Retalhos Literários

Todas as vidas

12 de Fevereiro de 2014, por Evaldo Balbino 0

Certa vez ocorreu um triste episódio em Ribeirão de Santo Antônio. Um povoado tranquilo, mas cuja memória tem muito a dizer. Quantas dores, meu Deus, quantos fatos terríveis já não se passaram ali! Contudo, isso não é privilégio do meu Ribeirão.

Lembro aqui aquele episódio contado por Chico Xavier em uma entrevista ao Pinga Fogo na década de 1970. Um episódio que, segundo ele, parecia uma anedota, mas não era: dentro de um avião que ameaçava cair, Chico começou a gritar junto com todo mundo, por medo, por terror. Eis que Emmanuel, seu guia espiritual, chegou calmamente e lhe perguntou:

– Você não deveria estar calado, orando, dando exemplo de sua fé?

À pergunta do guia, o médium interpôs argumentos que justificassem seus gritos. Afinal, todos ali estavam correndo risco de morte. Emmanuel, irritado e ao mesmo tempo irônico, respondeu-lhe que morrer não seria privilégio deles e que todos morreriam um dia.

Pois é isto: todos morreremos um dia. E morreremos de vários modos: alguns amenos, outros dolorosos; alguns quieta, outros alvoroçadamente.

Eu mencionei um episódio triste acorrido certa vez no Ribeirão. Tratou-se da morte de uma garotinha, uma criancinha começando a vida – morte que colocou a todos em sobressalto. Brincando no meio do pomar, a menina caiu em um córrego e acabou por afogar-se. Comungo com a sua família todas as dores. E tenho cá comigo a certeza de que esse anjinho está em outro plano, cumprindo outras missões e mais outras. Eu poderia estender-me sobre este fato, mas acho melhor não. Há dores em relação às quais devemos ser lacônicos. O luto deve amainar-se. É a sabedoria popular quem diz isto: ferida, quanto mais se mexe, mais piora. Pois, então, paremos aqui.

Mas esta crônica não quer parar. Não para porque outro episódio triste, acontecido no dia em que o nosso anjinho estava sendo velado, também me chegou ao conhecimento.

Uma pequeníssima caravana, creio que composta por uns três carros de passeio, seguia de Resende Costa para o Ribeirão. Todas as pessoas nesses veículos estavam indo para o velório na casa da vítima do afogamento. Numa estrada péssima, de terra, estreita e esburacada, um caminho onde eu mesmo outro dia não consegui fazer mais do que 20 ou 30 km/hora, um dos carros dessa caravana atropelou um filhote de gato!

Acidentes acontecem, dizem. Acidentes acontecem, constato e concordo. Mas também defendo, com unhas e dentes, que todo atropelado deve ser socorrido, independente de que espécie seja. Sendo vida, merece nosso respeito.

Porém, o que foi que aconteceu? Pararam o carro, desceram, pegaram a serzinho machucado e agonizando, e colocaram-no ao lado da estrada. Aos olhos dos demais viajantes, tudo isso foi feito, e ninguém parou para pensar em analgésicos, nas dores que no mundo poderiam ser evitadas, nas vidas que poderiam ter vias menos dolorosas do que aquelas em que se encontram. Ninguém desceu do carro para dizer coisas tais como:

– Esperem, gente, vamos socorrer este bicho! Vamos levar ele pro Ribeirão; lá a gente dá algum remédio pra tirar a dor, a gente cuida dele!

Ou então para decidir:

– Pode deixar, pessoal, que eu volto com ele pra Resende Costa. Lá tem um pouco mais de recurso. Vejo o que pode ser feito, compro um remédio na farmácia...

Ninguém falou nada disso. Todos estavam preocupados em chegar ao velório.

Existe vida após a morte? Eu, particularmente, acredito que sim. E isso não é coisa de se teologar, de se provar como se faz com dois e dois são quatro. Não é coisa disso não. Fé é sentimento, não é razão. Vive-se, e não se explica.

Mas é a razão quem agora, nesta crônica, me pergunta e me manda perguntar: de que adianta pensar em uma vida e esquecer a outra? Até quando vamos olhar para os próprios umbigos e vamos continuar não seguindo os simples exemplos como os de um Francisco de Assis?

