Retalhos Literários

Dona Filomena – parte II

14 de Abril de 2021, por Evaldo Balbino 0

Dona Filomena na janela da sede do Coral e Orquestra Mater Dei. Paixão e dedicação à música (foto Ângela Resende)

Quando tinha 10 anos, estava na 4ª série e foi escolhida pela professora dona Dulce Mendes, no Grupo Escolar Assis Resende, para recitar um poema gracioso sobre uma galinha. Entrou no palco segurando uma galinha preta e todo mundo riu. E a preocupação dela, na época, não foi com a risada de todos, pois desenvoltura no palco ela foi criando. Seu medo, o verdadeiro medo, era o de que a ave, desconhecedora dessas coisas de poemas e teatro, cagasse nela e sujasse sua roupa tão bem-feita para o recital. Conta isso dando risadas de fazer acordar a vida.

Aos 11 anos começou as aulas de canto com o seu Quinzinho na orquestra da cidade. Desde então nunca abandonou a música. E conta com alegria que foi Rainha do Rosário, quando o rei e a rainha tinham apelido de Riqueza.

Ainda solteira, fazia teatro sob a direção do escritor Gentil Ursino Vale. Lembra-se muito bem da peça O homem que nasceu duas vezes (1938), de Oduvaldo Vianna. E ri muito quando se recorda do diretor Gentil ensinando gentil e pacientemente um dos atores que deveria falar trechos em francês e tinha dificuldade. O diretor repetia incansavelmente “Entrez, monsieur!”, mas o que saía da boca do ator, sem biquinho, era uma língua outra, desconhecida.

Nas lembranças refeitas agora, Filó diz com saudosismo das pessoas de que se lembra: o Gentil, o Quito Peluzi, o ator cômico José Ramos, o Prudêncio Gomes... E também de personagens como o Carrinho, o Caraco. E faz sem cerimônia um autoelogio, louvando sua memória, sua capacidade de decorar textos. De fato, o seu rememorar é laudável.

Jogava vôlei com as colegas ao lado das lajes de cima, na área mais ou menos em frente ao solar onde funcionava e ainda funciona a CâmaraMunicipal. Tinha a função de levantadora porque não era das mais altas. As garotas usavam saia-calça, mesmo assim os rapazes mais afoitos deitavam-se nas lajes para ver se pegavam alguns lances dos corpos femininos. Há uma foto antiga do seu time, dez moças com seus uniformes esportivos posando para a eternidade. Na cena congelada no tempo, algumas estão sorrindo e outras, sérias. Diante delas a bola, posando também para o retrato perfeito. No topo da escadaria na entrada do solar, algumas pessoas olhando as atletas. No meio da plateia, um homem usando um chapéu quase à Santos Dumont.

Casou-se em 1955 aos 25 anos. “Essa idade, naquela época, era considerada meio avançada pra casamento”. De 1956 a 1967 teve 7 partos, sendo um dos rebentos natimorto. Mesmo com os filhos todos pequenos, quando ainda morava na Fazenda do Fumal, a dona Naná, mulher do seu Geraldo Chaves, fazia questão de que ela cantasse na Semana Santa e por isso lhe ofertou uma babá para cuidar dos seus filhos. Mas o marido não quis, dizendo que ele mesmo tomaria conta da prole.

Passou momentos difíceis, mas soube resignar-se e ser resiliente nas horas certas. Sempre se preocupou com o estudo dos filhos. Costurava profissionalmente e foi desde cedo construindo sua independência. Chegou a dar aulas de costura. Passava dias em Belo Horizonte costurando para suas primas: com isso ajudava o marido a cuidar financeiramente da casa. Também revendia peças artesanais de Resende Costa em outras paragens.

