“Povo sem história é povo sem alma”
15 de Janeiro de 2014, por Rosalvo Pinto 0

Capela dos Campos Gerais (Fotos André Eustáquio)
O dito popular do título, mais que um simples dito, talvez seja um “aforismo”: expressão que significa e resume condutas e vivências de uma pessoa ou de uma sociedade. Um povo sem identidade baseada na sua história, sem respeito ao seu passado, às suas raízes e ao seu meio ambiente é povo que não tem alma.
Neste texto vamos tecer algumas considerações sobre o comportamento do nosso povo resende-costense, partindo da hipótese de que, no século passado, vimos perdendo gradativamente nossa história e o acervo de nossos bens culturais. Felizmente, também gradativamente, começamos a reverter esse quadro. Os movimentos culturais, o empenho da educação escolar, a preocupação com a preservação do nosso acervo cultural e ambiental e a participação da mídia nesse processo são a garantia de que estamos caminhando, devagar, mas corretamente.
Um olhar sobre o nosso passado nos estimula a prosseguir nessa difícil tarefa: nossa principal avenida descaracterizou-se quase totalmente, tornando-se a parte mais feia de nossas ruas e de seu casario; na década de 70 perdemos, calados, a metade de uma das duas maiores e mais bonitas praças da cidade; nosso Teatro Municipal perdeu, misteriosamente, a faixa de terreno de acesso às três portas da sua lateral, à esquerda; antigas e belas fazendas ou se desmoronaram (Fazenda dos Campos Gerais e Fazenda da Laje, ambas do século 18) ou foram demolidas para se vender suas portas, janelas e seu madeirame (Fazenda Palmital) ou estão em péssimas condições de conservação (Fazenda das Éguas), para citar apenas alguns casos; nossos cruzeiros ou simplesmente desapareceram ou estão em péssimo estado de conservação; a capoeira de Nossa Senhora da Penha continua gritando desesperadamente por uma recuperação e fechamento e... a ladainha de perdas e problemas parece não ter fim.
O pior é que todas essas perdas são irreparáveis. Para tentar estancar feridas abertas que vêm sangrando há anos, têm aparecido órgãos, grupos, associações, movimentos: o Conselho Municipal do Patrimônio Histórico e Cultural, a ONG IRIS, a AMIRCO e o MAC. São entidades oriundas da comunidade. Precisamos urgentemente erradicar o mau costume de esperar que o poder público tenha que resolver todos os nossos problemas. É bom lembrar que nos falta ainda um severo código de posturas municipais para disciplinar o grande crescimento da cidade.
Há algum tempo atrás falávamos com orgulho: “nossa cidade é a cidade do artesanato”, com o atrativo dos preços baixos; hoje, vai desaparecendo a figura dos artesãos, substituída pelo comércio atacadista de artigos dos artesãos de outras cidades, estados e países... e os preços... bem, naturalmente vão subindo e afastando os turistas, que procuram o artigo artesanal mais barato. Uma forma de se incentivar o artesanato seria investir na formação de artesãos.
Muitos de nossos conterrâneos, à vista dessa reviravolta, que passa a ser lucrativa para uma minoria, sugerem que deveríamos investir no desenvolvimento do turismo, que é a marca principal da nossa região. Boa ideia. Mas é preciso agilizar esse sonho, antes que desapareçam os poucos pontos turísticos existentes.
Vou apontar aqui um ponto importante, que envolve turismo e história: a recuperação dos “restos mortais” das ruínas da fazenda dos Campos Gerais. O JL visitou recentemente o local. Trata-se de um dos pontos mais importantes de nossa história: ali viveu o inconfidente (e seus descendentes) que deixou seu nome ao nosso antigo arraial. O complexo das ruínas está bem perto da cidade: exatos 8 km. O acesso está bem conservado. A paróquia está de parabéns pelo cuidado com a capelinha de Nossa Senhora do Carmo: o espaço da paróquia está limpo, a capelinha pintada de novo. Mas há um monstrengo quase encostando-se na capela. As ruínas estão cobertas por um enorme matagal. Que tal o Poder Público, de comum acordo com o proprietário do terreno, não recuperasse aquelas ruínas? Trata-se simplesmente de mão-de-obra de limpeza e recuperação de alguns trechos dos alicerces. E, por fim, uma bela placa indicativa, na entrada no bairro Palmares...