Antes mesmo de Francisco haver demonstrado apreço pelos nossos irmãos animais, o Eclesiastes já havia dito, numa cultura também tortuosa onde se apregoavam sacrifícios de animais para um deus sequioso de carne e gordura: “(...) é por causa dos filhos dos homens, para que Deus possa prová-los, e eles possam ver que são em si mesmos como os animais. Porque o que sucede aos filhos dos homens, isso mesmo também sucede aos animais; a mesma cousa lhes sucede: como morre um, assim morre o outro, todos têm o mesmo fôlego; e a vantagem dos homens sobre os animais não é nenhuma, porque todos são vaidade. Todos vão para um lugar: todos são pó, e todos ao pó tornarão”.

 

Que somos todos vaidade, eu não concordo. Que somos todos vidas, e vidas que devem ser cuidadas, aí sim entra a minha concordância. Portanto, que uma vida e outra, sejam quais forem, biológicas ou espirituais, mereçam nosso respeito. E sempre! 

Uma torta história de amor

15 de Janeiro de 2014, por Evaldo Balbino 0

Os imensos corredores da escola nunca terminavam para o pequeno e branquíssimo Manoel. Mas eles tinham fim para os meninos que iam à sala da diretora assinar o Livro de Queixa. Livro grande e grosso, capa azul, lombada desgastada pelo muito manuseio da inspetora, aquele livro era o terror de muitos. A escola era grande. Os meninos eram tantos e boa parte deles, bagunceiros.

Manoel, branco numa ausência plena de cores, olhos ardidos e ofuscados pela claridade, chegava a ficar vermelho de tanto correr na hora do recreio. “Branco desse jeito, você não deve correr!”; “Cuidado com o sol, garoto!”; “Sua pele é frágil, pode se romper!”. E o menino buscava seguir incólume sob as admoestações vindas dos que queriam protegê-lo na redoma da diferença.

No recreio vendiam-se lanches aprazíveis, frituras nada saudáveis, pastéis crocantes e coxinhas gordurosas. Apesar disso, grande parte dos alunos comia era na cantina mesmo. Uma farofa, uma carne seca e um arroz indeciso entre estar solto ou unido como um bloco de Carnaval. Mas o alvo Manoel gostava daquela comida, do mesmo modo como se deliciava em correr pelos corredores. Sem o feijão que comia em casa, tudo era uma secura de fazer durar a merenda. E depois ele entrando atrasado na sala de aula. Os professores bravos e ele com educação argumentando que a culpa toda era da seca comida, sem água, sem suco, farofa e arroz seco se demorando na boca, pregando-se no céu da boca, descendo grosso pela goela se esforçando.

Manoel brancamente corria e comia, daquele modo como a infância no mundo come e corre. Sem preocupações outras que não a de viver, mesmo sendo difícil a vida, a pele se queimando facilmente, mesmo tendo medo da morte.

Mas esse medo era só de noite, no escuro, quando sua mãe já estava dormindo. O medo não era o de morrer, e sim o de ver a mãe não se levantando pela manhã, a mãe grudada no escuro da noite como o grude colando o desenho de uma mulher encapuzada no papel do seu caderno. Um desenho horrendo, que uma vez a professora dera aos alunos para ilustrar a inevitável necessidade das religiões. Horrendo sim, porém delicioso de se colorir com lápis habilidosos. Colorir a morte era enfeitá-la de vida, de cores suaves ou fortes, todavia sempre alegres. Colorir o desenho da morte foi muito gostoso. E o garoto o fez com afinco. Mas admitir que a mãe se pregasse no escuro como a morte se pregara no seu caderno tão cuidado, tão bem encapado pelas mãos maternas, isso de jeito nenhum! A morte é inaceitável.

Manoel correndo, comendo e colorindo. A carne seca, os desenhos gloriosos, a farofa, os corredores, o arroz em bloco, a brancura transparente de sua pele, o Livro de Queixa, o caderno encapado pela mãe, o desenho da morte e a vida. A vida prosseguindo com suas lisuras e rugas.

Meses depois de sua entrada na escola, Manoel viu pela primeira vez aquela professora, rosto estranho, diferente. Pelo visto ela também era novata ali no estabelecimento de ensino. E o menino percebeu que ela era olhada por todos ou pelo menos por quase todos. Principalmente pelos alunos irrequietos. Manoel olhou-a, num misto de estranhamento, de compaixão e de identidade.

