Ilídia
17 de Novembro de 2021, por Evaldo Balbino 0
No Ribeirão de Santo Antônio, em tempos que já se vão distantes, Ilídia nasceu em família simples para uma vida, após o casamento, de certo modo remediada. Modesta estabilidade. Avó de minha mãe, contraiu núpcias, ainda moça muito nova, com José Claudino, rapaz afeito ao trabalho na lavra e à lida com muares. Foram viver na Boca da Mata, ali num canto do povoado, do outro lado do córrego caudaloso que alimentava a terra, as plantas e todos os gados, humanos ou não. As águas do rio moviam o moinho de pedra. As águas corriam pelo rio da vida.
Trabalhando incansáveis dias, e depois concentrando mais suas atividades na sua tropa que ele administrava com diligência, Claudino pôde dar à esposa e às três filhas que tiveram uma vida, senão rica, pelo menos um pouco tranquila, e isso em meio a uma região povoada – como em grande parte do planeta – por uma maioria de vidas simples e até mesmo miseráveis. Do mesmo modo a mulher Ilídia fez a sua parte, cuidando da casa, do marido e da prole, contribuindo e muito para a prosperidade de tudo.
Pouco sei da bisa Ilídia. Mas é chegado a um hoje, cujo passado carece de registros claros, o certo fato de que ela faleceu muito jovem. Casou-se com a morte ainda antes dos cinquenta anos, como antes dos dezoito se casara com o Claudino tropeiro e galanteador.
Com seus mais ou menos 45 anos, deixou as filhas ainda jovens, mas já preparadas para a existência. Sua filha Chiquita, a do meio, casou-se primeiro. Foi-se com o marido Realino para o povoado do Cajuru. A mais nova, minha vó Laurinda, se foi de casa em seguida, casada com o Vô Chico Cota. Na casa ficou ainda solteira a tia Maria, que ao depois uniu-se em matrimônio com o Tio Antônio.
Na minha meninice fui certa vez ao povoado do Cajuru. Já não existiam mais os bisavós Ilídia e Claudino, a vó Laurinda e a tia Maria. Num recanto desse outro povoado, porém, ainda vivia a tia Chiquita. Cabelos brancos, magra, rugas infindáveis à vista, e uma fala amorosa e incansável. Enquanto ela conversava com minha mãe na cozinha, o tio Realino nos levou, à minha irmãzinha e a mim, para vermos a fonte de água fria e cristalina e aplantação imensa de berinjela, novidade para nós que só conhecíamos jiló. Me encantei mesmo foi com a bilha sobre a mesinha da sala, um frescor de água para a vida inteira.
Depois que voltamos à cozinha, após subirmos uma escada de pedra que fazia curva, ouvi a voz macia e baixa, porém esperta, da tia Chiquita. Ela falava da sua vida no Ribeirão, do muito trabalho, da quietude da irmã Laurinda (a minha avó), das rebeldias da mana Maria. Falou dos cuidados que todos tentaram ter com a ferida na perna da mãe Ilídia. Cancro sempre aumentando, o zelo do pai buscando os remédios que raizeiros indicavam, as três filhas buscando o cuidado que o cuidado materno tivera com elasdesde pequeninas vidas sendo geradas no útero de mulher da roça e trabalhadeira. Contava tudo com os olhos afundados em água, mina pouca mas profunda, pois o tempo tem o poder de diminuir as lágrimas, mesmo que elas continuem existindo com seus rumores brotando em nós.
O tom da voz da Tia Chiquita era de frustração pelo fato de a mãe Ilídia ter ido embora da vida tão cedo. Sem compreender a existência debaixo do céu, foi contando as experiências alegres e dolorosas, os problemas de família, as lutas do pai e das três filhas para colocar na linha o que desalinhava. Foi narrando a velhice e a morte do patriarca, uma velhice que para os moldes de hoje, com a média de vida da população aumentada, seria ainda o começo da terceira idade.