Sonhar não é pecado: continuamos sonhando com três pontos que poderiam atrair o turista: as ruínas da Fazenda dos Campos Gerais, a capoeira de Nossa Senhora da Penha e, talvez o mais interessante, nossas lajes. Quanto à Laje de Cima, não se esqueçam os resende-costenses que continuaremos batalhando para a retirada da malfadada caixa d’água da COPASA. Ah, ia me esquecendo: que tal um belo portal de entrada da cidade, lá no trevo?
No próximo artigo, uma boa notícia: vou mostrar como estamos investindo a largos passos na área cultural de recuperação de nossa história. Aguardem.
Where are we? In the United States or in Brazil?
11 de Dezembro de 2013, por Rosalvo Pinto 1
Em princípios dos anos 50, o padre salesiano (e músico) Ralfy Mendes de Oliveira, com seu perspicaz “feeling” (!), compôs uma marchinha muito interessante. Mal sabia ele o que viria pela frente. Vejam o estribilho e apenas uma das estrofes:
“Agora todo mundo anda dizendo por aí,
‘Good bye, good bye, boy’.
Eu acho que essa gente precisava em vez de inglês,
Aprender um pouco mais de português, O.K, O.K!
“How do you do”, diz o engraxate;
“Very well”, responde o carroceiro.
Até a cozinheira lá de casa vem com essa:
‘Patrão, tá tudo bão, tá tudo O.K. O.K., O.K.!’”
Natal à vista, ao abrir o jornal Folha de S. Paulo (FSP) por esses dias, levei um susto. Pensei que estava em New York. Mas estava em BH mesmo.
Aí, resolvi passar uma semana no Nordeste antes do Natal. Então, saí procurando hotéis na FSP. Fiquei na dúvida entre o Iberostar Bahia, ou o Prodigy Beach Resort, ou o Ocean Palace Resort. Acabei ficando com o Vila Galé Cumbuco. Pelo menos parecia alguma coisa de brasileiro.
Mas Natal sem presente não é Natal. Então saí a procurar regalos nas propagandas da FSP para presentear meu sobrinho. Vi o “Nintendo 64, um dos primeiros títulos foi o ‘Super Mario 64’, que levou o encanador italiano ao mundo tridimensional pela primeira vez e inspirou os criadores dos jogos da série “Grand Theft Auto” e muitos outros projetistas. E, claro, o primeiro Wii vinha acompanhado pelo “Wii Sports”. Não gostei muito desse. Olhei o novo “Zelda”. O vendedor me falou que “cada novo jogo tem um truque para ajudar Link a salvar o mundo. Em ‘The Legend of Zelda: a Link Between Worlds’ que saiu neste mês para o portátil Nintendo 3DS, o truque é que Link pode se aproximar de qualquer superfície lisa...”. Acho que esse é o melhor. E comprei. Sei lá o que é isso, mas meu sobrinho de 3 anos com certeza já sabe. Pode embrulhar.
Ah, mas estava me esquecendo do meu filho que passou no vestibular. Merecia um bom presente. Fiquei na dúvida entre telefone ou câmera e os quatro modelos: o Samsung Galaxy 54 Zoom, o Sony Xperia Z1, o Nokia Lumia 1020 e o iPhone 5s. Afinal, fiquei com o “iPhone 5s”, pois ele “tem disparo muito rápido, ótimo software para organizar imagens e app simples de usar”. Sei lá o que é isso, mas esse último com certeza deve ser o melhor. Está lá na Loja “Tour Bike”.
Mas para crianças na faixa de 3 a 4 anos sugiro os brinquedos: “Show de Mágicas Mickey Club House Disney – Xalingo” ou o boneco “Iron Man 3, com 3 armaduras” (Lojas Americanas), ou a boneca “Monster High Scaris Ghoulia Yelps, bem barata, (Walmart) ou então a boneca Monster High 1600 anos Clawd Wolf”. Tenho uma ligeiríssima impressão de que o melhor mesmo deve ser este último.