Estranhou o rosto deformado, retorcido para a vida tão madrasta às vezes. Tão linda a vida, mas requerendo muitas vezes duras penas, lições difíceis, paciências dolorosas. E as dores aumentadas principalmente quando a vida nos exige vivê-la em caminhos diferentes do que o senso comum julga normal. Caminhos tortos como torto era o rosto da professora tentando domar os alunos pelos corredores da escola.

Manoel teve pena ao perceber que aquela professora olhava mais para o chão do que para as pessoas. Ela chamava os alunos para a fila, insistia em educá-los, mas não os encarava. Conversava de viés. As paredes, os lados esquivos, o teto da escola escondendo um céu invisível – tudo isso era anteparo para os olhos dela se protegendo, resguardando-se do bulício da escola, dos barulhos da vida.

E com essa professora Manoel identificou-se de um modo singular. Também torto, caminhando brancamente pela vida, ele viu a professora como sendo seu próprio reflexo, sua imagem e semelhança. Identificou-se tanto a ela, que desejou ser seu aluno. Mas ele tão novinho, incipiente no mundo das letras, e ela trabalhando apenas com as séries finais do 1º Grau. Ele, não graduado ainda, mas já se graduando na vida, aprendendo as duras lições que a vida ensina. Ela, já graduada, não obstante aprendendo ainda indigestas lições.

Durante uns três meses, o menino passou a ter uma namorada, mesmo que à distância. Aproveitava cada ocasião que tinha para namorar a professora de longe, bem em silêncio mesmo. E ensaiava modos de se aproximar dela, querendo dizer-lhe o que sentia, que ele e ela eram iguais, que a vida os tinha unido para sempre.

Mais alguns meses, no entanto, e aquela nova professora saiu da escola e mudou-se de cidade. Diziam que ela não queria continuar no magistério. Manoel nunca mais a viu.

 

Hoje, muitos anos depois, a notícia: aquela professora morta! Manoel, antes meio dividido, sente-se agora partido ao meio, definitivamente.

A pedagógica metamorfose de Zezé

11 de Dezembro de 2013, por Evaldo Balbino 0

Ao começar esta crônica, vem-me à lembrança aquele menino peralta e sonhador criado por José Mauro de Vasconcelos. Falo do Zezé, o menino fantasioso que desde cedo teve que lidar com as coisas ásperas da vida. E lembro bem que, quando eu era criança, lá em meados dos anos de 1980, li uma vez no livro didático Brincando com as palavras um pequeno texto intitulado “Artes de Zezé”. Era um fragmento do romance O meu pé de laranja lima. E o texto era encimado por uma linda gravura, dessas que, em minha opinião, não se fazem mais. Um senhor e uma senhora apontavam para uma janela quebrada e, furiosos, ralhavam com um menino que corria como um relâmpago. Um catatauzinho de nada, mas grande na bagunça. Desde aquela época guardo na memória a figura do “pequeno Zezé”.

Mas hoje não vou falar dessa personagem. Vou falar é da vida. Se bem que falar de O meu pé de laranja lima é o mesmo que falar da vida. A história criada pelo José Mauro é fascinante e tem atravessado gerações e fronteiras. Lembro-me da felicidade que me tomou, numa biblioteca de Madri, quando pude ler numa estante uma lombadazinha com o delicado nome Mi planta de naranja lima. Belíssima tradução!

Não. Como eu já disse, não vou falar desse livro. Vou falar diretamente é da vida, mais especificamente dum episódio ocorrido em Resende Costa em 1989. E o que vi, nesse ano, não foi bonito. Foi de uma aspereza desnecessária.

Zezé, esse era seu apelido. Era um menino custoso, briguento, caçava confusão com todos nós da escola. “Filho de mãe solteira”, diziam algumas línguas tradicionalistas, as que não eram poucas. “Um endiabrado o José”, decretavam alguns professores. E entre decretos e alcunhas, ele prosseguia incólume na sua existência de fazer o mal.

Confesso que eu não gostava dele. Na quadra poliesportiva da escola, Zezé sempre fazia uma das suas. Certa vez, por exemplo, ele pegou a bola de vôlei e deu um saque com fúria na minha direção. A bola bateu no meu peito com tanta força, que a dor me deixou sem ar. Não estávamos jogando. Não era nenhuma partida. E a cólera dele era sarcástica e sádica. Ele era daquele tipo de criança que não se sente bem se não estiver fazendo mal para algum colega. Criança não tem maldade?! Ora, ora! Criança também é ser humano, meus amigos! Tem maldade sim, e das bravas muitas vezes!