No tom de voz da tia Chiquita, que morreria algunsanos depois dessa nossa ida a sua casa, uma aparente demonstração de não aceitação da vida tal como sempre esta se dera. Entretanto, o que ela não disse, mas hoje sei que foi dito nos vãos e nas combinações de suas palavras, é que a mãe era o seu amor eterno, exemplo de mulher, e que seu pai era um companheiro em tudo.
Contou-nos que diziam ser ela muito parecida com a bisa Ilídia. Então aproveitei para namorar, na sua voz suave e nos seus olhos claros e úmidos, os claros olhos úmidos e a suave voz da minha bisavó me beijando para sempre.
Antônio Gonçalves
14 de Outubro de 2021, por Evaldo Balbino 0
Antônio Gonçalves, avô do meu pai. O que dele sei é de tanto ouvir falarem. Duas cenas fortes o envolvendo me habitam a memória lavrada por palavras alheias e minhas.
Numa, ele coloca o meu pai, ainda com seus sete anos, no lombo de um cavalo. E diz rompante que o neto será padre, que vai enviá-lo para Mariana. Reafirma às pessoas e ao vento que o filho de sua filha se tornará um pároco lá na cidade dos sinos que plangem dolentemente.
Na outra cena, vejo-o no colo da sua esposa, a minha bisavó Olívia, ela chorando e segurando-o em seu seio. Seus braços retalhados por facadas tantas, seu peito com perfurações, e o sangue vivo morrendo e ensopando a sua camisa suada de lavoura e trabalho.
Meu pai se lembra das promessas quanto ao seminário. E o desejo que ele menino tinha de ser pomposo como os padres, a batina escura dando ao corpo seriedade, as pregações na capela e até mesmo nas igrejas lá da vila, principalmente na do Rosário. Por Nossa Senhora do Rosário, uma devoção sem conta.
Mas o seminário nunca existiu para o garoto. O avô o carregava sim sobre o cavalo, ensinava-lhe desde cedo a ser tropeiro, a arrear os equinos, a fazê-los trotarem pelas estradas do Ribeirão. Da venda do Antônio Mariano, vinham ao neto balas redondas de dar gosto, inesquecíveis para a boca infantil namorando doces e palavras saborosas. Os carinhos do avô e os sonhos futuros para o infante morreram um dia no adro da capela.
Na casa do Antônio Gonçalves, muito jubileu. Farta gente de outras bandas ia aos bailes do povoado e pernoitava na habitação antiga. No porão, sob o assoalho, fantasmas ancestrais ficavam dormindo ou balbuciando entre arreios, cangas e mais bugigangas. Não faziam eles, porém, mal algum aos vivos, e sabiam da beleza da vida e conheciam dela as agruras. E talvez rissem as assombrações, quando ouviam os vivos dizerem da existência de almas penadas. Quem pena mesmo são os vivos, pensavam os mortos ali no porão.
Num dia festivo no adro da capela, o povoado e mais outros ali estavam em peso. Poeira densa levantava-se do chão, pois, entre as barracas com prendas para arrecadamento de esmolas, pernas dançavam ao som de violas e andavam de um lado para outro. As mesmas pernas se namoravam. As casadas, discretamente, pois os olhos só podiam de través ensaiar uma pulada de cerca. Os olhos não têm cerca. Já as pernas solteiras, essas andavam sem eira nem beira, sem canga. Namoradeiras elas.
Eis que o Geraldo (tio do meu pai e filho do Antônio Gonçalves), jovem primaveril buscando flores aromais, se engraçou com certa moça entre tantas. Ela, todavia, era também demandada por outro rapaz. Daí a confusão, a briga entre os moços, a violência física. O tio do meu pai saiu ferido.
O vô Gonçalves não participava do folguedo no adro nesse dia. Era muito do seu gosto um baile sim, mas nessa hora ele estava, não muito longe, numa de suas lavouras trabalhando. Chegou-lhe por uma das filhas a notícia de que bateram no seu filho. Furioso, largou ferramentas e foi averiguar o acontecido. Chegou entre as pessoas já gritando, porque uma das meninas dos seus olhos estava num canto com o rosto machucado por socos. “O que bateu no meu filho que venha!”.
