fez pensar muita coisa. O meu amigo cientista, decerto, não estranharia os meus pensamentos. Afinal, mentes aéreas podem voar mesmo. Mas nesses voos há certa lógica. São os fluxos que como sangue nos alimentam as veias da memória.

A cena cheia de paradoxo – um pombo devorado num ritual pela paz – me fez pensar sim na falta de paz no mundo. Sei que o ataque dos predadores não fazia parte do ritual, mas infelizmente neste se inseriu. Pensei nas guerras, nos genocídios, na ganância desmedida do ser humano, na sua sede insaciável de mandar e poder, e tudo isso me entristeceu.

Também pensei nos pombos que aparecem massacrados cotidianamente nas ruas de Belo Horizonte. Mas esses não têm as vidas estraçalhadas para alimento de outros seres. São atropelados pela pressa das pessoas, por uma violência dos motoristas que não respeitam vidas, principalmente quando são as de simples pombos. E também, é claro, há os que atropelam humanos e não prestam socorro. Mas graças a Deus estes são a menor parte dos violentos irresponsáveis.

Igualmente me lembrei de outra coisa. Num dia do ano de 2006, um cunhado meu agonizava seus últimos dias de vida na Santa Casa de Belo Horizonte. Minha irmã e eu estávamos atrasados para chegar ao hospital. Pegamos um táxi. Quando percorríamos a Av. Alfredo Balena, vi um pombo amassado no chão, mais à frente do veículo, e lamentei por isso. Ver as penas e as vísceras numa única massa, sem vida, só fez aumentar minha tristeza, a angústia de ver o fôlego do meu cunhado esvaindo-se. Ele estava em coma no centro de terapia intensiva. Como resposta ao meu tom de lamento, o taxista deu uma risada fria e foi despachando com desenvoltura: “Menos um pra encher o saco!”.

 

Paguei a corrida sem ânimo e em silêncio. E seguimos nosso caminho. Há palavras que ferem, que desarvoram qualquer paz, principalmente em certos momentos da vida.

A crítica contemplação

17 de Setembro de 2014, por Evaldo Balbino 0

Depois de ter lido minha crônica “Nós e os folhetins”, publicada nesta coluna em novembro de 2012, um amigo, o André Eustáquio, mandou-me comentários em tom de cumprimento. E neles ele me dizia que também assistia a novelas já havia bastante tempo e que estava numa fase de escolha das melhores. Disse também que não tinha muita paciência para acompanhá-las desde o início; que às vezes até o fazia, como em Gabriela, que terminara havia pouco. Defendeu que devemos, de fato, criticar a hipocrisia radical, fundada entre alguns intelectuais, segundo a qual a Rede Globo não presta e é absurdo assistir a novelas. Mesmo reconhecendo que, na televisão brasileira, há muito preconceito infundado, hipocrisia e bobagem mesmo, ele afirmou existirem muitas programações, além de jornalismo, no campo da arte e do entretenimento, que nos edificam. E foi argumentando que necessitamos da arte, do lúdico e da estética, como seres contemplativos que somos. E citou grandes atores, como Ney Latorraca, Antônio Fagundes, Glória Pires e Fernanda Montenegro. Atores que estão nos palcos do teatro e nas telenovelas. “Será que se tornam atores menores quando trocam o teatro pela TV?” – perguntou o meu amigo, e foi ele mesmo respondendo que acreditava que não. “Existem músicas boas e ruins, peças teatrais boas e ruins, óperas boas e ruins e também novelas. O importante é termos opções e, principalmente, discernimento para escolher o que mais nos agrada e edifica”.

Devemos sim criticar a referida hipocrisia radical. Hipocrisia, digo, porque muitos criticam o gosto da maioria e não admitem que, em alguns momentos, também “degustam” alguns programas da tela e até mesmo da referida rede tão difamada.