Na verdade Zezé não era tão criança assim. Como era aluno repetente, já era mais velho do que todos nós da turma. Se não me falha a memória, ele estava cursando a sexta série pela terceira vez. Enquanto a maioria dos alunos andava pela média dos 12 anos de idade, ele tinha uns quatorze ou quinze. Era um menino difícil.

Ele, o complicado menino, além de muito difícil, era também vaidoso. Andava com os livros numa das cadeiras, amparados por um dos braços pendido. Andava todo duro, empertigado, exibindo músculos que, no entanto, não tinha, com jeitão de macho conquistador das meninas apaixonadas. Andava assim e dizia que mochila era coisa de meninas ou de meninos frescos. Alguns dos nossos colegas o chamavam de galinho índio, pois ele, mesmo pequeno, andava tal qual, sempre com a pose de briga, pronto para bater em alguém. Outros lhe davam diverso epíteto, chamando-o de “He-Man Conquistador”. Ele usava calças transadas, bem diferentes das que nós usávamos. E falava gírias e outras línguas que não entendíamos. Na rua, depois da aula, tirava do bolso um cigarro e fumava com desdém, com ares de adulto, como se aquele gesto o tornasse mais homem. Tratava-nos com grosseria quase sempre. Daí nossas picuinhas com ele. E tudo eram manias pré-adolescentes, aquelas rivalidades bobas que tínhamos e que passam com o tempo. E ele sempre usava na cabeça um lenço, para andar na moda, dizia.

Eis que um dia, perante uma de suas bagunças, um professor nosso irritou-se profundamente com ele e, num tom agressivo e nervoso, começou a chamá-lo de Cazuza. E foi dizendo você pensa que é alguma coisa na vida? Não é nada, rapaz! E fica aí imitando aquele desviado com lenço na cabeça! Você não sabia, seu idiota!? Pois então: ele é um desviado! Não é à toa que ele tá doente, que tá morrendo! Pelo visto você quer ser como ele, não quer?!

 

Diante da fúria docente, a turma ficou espantada e quieta. O nosso colega endiabrado, transformado agora em Cazuza, enfiou o rabo entre as pernas. Virou de repente um anjo sem asas, uma ovelha medrosa. Se ele entendia o que vociferava o professor, não sei. Confesso que eu, na minha inocência, não entendi à época as alusões feitas pelo mestre. Somente tempos depois é que fui entender tudo. E confesso que, mesmo não sentindo amores pelo nosso colega, tive pena dele. Porém, depois, mais pena tive ainda foi do nosso educador com aquela sua preconceituosa intervenção pedagógica.

O tempo e os sonhos

13 de Novembro de 2013, por Evaldo Balbino 0

O tempo passa para todos. Até as coisas mudam, pois se cansam também. Uma penteadeira antiga demonstra ares de velha avó boa e silenciosa, mas cheia de monotonias. Bela uma penteadeira antiga, porém de uma beleza cheia de enfados, de vida longa num currículo que se estende para longe. Boa e bela, no entanto com uma respiração cansada, com passos lentos em calçada de pedra, com vagares de viver uma vida que sobe por um morro íngreme. E ela, a vida, apesar de tudo, continua bela e boa.

Se se cansam as coisas, o que dizer de nós mesmos? Nós, que temos a consciência de que o tempo só sabe passar e nada mais? Tudo bem que o tempo, dizem, nos traz uma madura idade. A maturidade que não se compra e que não se vende. Nenhuma madureza é objeto de mercancia. Dizem isso, mas tenho lá as minhas dúvidas. E com meus botões vou dizendo que nem sempre evoluímos assim. A vida não é evolução. É acontecimento. Não nego o valor da experiência, mas também não nos vejo caminhando de modo retilíneo, como se estivéssemos, por exemplo, galgando altos patamares, os mais difíceis e nobres. Aprende-se vivendo, é claro! Mas vivemos errando também.