O trovão de sua voz levantou poeira, e do redemoinho o Coisa-Ruim se ergueu indômito. Um senhor seu compadre foi na sua direção já com uma faca em riste. Meu bisavô foi se desvencilhando dos golpes e dizendo assustado: “Faca não, compadre!”. Esse senhor era pai do outro pretende da moça que estava sendo galanteada; o rapaz aspirante que tinha, juntamente com os colegas, espancado o tio do meu pai. Eram compadres os dois homens, mas parece que alguma rixa já existia entre ambos.
Tudo foi muito rápido, sem que houvesse tempo para intervenções alheias. Mesmo assim os detalhes se fixaram na mente do menino de oito anos que já era o meu pai. Uma cena eterna que até hoje acontece. Os braços aflitos do meu bisavô em movimentos de defesa e ganhando facadas, seu corpo se afastando, depois o baque contra uma ribanceira, os dois escudos humanos já pendidos e ensanguentados, o peito exposto à morte, as perfurações, o sangue do âmago exalando morte, a queda do homem, a fuga do atacante, a esposa Olívia correndo na direção do marido, seu corpo feminino e forte dobrando-se sobre ele e pegando-lhe a cabeça ao colo. Os últimos suspiros do meu bisavô.
E o meu pai, menino, vendo com olhos cheios d’água a terrível cena imorredoura. Há lembranças dolorosas que o tempo não mata.
Pintam e bordam
15 de Setembro de 2021, por Evaldo Balbino 0
Para Ana Luiza Coelho Andrade e Marcella Coelho Andrade
As irmãs Ana Luiza e Marcella pintam e bordam. Fazem arte. São artistas, e não arteiras. A elas não atribuo a conhecida expressão do povo “pintar e bordar” no sentido de “pintar o sete”. Mesmo assim sei que, se eu pedir, elas podem sim pintar ou bordar um lindo número sete para mim. Cabalístico, perfeito nas cores ou nas linhas tecendo forma. Das mãos de ambas, pode sair um sete encantador, como sai das mãos do oleiro um vaso que nos cativa.
Pintando e bordando, elas não bagunçam, fazem o que se deve fazer numa vida em busca da beleza e esbarram em Deus com suas criações. Porque criar é isto: tocar nas vestes sagradas.
No Instagram da Ana Luiza, a criativa frase: “Eu sou um museu cheio de quadros, mas você estava de olhos fechados”. Nada mais acertada aqui do que a imagem do museu, afinal estou falando de uma professora de História. E sabemos os de bom senso que museu não é coisa do passado, que nem o passado é passado, mas que tudo é um agora buscando sentidos para os fatos da vida.
De olhos bem abertos vou vendo os quadros da Ana Luiza, a pintora-professora. Girassóis alegres semeando harmonia, gratidão, equilíbrio e fé. Dum quadro com recortes em MDF, brotam flores para a vida. As integrantes do grupo feminino sul-coreano Blackpink estão num mundo cheio de cores, o céu rosa, os abraços entre elas nos dizendo dos laços necessários. A decoupagem em uma chaleira a transforma num artefato de decoração, belíssimo com figuras vintage de mulheres e rosas. Gatos negros miando e se amando entre corações vermelhos em pequenos vasos. Um elefante marrom numa natureza cheia de vida brotando na superfície do MDF. Tudo isso e muito mais nascendo de mãos criadoras.
A Marcella é formada em Direito, mestre emCiências Sociais e doutorandaem Ciência Política na PUC-Rio. Aprendeu a bordar na adolescência, tendo como professora a dona Lora. Nessa época bordava toalhas de banho, toalhinhas, caminhos de mesa, panos de prato – tudo para a própria família (mãe e tias) ou para presentear alguém. Durantea faculdade, o bordado aparecia esporadicamente na sua vida. Com a deflagração da pandemia de Covid-19 e com as atividades acadêmicas remotas, aninhou-se por mais tempo nos seios paternos (um ano e meio em Resende Costa) e voltou a bordar com mais frequência.