Filomena é aquariana. Mulheres aquarianas são seres do seu tempo e de além dele. Embora herdeira de uma cultura interiorana com rígida moral, é moderna, atualizada, aberta a mudanças, pois aceita com tranquilidade, sem espantos, o que surge de novo na face da Terra. É alegre e se recusa a passar tristeza para as pessoas. Adora uma seresta, marchinhas de carnaval. E canta dançando. Eclética, participativa, sempre leitora e amante da comunicabilidade, sente-se jovem. Certa vez, uma das filhas lhe disse para acompanhar os grupos da terceira idade. “Gosto muito das minhas amigas sim,” – respondeu – “mas os jovens me rejuvenescem”. Na frente de sua casa não passa ninguém que ela não intercepte para conversar e saber de que família é e contar casos e mais casos.

No recente 05 de fevereiro de 2021, Filomena completou seus 91 anos. Dois dias depois, gravaram um vídeo de umas poucas pessoas diante da sua casa fazendo-lhe seresta e o postaram no Facebook. Viva mais do que nunca, ela foi cantando com todos, porém do outro lado da cerca, sem sair de casa. Infelizmente estamos ainda em tempos de pandemia, mas isso não impediu o seu aniversário e o seu contentamento, mesmo que a distância. E no seu balançante canto e risonho corpo, escreve-se uma lição que não se esquece. Os ledos cantos da vida semeiam flores eternas.

Dona Filomena – Parte I

17 de Marco de 2021, por Evaldo Balbino 0

Atrás de si uma penteadeira. Suspenso na parede ao lado direito, o quadro da Mãe Rainha segurando amorosamente ao colo o Menino Jesus. E os três (penteadeira, Virgem e Menino) namoram dona Filomena num canto memorioso.

Enquanto Filó entoa músicas sacras, a Virgem Mãe olha para ela também com amor e vitoriosa, e faz isso por ver em dona Filomena uma mulher vivida e grata pelas graças recebidas. Nas suas nove décadas e um ano de vivência, essa cantora e risonha mulher participou de casamentos, carnavais, batizados, folias de reis, primeiras comunhões, festas do Rosário, bailes, festejos vários, crismas e muitos outros eventos ligados entre si, sem a separação entre o profano e o sagrado. Cada um de nós é um todo indivisível. A impenitência e a contrição, a alegria e a tristeza – tudo isso louva a Deus que nos sabe humanos.

Como que debulhando um rosário de felicidade e suplicando sem desespero à Virgem Maria “Mãe, Rainha e Vencedora Três Vezes Admirável, / Mostra-Te Mãe na minha vida, / Toma-me nos Teus braços, toda vez que sou frágil.”, Filomena faz soar sua voz em latim.

Primeiro o canto da Verônica, o que é entoado na Sexta-Feira da Paixão durante a procissão do enterro de Jesus. Fez esse solo por anos seguidos. A primeira vez que o cantou tinha aproximadamente 19 anos, e o padre Nélson segurava o microfone enquanto ela cantava, no adro da Igreja da Matriz. Depois desse canto à capela, uma dolorosa e doce Ave, Maria por ela é entoada, assim como fez em várias apresentações da Orquestra Mater Dei e também em casamentos, profissionalmente. A umidade ondulada da voz é lágrima sonora.

Depois, em meio à natureza enraizada em seu quintal, seus braços e boca entoam a clássica, simples e bucólica Sertaneja de René Bittencourt, primeiro sucesso desse compositor gravado em 1939 por Orlando Silva. E o amor à mulher sertaneja é poroso na melodia de dona Filomena: “Sertaneja, se eu pudesse, / Se Papai do Céu me desse / O espaço pra voar, / Eu corria a natureza, / Acabava com a tristeza / Só pra não te ver chorar.”. E o canto da mulher de agora refaz o dueto que ela compunha com o seu esposo no outrora. Mostra com orgulho e doçura o banner que os filhos fizeram em 2005 para a comemoração das bodas de ouro do seu casamento. O painel reproduz a foto do matrimônio de quase sete décadas atrás, em que ela usa o vestido nupcial de feitura das próprias mãos. Em 2007 o marido, Dezinho do Fumal, faleceu, mas a foto, o banner, a canção e a imperiosa memória tudo eternizam.