Outro dia recebi um e-mail de um amigo, com belos slides em anexo. Ao vê-los, desfilaram perante meus olhos heróis dos quadrinhos e personalidades da música e do cinema. Greta Garbo, Batman, Mandrake, Marlon Brando, Dalva de Oliveira, o Homem-Aranha etc. E todos iam passando diante dos meus pensamentos como carneirinhos impertinentes. Não dizem que carneirinhos contados à beira do sono são capazes de nos embalar na deliciosa rede dos sonhos? No entanto, os carneirinhos que desfilavam diante de mim eram mulheres lindas, gargantas de ouro e voz deslumbrante, figuras destemidas e invencíveis na luta contra um suposto Mal. E todas essas figuras, apesar de eternas, não deixavam de ser carneirinhos mortais. Todas eternas, porque habitando nossas memórias. Mas também todas mortais, pois tanta beleza, tanto brilho nos olhos, principalmente dos cantores e dos atores, tudo isso já virou uma escuridão, uma ausência de olhos, um vazio de olhar. E ao fim de tudo, sob flores e insetos, nem mesmo a certeza de que esta vida continua. Sob terra que se joga e que se esquece, só resta apenas um silêncio profundo como um rio que não conhecemos. E eis aí uma dúvida que abala tudo, até mesmo qualquer fé que se deseja inabalável.

Sim, o tempo passa. Para todos e para tudo. Coisas, bichos, homens e mulheres, crianças e idosos. Nada tem salvação, pelo menos neste plano que apalpamos e que sentimos com nossos sentidos primeiros e evidentes. As pessoas e seus sonhos (os heróis que construímos), tudo vira pó da memória. Tal melancolia me assalta e se me faz amiga. Não para me levar de mãos dadas ao abismo do nada, e sim para me fazer pensar, sonhar cada vez mais, lutar contra todo apagamento. De mim e de todos. E essa luta pressupõe um revirar constante das horas passadas.

Outro dia mesmo revivi um pouco, e mais uma vez, o passado. Revi um vídeo longo sobre os melhores momentos do Cassino do Chacrinha. Meu Deus, que saudade! Não de uma felicidade, que esta não existe pura e simples. Mas saudade de momentos que vivi: o brilho da roupa do Guerreiro Abelardo Barbosa, a Elke Maravilha dançando com Roberto Leal, o Paralamas do Sucesso, Raul Seixas e sua Al Capone, Elba Ramalho falando de um banho de lua, Sidney Magal com sua Sandra Rosa Madalena, Ultraje a Rigor, Jane e Herondy, Cazuza, Tim Maia, Lulu Santos, Luiz Caldas falando de abelha e flor e amor, Sandra de Sá dizendo da solidão e da necessidade de amor, Evandro Mesquita, Marina Lima falando de noite e sedução, Jairzinho e Simony, Guilherme Arantes, Simone, Roberto Carlos cantando que “todo final tem seu começo” e que os dias e as horas são contados ansiosamente para se ver quem se ama, Fábio Júnior, Baby do Brasil e Pepeu, Wanderléa, Nelson Ned, e, por fim, o Capital Inicial falando de distância e independência.

O tempo nos faz alongar caminhos e não nos deixa independentes das distâncias. Elas são pontes que nos ligam sempre ao passado. O passado não passa, mas permanece. A cada vez que perscruto o passado, eu não vejo só coisas boas. Nem tudo é um mar de rosas, mas também, é claro, nem tudo está perdido ou esteve perdido. Há que se extrair de todos os momentos da vida um naco sequer de alegria, de paz, de crença na felicidade plena.

 

Pensando em tudo isso, pergunto a Deus, como já o fez Adélia Prado: “A vida é assim, Senhor? Desabam mesmo pele do rosto e sonhos?”. Se tudo desaba, algo nos salva. E nesta crônica já terminando, lembro a todos que as referidas cenas do Chacrinha foram gravadas num teatro de nome belíssimo. Teatro Fênix. Este nome me salva do tempo e do silêncio.

Livrai-nos do fogo do inferno!

15 de Outubro de 2013, por Evaldo Balbino 0

Começa a noite e o Ribeirão de Santo Antônio está silencioso.

O Seu Geraldo Martins morrera no início da tarde, mas este silêncio todo não é por sua morte. Ele morrera, porém muitos ainda continuam na sua faina, entre milharais, plantações de café e mandioca, entre pomares inesgotáveis da vida. Lá no Ribeirão de Baixo mesmo, a esta hora da tarde, bem na venda do Nélson, alguns homens devem estar bebericando a vida, falando dos segredos alheios, desejando a mulher do próximo, e tudo isso com a pacificadora ideia de que tudo será perdoado, pois estão bêbados, sem maldade nenhuma.