Se a pandemia vivida hoje pela humanidade é algo trágico, também não deixa de ser um momento para diversos retornos, revisões da vida, releituras da existência. Bordando, Marcella faz terapia, o tempo voa, a mente e as mãos se ocupam do que faz bem. Palavras da artista: “O bordado manual foi uma forma de me ajudar a passar pelo isolamento da pandemia e, de quebra, uma renda extra. Não me vejo mais sem meus bordados!”. Com o incentivo dafamília, especialmente da irmã pintora, surgiu a ideia de começar a fazer bordados em bastidores. Em sua página do Instagram, podemos namorar e adquirir bastidores de decoração, chaveiros, ímãs de geladeira, bótons e também bordados em jeans, tudo com muito afeto e cuidado.
Eu mesmo estou aqui em casa com uns bastidores lindos, em forma de chaveiros. Deles, me olham gatos amorosos, um livro aberto e uma coruja azul. E eles ficam pendurados em minhas portas, juntos às chaves, dizendo para mim que a existência nos abre passagens, que o mundo é um caminho aberto. Nos bastidores, as linhas coloridas traçam bicicletas, âncoras, a Nossa Senhora de Fátima nos abençoando, jarros de flores, o Sagrado Coração de Jesus nos amando, Deus nos sagrando, um trevo de quatro folhas para nossa longa sorte... E os gatos. O que dizer dos gatos?! Lindos eles e a menina sob a chuva. Linda a frase de Frida Kahlo (linha escura sobre fundo laranja e pairando acima de flores com puro amor: “Onde não puderes amar, não te demores.”. E bordados nas roupas e na vida. Na nossa vida.
As duas irmãs “aprontam” com seus belos trabalhos. Além dos estudos “metafísicos”, elas pintam e bordam formas e cores em nossos olhos amantes de arte. Fazem como Adélia Prado nos diz no poema “Clareira”: “Eu gosto de metafísica, só pra depois / pegar meu bastidor e bordar ponto de cruz...”. As artes que as duas irmãs nos ofertam são as duas coisas numa só: metafísica e beleza. Com olhos bem abertos e mãos ávidas deencanto, pensamos/sentimos os lindos trabalhos que delas nos chegam. Pintar e bordar é presentear a vida com pura poesia.
Tia Donana
19 de Agosto de 2021, por Evaldo Balbino 0
Chamava-se Ana, nome que se fundia ao “dona”, funcionando este vocábulo como forma de tratamento, chegando-se à formação de don’Ana. Escrevo “Donana”, sem apóstrofo, porque o nome passou a ser de fato, na boca do cotidiano, uma palavra só, sem sinais diacríticos duma escrita cheia de paramentos.
Eu ainda pequeno, e a família morando no povoado do Ribeirão de Santo Antônio. Não sei se foi a minha primeira ida a Resende Costa, mas tenho comigo que é a primeira lembrança que tenho da pequena cidade.
Depois da trajetória entre latas de leite, na carroceria dum caminhãoque nos levara para a cidadezinha, mamãe segurava minhas mãos nas ruas vazias que eu não conhecia. Vazias sim, porém mais animadas do que as estradas do Ribeirão. A casa que meus pais construíam já estava quase pronta. Em breve seríamos mais vidas entrando para a estatística do êxodo rural.
Agora, entretanto, era um passeio rápido, o olhar pequeno vendo mundo tão grande. Ainda não era a mudança definitiva. Pernas e mãos franzinas de um turista em formação.
Chegamos de tardezinha à vila. A rua descalça. Nós descendo empoeirados do caminhão em que antes estávamos empoleirados, gado humano em meio ao leite de vaca. E foi com o cheiro de leite gordo das vacas rurais do município que entramos na casa que meu pai erguia com suas mãos pedreiras.
Lembro a conversa do pai e da mãe, ele mostrando a ela a sala, os três quartos, a copa funcionando como cozinha improvisada. Da copa abria-se uma janela para outra parte interior da vivenda: mais quatro cômodos à espera de família grande, os quais se tornariam depois mais um quarto, o banheiro, a despensa e a cozinha de tamanho muito bom. Na conversa, os olhos da mãe alegres com o que viam, e sua boca depois dizendo que iríamos à casa da comadre Fátima, minha madrinha.