Ainda no quintal, seu corpo esperto diante de alamandas amarelas amando a vida. De sua boca em pompa exala-se o hino que foi composto em Resende Costa para recepcionar os resende-costenses que voltavam da II Grande Guerra. Até hoje Filomena o canta com dicção e vigor. As alamandas, cerca-viva, cobrem um muro de pedra da época dos escravos, o qual dá nome ao bairro “Beira-Muro”.

Dona Filomena também se lembra da compositora, poetisa e maestrina Dona Guiomar Sampaio. Ambas se conheceram quando os rapazes e as moças ficavam “fazendo avenida”, indo e vindo de uma ponta à outra nologradouro central da cidade. Devo dizer-lheque também peguei o resto desse tempo, uma vez que ainda nos anos de 1980 e 1990 também se “fazia avenida”, desse mesmo jeito, nos fins de semana e em dias de festa. Natural de Visconde do Rio Branco – MG, Guiomar Sampaio se mudou com o maridoSô Florianoe filhos para Resende Costa no janeiro de 1951. Em 1956 a família foi-se para Lagoa da Prata. Nessa estada na Cidade da Laje, amusicista compôs uma canção e a ofereceu a dona Filomena para que esta a cantasse ao som do violino e de outros instrumentos. Fala de amor a letra, o sempre amor: “Teu lindo olhar / me ilumina, me fascina; / é o luar / cuja luz purpúrea me domina. / Tens no olhar / a ventura de um amor / nascido ao luar, / as serenatas de um cantor. / Teus olhos são mágicos, / melancólicos e nostálgicos. / Só me transmitem felicidade / longe de ti na soledade. / Tens neste teu lindo olhar / um feitiço que me salva / e, no santuário feito para amar, / o inferno azul em que perdi minh’alma”.

Dona Filó começou a trabalhar aos 7 anos, quando aprendeu corte e costura na casa da dona Josina Lara, filha do primeiro casamento do Sô Quinzinho. Lendo aquelas medidas, interessou-se e aprendeu o corte centesimal. Tornou-se, segundo ela, modista e não costureira.

O escuro cintilante

18 de Fevereiro de 2021, por Evaldo Balbino 0

De noite eu não via quase nada, porque não tinha luz elétrica no povoado.

Lá em casa, parede de tijolo à mostra, chão também de tijolo no qual eu tinha vontade de nadar quando minhas irmãs o lavavam. Eram latas tantas de água que limpavam tudo, e o tijolo do chão bebendo a água que lhe matava a sede. E minha sede de mergulhar ali era muita.

De noite, nessa casa de família numerosa, a luz de lamparina era a nossa companheira. Sua fumaça chegava à cumeeira, sua flama projetava sombras nas paredes. Sombras humanas, pois os demais bichos fugiam lá de casa, tamanha era a higiene com tudo.

Lembro as sombras dos meus irmãos estudando, fazendo de noite o para-casa, porque de tarde ou de manhã, no contraturno da escola, o que faziam eram os afazeres da casa e das roças que o pai cultivava em terra alheia nas proximidades.

Era de noite, nessa casa, que eu via a sombra de minha mãe ao tear. Colchas sendo tecidas para ajudar no cuidado financeiro de tudo. Marido e mulher em labutas sem fim. Lembro a noite em que dois garrotes da redondeza travaram uma baita briga. E seus urros e embates corporais eram escutados a distância. Minha mãe assustou-se; mas, clamando pela misericórdia de Deus, não largou o tear nas altas horas semiescuras.

Digo que eu não via quase nada, porque era de noite. Mas esse não ver era com os olhos materiais na limpidez do dia. Muita coisa eu via sim. Silhuetas dizem mais do que os corpos e os objetos vistos à plena luz. Indecisas, elas acionam o que há em nós da verdadeira visão. É mais real o que imaginamos do que aquilo que vemos.

E era dentro da pequena igreja que a luz era verdadeira. Luz atravessada pelos escuros de dogmas rígidos na verdade, mas em meio à comunhão de reses que, mesmo machucando umas às outras de vez em quando com os chifres, não deixavam de ser grei buscando seu pastor. E o pastor, dizia o cooperador Totonho lá em cima do púlpito, o verdadeiro pastor é o Cristo que se fez Jesus e que morreu em carne por nós.