Se juntamente com a hipocrisia há muito preconceito infundado, também há bobagens o tempo todo na tela de uma TV. Fala-se mal o tempo todo da televisão brasileira e se faz isso na perspectiva de que no Brasil tudo é ruim, nada presta. Ora, muitas vezes nos faltam parâmetros para fazer tal julgamento. Lembro-me de quando morei em Madri, quando pude verificar que a televisão aberta na Espanha oferece basicamente o que eles chamam por lá de basura, ou seja, de lixo. Nas manhãs, tardes e noites frias espanholas, o que eu via na TV eram programas de fofoca, de bate-boca, de baixaria, de reality shows de nos fazerem sentir náuseas. No Brasil é diferente? Não. Mas temos aqui canais televisivos abertos com programas que valem a pena, que nos edificam. Tanto aqui quanto na Espanha, é claro.

Não tomo o verbo “edificar” apenas no sentido de “conduzir ou ser conduzido à virtude, pelo exemplo ou pela palavra”. Principalmente quando se fala de arte, e aí me refiro a uma telenovela como, por exemplo, Gabriela. Já ouvi muitas pessoas gabaritadas, numa preocupação feminista, abominando o machismo predominante na obra de Jorge Amado, na medida em que o escritor contribui para o fetichismo do corpo feminino. Isso nos demonstra que, em termos de arte, o que é e o que não é virtude, o que é e o que não é exemplo, são na verdade demarcações de difícil mensura. Ética e estética não caminham necessariamente juntas, infelizmente. Podemos ler um texto excelente do ponto de vista artístico, e que, no entanto, apresenta sérios preconceitos como o racismo. A obra de Monteiro Lobato, em alguns pontos, fica aqui de exemplo. Há racismo na obra de Lobato? Há. Mas isso não diminui a grandeza de seus escritos. Cabe a todos nós lermos criticamente. E, é lógico, se o que guia a minha leitura for um critério apenas ético, terei que abominar certas obras.

O que me edifica, então, é o que me ajuda a construir-me como sujeito crítico. Assim como se edifica uma construção, também nós somos construídos e nos construímos. Desse modo, por exemplo, podemos reconhecer numa boa telenovela o que há de ruim em termos éticos, mas também o que há de bom em termos estéticos.

Falar de arte é falar de contemplação. Contemplar é fixar o olhar em (alguém, algo ou si mesmo), com encantamento, com admiração; é observar atentamente, analisar, levar em consideração, aprofundar-se em reflexões, meditar, fazer suposições sobre, imaginar; enfim, contemplar é olhar com minúcia, é namorar, é estar enamorado. E quando namoramos a arte, não devemos, apaixonados, nos entregar completamente.

Grandes atores estão na televisão. E os que realmente são grandes dão perfeitamente conta de um palco de teatro, onde o improviso e o estar diante de um público e ao vivo são fatores que de fato colocam à prova qualquer talento na arte da interpretação.

Tudo na vida é uma questão de garimpos, onde trigo e joio convivem e muitas vezes se imiscuem. E nós com a necessidade de separar um do outro, como se isso fosse sempre possível. Se nossa construção se fizer valer, se formos nos tornando cada vez mais críticos, aí sim poderemos fazer garimpagem sem radicalismos, fazer explorações com mais desenvolturas, e poderemos abrir mão de posturas previamente estabelecidas e infundadas.

O tecelão se (nos) tecendo

13 de Agosto de 2014, por Evaldo Balbino 0

Meu aniversário é no dia 24 de maio, mês das noivas, do casamento. Acho que é por isso que escrevo tanto sobre amor, erotismo e Deus. Afinal tudo isso tem ares de eternidade, de algo perene, de união. Nascer em maio é desmaiar-se de amores, é ouvir rumores, cânticos de Maria, novenas de maio. Em maio eu desmaio sempre, de amor.

Deus é erótico. E nós, à sua imagem e semelhança, também o somos. Ele é tão erótico que deseja sempre nos desposar no deserto. E tem ciúmes de nós. Não aceita de jeito nenhum que busquemos outro que não ele. É exclusivista e passional. É amante possessivo. Aliás, todos os deuses são assim, proprietários. Não conheço um sequer, nas grandes religiões monoteístas e também nas politeístas, que não seja nem um pouco ciumento. Todo senhor, mesmo aceitando compartilhar seu servo com outros senhores, faz isso meio desgostoso. Por isso nos damos tão bem com ele, o nosso Deus. Numa relação tensa e agradável, nos sentimos também seus proprietários. No espelho de Narciso nos contemplamos, possuidor e possuídos, e nos misturamos. Nascemos para Deus porque almejamos a eternidade.