Não me lembro de ter visto antes a madrinha. Esta também foi para mim a primeira visão dela. A rua descalça com buracos e pó. Os poucos postes acesos davam um respiro de luz, mesmo que pouco, à nossa passagem. Bem diferente do Ribeirão, que ainda não tinha luz elétrica e que só ficava semiclaro à noite, quando a lua sorria com vontade e de cara redonda no céu. Meus olhos mergulhavam na mágica dos postes, o mundo fugindo do breu. Pedi bênção à minha madrinha, e até hoje a trato por tia, com um carinho sem medidas.
Depois, a volta ao nosso canto em construção, com a promessa de no dia seguinte irmos à casa da tal tia Donana. Dormi com barriga cheia de comida boa feita por mamãe.
Pela manhã, a brasa em mim. Diziam que, como minha mãe perdera a sua mãe quando tinha somente dois anos de idade, a tia Donana passara a ocupar essa função depois de ter-se casado com o meu avô, o Chicota.
Na entrada da casa da tia Donana, uma cena sem fim.
Minha mãe me puxando pelos braços. Primeiro o Tibastião e a Tialorde (mais nomes criados pelas fusões que nossas línguas fazem). As mãos estendidas, minha boca pedindo bênção. Depois um corredor estreito entre a casa e a caixa d’água (aqui uso o apóstrofo). Grande a caixa, alçada com vigor, tijolo e cimento, chegando à altura da casa, competindo com ela na utilidade para a vida. Na casa moravam pessoas; na caixa de cimento, muita água para saciar a sede e a higiene humanas.
Em seguida uma guinada para a esquerda, uma área de serviço e uma pia. Ao lado da pia, Deus! Um ser meio corcunda; cabelo branco e pouco que, preso em coque, parecia curto; óculos escondendo olhos pequenos; mãos e dedos antigos vindo na minha direção. Era Deus, só podia ser Deus, aquele Deus de que me falavam desde sempre!
E de repente Deus abriu a sua boca! Não foram trovoadas sobre o monte Sinai o que ouvi, porém uma voz débil e feminina. Era uma voz trêmula. Não era Deus o que eu via e ouvia. Era a madrasta de minha mãe. E ela se abaixou com certa dificuldade, passou as mãos na minha cabeça e foi logo dizendo “Pede benção pra vó!”.
Pedi-lhe a bênção. Enquanto todos iam conversando tantas coisas de que não me lembro, fiquei num canto abraçado ao medo nunca antes sentido. Medo da vó-madrasta.
Na saída, um presente da Tia Donana, talvez em paga pela bênção que eu lhe pedira. Ela me deu um caqui, fruta estranha aos meus olhos, estrangeira mesmo para mim à época. Meio verde, o pomo apertou minha boca, deu-lhe um gosto de travamento, de secura da vida. O fruto prendeu-se ao meu paladar do mesmo modo com que fui descobrindo pelo tempo que Tia Donana não era Deus, nem mãe de minha mãe. Era a madrasta da que me guiava com mãos maternas.
Didi Pedreiro
15 de Julho de 2021, por Evaldo Balbino 1

Foto do escritor Evaldo Balbino com seus pais - Didi e Laura - acervo pessoal
O nome do meu pai é Jesus. Didi é a sua alcunha. Didi Pedreiro, assim o chamam desde longa data. Ele carrega essa identidade por mais de seis décadas. Nos seu 80 anos de vida, já perto agora dos 81, é com orgulho e honra que ele leva a profissão no próprio corpo. Se o título aqui fosse “Jesus”, alguém talvez poderia confundir este meu texto com uma fala sobre o Cristo prometido e encarnado. Mesmo não falando aqui do Deus em forma humana, esta minha fala não deixa de ser religiosa, pois falar da nossa vida miudinha é também falar de Deus, do seu corpo sagrado e sem corpo.