Na igreja tinha lampião a gás, luxo tanto para casas pobres. Não que a igrejinha fosse rica, mas o ajuntamento do gado (cada rês com seu bolso, vaquinha dali e daqui no que se chamava e se chama de coleta espontânea) permitia o fausto do lampião. E que a mão esquerda não visse o que fazia a direita: assim ninguém sabia o que cada qual dava em contribuição para os gastos básicos da igreja. Os atendentes dos rituais, os faxineiros, os porteiros etc. – todos trabalhavam ali voluntariamente. Porém tinha todo o resto: os lampiões, o gás dos lampiões, a limpeza, o asseio dos dois banheiros ao fundo da igreja (outro “luxo” este, porque praticamente todos usavam em casa era privada seca mesmo!).

O chão do pequeno e simples templo era amarelo. De amarelão, diziam. E como brilhava à luz dos lampiões! E meus pais e outros progenitores levavam colchas para que nós (as crianças exaustas da labuta de ser criança) pudéssemos repousar durante o culto de uma hora e meia. Eu gostava de me deitar ali, com vontade mesmo até de abrir mãos das cobertas forrando aquele brilho gostoso de se ver. A luz de Deus morava no amarelo do chão. A cera e a enceradeira tinham o poder de fazer os olhos de Deus brilharem sob os nossos pés. Mas nada de eu me deitar direto no piso frio! Meus pais não deixavam. Poderia vir um resfriado.

Entre outras crianças, meus olhos semicerrados fingiam um sono que quase nunca existia. Primeiro porque o brilho dos olhos de Deus era espantoso. Não tinha como não olhar para ele. Segundo porque o inferno, vindo com palavras de ferro lá de cima do altar, era terrível e também espantoso. E meu corpo pequeno, bem na boca do sono, temia o ranger de dentes, os lagos de enxofre, o fogo descomunal crepitando por toda a eternidade. Daí meus olhos meio que abertos. A visão do brilho de Deus no chão amansava a dança dos demônios e limpava a mente de algum pecado cometido durante o dia, por ato ou pensamento ou palavra.

E Totonho até que falava manso. Mesmo assim, na sua branda e sussurrada voz, o inferno, mesmo vindo macio e aveludado, era espinho na carne, farpa cravada na pele, cravo incomodando o pé contido num sapato apertado.

Os cultos eram assim, cheios de luz nos escuros da vida. Deus tem doçuras como nós temos, mas somos também brutos em nosso severo amor.

De força em força se caminha

20 de Janeiro de 2021, por Evaldo Balbino 0

Recebo neste Natal de 2020 uma linda mensagem de áudio da minha amiga Elzi Reis. E também lhe envio outro áudio, ao que ela me responde. E as três gravações são longas. Desculpamo-nos mutuamente pelos tamanhos dos arquivos, mas fazemos isso sabendo que as mensagens são necessárias e fraternas.

Minha amiga diz que o Natal a inspirou a conversar comigo, mostrando-lhe a importância de guardarmos o que nos é sempre caro. No nosso caso, a amizade, esta flor que não murcha e que levamos para a ultravida.

Digo-lhe do meu prazer em ouvir o seu áudio, e reafirmo sua garra e dedicação quando ela foi minha professora de 1988 a 1991. Pontual e assídua, ela chegava à escola e dava suas aulas de História com competência e seriedade.

Nas idas e vindas de nossas vozes, falamos de tantas coisas mais. Dos desânimos. Dos declínios. Do tempo que passa. Das forças indo-se embora aos poucos. Do desejo de que todos os que estão vindo compreendam que nós vamos passando. Da existência de culturas diversas e do fundamental respeito entre elas. Dos trabalhos sociais em prol de todas as vidas, humanas ou não. Da literatura. Das antologias de que venho participando. Dos nossos desejos de que a humanidade seja sempre guiada por Deus.