No Ribeirão do Meio, a porteira solitária está fechada. No pasto, a vaca pasce com seu bezerrinho ao lado mesmo do menino. E o menino, de conga, calça de tergal plissada, camisa de uma cor bonita num tom pêssego, aguarda sua mãe que a esta hora deve estar penteando os cabelos em frente à penteadeira. Ambos, menino e mãe, vão ao velório na casa do Seu Martins.

O menino sem medo nenhum. Não tem medo dos mortos, pois sabe que eles não mexem com ninguém. Além disso, o Seu Martins era homem bom, sempre lhe dando balas na venda do Nélson, quando ele, o menino, ia buscar querosene para sua mãe. Atarantada no tear, serviço que faz até altas horas da noite, a mulher não tem como ir à mercearia e pede ao menino que vá em seu lugar. O Nélson não lhe dá nada, somente o troco bem contado, que homem honesto o vendeiro é. Porém o Seu Martins sempre abria seu largo sorriso branco, não da brancura de dentes, que estes ele não tinha, mas da brancura da alegria. Mesmo sem dentes, aquele homem ria, a barriga balançava, e suas mãos se estendiam para o menino guloso por balas.

Agora, depois de morto, certamente o Seu Martins não mais lhe dará balas. E ele, o menino, em ato de agradecimento, acompanhará a mãe até ao velório.

De cabelos longos e penteados, com uma mecha nascendo e crescendo branca bem no meio da testa, a mãe se aproxima apressada. Pega a mão do filho e vai solicitando passos rápidos, argumentando que estão atrasados.

O menino a atende, solícito. Aceita as passadas da mãe, sem deixar de lado, no entanto, o receio de que a poeira da estrada suje seu par de congas, mandadas comprar recentemente na Vila. A sola de borracha branca contrasta com o tom pêssego escuro do resto do calçado. E nenhum receio de que lhe venham dizer ser esta cor para mulheres, tão parecida com o rosa. Que se danem todos, chegou a pensar isso quando as calçava, imponente, para acompanhar a mãe à casa do Seu Martins. E o mais bonito de tudo: a cor das congas é a mesma da camisa que sua mãe coseu. Assim, tão bem vestido, ele vai para um velório. Bonito diante da morte.

Para encurtar o caminho, a mãe decide passarem pela cava, uma estrada funda por onde o menino nunca gosta de passar sozinho. Ribanceiras altas, buracos de onde saem cocotas, mas também serpentes. E o medo da Luz da Pedra? A que dizem vagar sobre o Ribeirão noturno e a qual muitos já disseram ter visto ali mesmo, errando pela escuridão da cava? De jeito nenhum! Passar ali sozinho, nunca! Até mesmo durante o dia, é sempre noite na cava. Acima das ribanceiras, densa mata torna o caminho mais sombrio do que a morte.

A casa do Seu Martins fica no Ribeirão de Baixo, entre uns bambuzais, um pouco depois da venda do Nélson. Mesmo passando apressados diante do empório, o menino vê alguns homens no balcão bebendo a vida. É gente magra, pois a morte está ali perto, entre os bambuzais, deitada na casa do Seu Martins. E praticamente quase todos do povoado estão, agora, cultuando a morte, exorcizando-a, para no dia seguinte voltarem aos seus afazeres, às suas vidas.

No velório, pessoas de pé, de cócoras; umas sentadas à mesa, outras em bancos de madeira ao longo do terreiro ou pelos cômodos da casa. Um silêncio rumoroso atravessando tudo. No momento em que chegam o menino e a mãe, a reza já vai começada. Todos tristonhos, tentando espantar a morte.

E o menino fica solerte, de ouvidos em pé, escutando aquelas vozes todas em uníssono. Ele nunca ouvira antes aquele tipo de coisa, nunca presenciara o ritual. Entre um mistério e outro, o Ó Meu Jesus vem à tona e atravessa a existência do garoto: “Ó meu Jesus, perdoai-nos e livrai-nos do fogo do inferno. Levai as almas todas para o Céu, e socorrei principalmente aquelas que mais precisarem”.

O coração apertado, o menino clama por sua mãe:

– Mãe, vamo embora, que tão mandano ele pro inferno. Vamo embora, mãe, pelo amor de Deus!

 

Imersa na reza, como que estando em outro mundo, a mãe não o escuta. Então ele, sem coragem de voltar sozinho para casa, busca pensar na vaca e no bezerrinho, pascendo vivos lá no pasto. Os dois esperando que ele, o menino, volte logo para apartá-los. Não da vida, mas um do outro, momentaneamente, para continuarem juntos no outro dia.