Já me coube dizer do meu pai no poema “Posse”, do meu livro Filhos da pedra, em 2012: “Eu não tenho bicicleta / pra desfilar na alameda. / Eu não tenho carro verde / pra me enfeitar de cor. / Mas eu tenho meu Pai / caminhando na avenida, / chapéu na cabeça, / colher de pedreiro nas mãos.”. Vejo assim, desde minha pequenez, o marido de minha mãe. Desde cedo ele chegando da labuta e trazendo, na boca da noite engolindo as grotas do Ribeirão de Santo Antônio, amendoins em casca para menino pleno de gulodices. E o povoado quase noturno ficava mais vermelho, mais alegre como os amendoins desabrochando das cascas macias.
Até hoje meu pai me presenteia com amendoins. Agora mais imensos, mais largos que os amendoins em si. O homem de pedra, porque a vida assim o foi esculpindo, ainda é o mesmo e transformado, porque até as pedras mudam, como nos diria Cecília Meireles. Não que ele tenha hoje mais porosidades, porque estas sempre existiram nele. O fato é que antes os poros já estavam nele disfarçados numa rudeza amorosa. Cada um ama do seu modo. O difícil, quase sempre, é aceitarmos os diferentes modos de se amar.
Meu pai sempre foi semeador de sementes, casas e singelezas. Lavrador desde criança, pedreiro desde jovem, sempiterno amante da vida e distribuidor de amor aos quatro cantos. Severo, rígido, apregoador de protocolos para a vida, mas mergulhado no sempre amor. O amor, repito, tem várias faces.
Nos meandros da vida amorosa, meu pai sofreu e gozou a existência. E faz isso até agora. Diz com pulmões plenos que a vida é boa, que ela bem que poderia ser eterna. Eu lhe digo que ela deveras nunca termina, e ele responde que sabe disso, mas que poderia ser também eterno este nosso corpo, o dia nascendo, a noite descendo sobre nós, as ruas caminhando sob nossos pés, as pessoas conversando sem eira nem beira. Entendo meu pai: entre espinhos vamos colhendo flores, e as pétalas compensam as dores.
Por esses dias, depois de afastado da minha cidade natal há mais de um ano por causa da pandemia de Covid-19, aqui estou com meus pais num “abraço” necessário. Depois da primeira dose da vacina, dum isolamento 100% de 15 dias em Belo Horizonte e dum exame rápido para detecção do antígeno via coleta de secreção nasofaríngea, vim para Resende Costa, para o seio dos meus pais. Estes têm sido dias de amainar saudades. Conversas longas, ajudas nos afazeres e certo distanciamento cuidadoso regado a máscara e álcool-gel usados por mim. Eles me considerando exagerado, e eu me derramando nos cuidados por querê-los plenos de vida.
Ontem foi dia de eu arrancar mandioca e colher laranja e mexerica com o meu pai. Sua faina com o enxadão, e eu ajudando a puxar os pés de raízes fortes. As laranjas descendo doces da árvore, oferecendo vida e sumo aos nossos paladares. Cada mexerica mexendo com minha boca, a doce forma de amar. E meu pai regando os chuchus plantados, falando de como se deve aguar as salsinhas, cujos corpos frágeis cedem à pressão de água forte. E suas mãos agudas de tempo quebrando algumas espigas secas de milho e me perguntando com amor se eu queria também arrancar inhames. E me ensinou mais uma vez tantas coisas, como, por exemplo, replantar os galhos de mandioca com suas raízes ainda cheias de vida.
Outro dia, lições também indeléveis. Foi mexendo com suas ferramentas bem-organizadas em dois cômodos atrás da casa. Mexendo e me falando sobre elas. A esmerilhadeira em disco zirconado, o disco de serra de Makita para cortar madeira, o disco de vídea para cortar pedra, o serrote, a peça em disco de caminhão para soquete, a machadinha, o martelo de cabo comprido e com orelhas atentas ao nosso colóquio. Tudo isso beijava suas mãos.
As sementes, os tijolos e as ferramentas são nas mãos de meu pai o que as palavras são nas minhas mãos escritoras. E nós dois seguimos escrevendo a vida, porque há muitos modos de escrita em nossa existência.