Falamos sobre a sensibilidade como algo que nos salva. Vivemos para nós mesmos, mas antes de tudo para os outros. Se buscamos compreender a vida, compreensão impossível, começamos a ver o nada. Então nos salva dar sentido para a existência. Daí fazermos tudo para atingir essa meta.

Ponderamos sobre a finitude. Sim, somos finitos. Mas existe o infinito que nos alimenta. E no infinito temos fé. Nessa esperança do que não se vê (eis a definição paulina da fé), vamos seguindo nossas vidas adiante.

Nossa conversa passeia pela difícil senda das coisas estruturais da nossa sociedade, as coisas entaladas em nossas gargantas como espinho incômodo de peixe: as diferenças sociais, a pobreza, o racismo. E pensamos no frio e nas pessoas imersas nele sem proteção, na fome e nos estômagos vazios clamando por piedade. Mas nos acalentamos em referências a pequenas ações nossas e alheias que podem amainar as dores.

Envia-me, entre um áudio e o outro, a declamação de um poema do poeta Bráulio Bessa, feita pelo próprio autor, no qual se tecem reflexões sobre o exato sentido do Natal, sobre a necessária ação social que deve comboiar a oração. A partir do poeta cordelista, falamos do poder do sorriso e da alegria no meio da dor e da tristeza. E, num acordo de pensamento, reforçamos reciprocamente que pensar no mundo e no outro é contribuir para amenizar as agonias da existência. E fazendo tudo isso, estamos fazendo para nós mesmos, tanto neste plano quanto no que lhe é diverso. Cuidar duma planta é cuidar da beleza e do ar, é cuidar de nós que amamos a beleza, de nós que respiramos o ar. As sociedades precisam de consciência, de amor (caridade), de união, de respeito entre tudo e todos.

Quanto às antologias de que participei ao longo de 2020, digo-lhe em específico do livro Tempo partido 2020 – resgatando sentimentos de humanidade. Organizado pela escritora pernambucana Ivanilde Morais de Gusmão, esse tomo é uma antologia de que participo com muito amor. Eu lhe conto que já li todo o volume de 554 páginas e que gostei muito dele. Informo-lhe que a brochura enfeixa poemas, contos, crônicas, reflexões sobre a vida e a necessidade de a repensarmos. Enfim, textos com sentimentos humanos. O meu escrito, dentro do universo de 121 autores, é uma carta aberta para a humanidade, no desejo de que todos nos amemos, amemos o mundo e cuidemos dele.

Ao fim da conversa amena, entabulada a distância, solicito à minha amiga que ela continue caminhando, apesar dos pesares, pois assim está escrito no salmo 84, através do cântico dum peregrino alegre por encontrar-se nos átrios do templo de Jerusalém: “Bem-aventurados os que habitam em tua casa; / louvam-te perpetuamente. / [...] / Vão indo de força em força; / cada um deles aparece diante de Deus em Sião.”. Lindo e respirável isso! De força em força se caminha. E com os olhos de Deus em nós, vamos vendo a beleza da vida. Continuemos no nosso apego a Deus, que só assim tudo é vida e luz em meio aos sentimentos do nada.

Caminhos

13 de Dezembro de 2020, por Evaldo Balbino 0

Quase toda a minha família congregava numa igreja lá no Ribeirão de Cima. Nas noites de sábado e nas tardes de domingo.

De noite eu não via quase nada, porque não tinha luz elétrica no povoado. Não via com os olhos materiais.

Mas durante o dia sim. Meus olhos que a terra espreita eram sóis iluminando a vida. E viam muita coisa. Mato, bichos, gentes, córregos, morro pra subir e descer.

Havia dois caminhos pra irmos à igreja, isso se pensarmos em aberturas já feitas porhumanos, como estradas e trilhas. Querendo burlar essas duas sendas, era possível subir pelo pasto acima da nossa casa e atalhar um pouco.

Uma das passagens usuais era lá pra baixo, passando de fora das casas da tia Tuquinha, depois da Sá Bilica e da tia Fiinha. Mais além da estrada, ao lado do moinho coletivo da parentela, vinha a casa da Teresa do Roberto. E, por fim, subindo uma trilha perto da cachoeira do Tibúrcio, chegávamos por trás da igreja, passando acima da casa do irmão João.