Também escrevo sobre a morte o tempo todo. Não há como não pensar nela. E ela, certamente, sempre está pensando em nós, amando-nos de soslaio com seus olhos escuros de um brilho sem luz. Ela fica nos espreitando e desejando nossos corpos. Quer-nos inteiros no seu seio de amante fácil, mesmo que atomizados na terra. Ela nos ama tanto que quer nos destruir e fazer com que sejamos simplesmente nada. Seu mais íntimo desejo é nos confundir consigo.

Falar de Deus e da morte é uma coisa só – é falar de amor. Um ato contínuo de contrição, um olhar pasmado sobre o que não entendemos. E não entender é tudo o que nos resta, com espasmos de espera e adoração. Não há teologia que nos salve com sua ciência, mas o sentir da fé nos consola, nos faz ovelhas tresmalhadas se reencontrando e se enroscando em apriscos terrenos.

Além de ter nascido em maio, nasci também na zona das Vertentes. Mas já me disseram que "zona" é uma palavra muito feia. Para mim, nenhuma palavra é feia. Inclusive adoro os execráveis “palavrões”! Os abomináveis e forçadamente exilados de nossa língua, mas que no seio dela mesmo existem. Matreiros, com olhos de gula e fome, os ditos palavrões acenam para mim, piscam os olhos, me seduzem. Podem me dizer “Região das Vertentes”, “Campo das vertentes”, e tudo sempre será a zona mesma da nossa vida e não outra.

Nesta zona nascemos, a da vida. Nela também crescemos e morremos. Neste mundo múltiplo e maravilhoso. E quando nos sentimos perdidos perante a reverberação dos estilhaços de tudo, basta pensarmos na beleza da existência. Na engrenagem que nos leva não sabemos para onde, mas que é puro movimento. É vida pura.

Sempre é difícil a gente se definir, como aparentemente estou tentando fazer nesta crônica. Aliás, qualquer definição é impraticável. Posso apenas dizer que sou um ser que tenta compreender a si mesmo e aos outros, que busca entender o mundo e tudo o que nele existe, a vida existente e suposta. E que tenta fazer isso através das palavras, do revolvimento delas. Por isso escrevo, por isso dispo o que quer que seja e me dispo. O mundo despido se nos entrega em plena nudez. E escrevendo eu vou lutando, sempre e cada vez mais.

É como se escrever fosse um modo de lutar contra a morte. E lutar contra a morte, neste caso, não é apenas sonhar com a eternidade, o que já é muito. Lutar contra a morte, escrevendo, é também lutar contra o silêncio do não entendimento, da planura vaga e vã. Escrever, então, é produzir rumores, é exorcizar ausências, para fugir da solidão e do silêncio. Escrever é fugir do nada.

E fugindo do nada, vou narrando vidas (a minha própria também), sempre reinventadas. Vou tecendo colchas de palavras, para com elas esconder-me do frio do esquecimento. Pois esquecer desaquece. E o calor da memória se faz necessário para corpos tão sequiosos de pulsação e vigor como os nossos. Nascemos para ser eternos. E para não morrer, vou traçando biografias, desdobrando-me em várias faces, umas bonitas e outras feias, e por isso sempre humanas e divinas. Feitos à imagem e semelhança de Deus, como ele somos terríveis e belos. Toda representação carrega isso, essas dubiedades. Nossos discursos padecem do contraditório. Dou graças a Deus por tanta imperfeição, pois assim nos movemos, aos trancos e barrancos, para a plenitude. Movemos-nos enquanto existe vida.

 

Não me defino, eu sei; mas me escrevo. Vou gerando no útero das palavras a mim mesmo. E o meu retrato, com traços de fingimento e verdade, é o retrato de todos nós, os que sobrevivemos dia após dia. Grávido de tudo e de mim mesmo, portanto prenho sempre de indagações, eu me crio e me destruo constantemente. Sou Penélope. A antiga e sempre Penélope com sua tessitura.