A outra possibilidade era pela estrada de cima mesmo, a principal que ligava os três Ribeirões: o de Baixo, o do Meio e o de Cima. Nós morávamos no do Meio. Íamos subindo por essa carreira forrada de cascalhos, os pés escorregando neles, e ao lado uma cava sombria de dar gosto pra uma história qualquer de terror. Meus olhos subiam pela estrada iluminada, mas desejando medrosos pisar o chão da cava carrancuda. E os causos macabros sempre olhando meus passos, abraçando meu corpo de menino.

No caminho de baixo também tinha perigos, e muitos. Um deles foi num domingo bem certeiro. Minha mãe terminou atarantada de arrumar a cozinha do almoço, se arranjou com simplicidade e me levou junto dela. Meu pai não estava em casa, e meus irmãos curtiam a modorra duma tarde domingueira, sol a pino, calor de morte. Também pudera! Culto às duas horas da tarde neste Brasil dos trópicos, só Deus na causa mesmo! E como precisamos de Deus nesse dia, minha mãe e eu!

Sobre a porteira depois da casa da tia Fiinha, um cipó esverdeado e grosso jazia estirado. Minha mãe viu. Eu até então não tinha visto nada, pois meus olhos ouviam atentos e prazerosos a bulha da água descendo pro córrego da Sá Bilica. No exato momento em que as mãos de minha mãe foram abrir a porteira, o cipó se moveu. No susto, ela retrocedeu o corpo e me puxou consigo pelas mãos. O cipó era uma cobra grande tomando o sol da tarde. Incomodada com o nosso movimento, a serpente foi saindo pra horta da tia. E nessa saída de matrona que comera e não gostara, ela foi indo devagar, em câmera-lenta, sem pressa nenhuma. Isso, com certeza, era pra azucrinar a pressa de minha mãe, que tinha incomodado seu sono ofídico. Ofendida, custou-lhe nos dar caminho. Mas deu, mesmo que na lentidão.

Pela estrada descendo ao lado da cava, era bom apanhar alecrim-macho na volta da igreja. E aquele cheiro de verde, porque cor tem cheiro certo!Com esse alecrim a gente fazia uma touceira em torno da ponta de um pau, amarrava com embira e, num passe de mágica, produzia uma vassoura. E terreiro pra varrer era o que não faltava lá em casa. A vassoura de alecrim indo e vindo, a poeira se levantando, a sujeira sendo jogada pra qualquer banda ou juntada pra se jogar bem longe.

Na estrada de baixo que dava até na trilha perto da cachoeira do Tibúrcio, tinha o moinho. Mundo vasto onde eu triturava pedaços de vivências. E se contava que no debaixo da moenda, bem junto do rodízio, vivia uma assombração. Com o maquinário parado de noite, ou nas sombras estendidas de tardes silenciosas, vinha de lá um choro, um lamento, um balbucio sem consolo. Por causa desse fantasma, eu nunca que ia sozinho no moinho. Tinha que ser junto de um alguém adulto pra me proteger. Os medos são enormes e carecem de arrimo.

Na estrada de cima tinha o mata-burro, onde burro não passava, mas passavam gente e jipe. Inclusive um tal de jipe do farol azul que andava só de madrugada e que era na verdade outra assombração. Prova disso foi um tio meu que, estando a cavalo, encontrara numa antemanhã escura e nebulosa o tal do jipe, tentara desviar dele e não conseguira. Na iminência da batida, o seu susto de olhos abertos vira o carro de farol azulado passando por cima dele, atravessando cavalo e homem como se fossem ar. Olhando pra trás, o tio vira que lá ia o carro-fantasma seguindo seu caminho espectral. Resultado da cena: um homem todo urinado e um cavalo empacado no meio do caminho.

O menino que eu era e sou amava esses dois caminhos. Lá na igreja, o homem do púlpito só falava de céu ou de inferno. Coitado! Acho que ele não conhecia os meus caminhos tão ricos.