Mas eu também sou filho de Deus e vou comprar um presente para mim. Fiquei na dúvida se compraria uma bicicleta “Airwalk Vintage City 700”, que está em promoção na Loja “Tour Bike”, ou então um tênis Adidas. Olhei todos e chamei o vendedor. Imaginem eu pedindo ao vendedor – que a essa hora certamente iria gostar de ser chamado de “seller” -: “seller, please, I want to buy a tennis Porsche Design Sport Run Bounce 52”... E seja lá o que Deus quiser.
Lá na seção “Ilustrada” da FSP, tentei ler o texto cujo título era “#euzinho”. O subtítulo informava: “Evolução das câmeras de celular e avanço de redes sociais elevam autoretratos digitais, as ‘selfies”, a fenômeno cultural de massa”. Fiquei matutando comigo mesmo: “self” quer dizer “a si mesmo”. Será que foi daí que terá vindo o famoso almoço “serv-servis” que inundou o Brasil? Nós tupiniquins pensamos que o “self” do “self service” seja alguma coisa referente a “servir’, pois é comida que a gente serve... Pois é, a moda agora é fazer caretas e autofotografar o #euzinho. Quanto mais exótica a careta, melhor o “selfie”. Bacana, né?. A autora da reportagem escreveu: “Até a conclusão desta edição, a hashtag #selfie havia sido usada 58 milhões de vezes no Instagram. Entre os lusófonos, a prática se estende à hashtag #eu, com 2,5 milhões de uso”. - Você entendeu? - Não? - Então o seu selfie está muito fraco. Cuide dele.
Em meio a essa dominação toda, há aqueles que gostam de esnobar (olha o inglês aí...) e acabam se dando mal. Conta-se que pouco depois da 2ª Grande Guerra o presidente americano Harry Truman se encontrou com o Marechal Eurico Dutra, nosso presidente. Truman apertou-lhe a mão e apressou-se a saudá-lo: “How do you do, Dutra? Ao que, empolgado, mais que depressa respondeu o nosso poliglota presidente: “How too you too, Truman?”.
Pena que o padre Ralfy faleceu no ano passado. Se ele estivesse vivo, é bem provável que hoje ele alterasse parte do seu estribilho:
“Eu acho que essa gente precisava em vez de português,
Aprender um pouco mais de inglês!”
Pronto, fico por aqui. Desculpem-me as muitas aspas: o texto tem mais inglês do que português. Vou fechando o meu “The New York Times”, oh!, desculpem-me, o meu “Folha de S. Paulo”...
Good bye, boys! Good bye, tribos da geração “Z”!
“Terceiros” de antigamente
15 de Outubro de 2013, por Rosalvo Pinto 0
Pode ser que algum leitor estranhe o título. Não se trata dos antigos irmãos das chamadas “Ordens Terceiras” (de São Francisco da Penitência, dos Carmelitas etc.). Nem aqueles que plantam (roças) à terça. Os dicionários não registram, mas, todo falante de uma língua tem o direito de inventar uma palavra. Foi o que eu fiz.
Talvez um dos objetos religiosos mais difundidos no mundo, pelo menos no Ocidente, seja o “terço”, ou o “rosário”. Nas línguas mais perto de nós o terço é rosario, no espanhol, (la) terza, italiano, rosaire, francês, Rozenkranz, alemão e rosary, inglês. No português distinguimos o terço do rosário, que é o conjunto de três terços seguidos. O nome “terço” vem da reza principal, corresponde à terça parte do rosário. E o “terceiro” é aquele que faz terço.
Criado o nome, vamos adiante. Mas, infelizmente, é nome de uma profissão que não existe mais. Hoje os terços são fabricados industrialmente. Há anos que não vejo um terceiro, como se via antigamente. Porém, vale mais a pena dizer “terceiro” do que “fazedor de terço”.
Como menino, lembro-me dos dois grandes terceiros em Resende Costa: o Nhonhô Caiano e o Zezinho da Santa Casa. Mais recentemente, foi o Gabriel Pinto, irmão do sô Zé Pedro (pai do Serginho, do Lucílio etc.).
Modéstia à parte, nos meus tempos de menino no seminário, tornei-me um exímio terceiro. Meu alicate - a ferramenta básica e quase única de um terceiro -, aposentou há mais de 50 anos. Coitado, deve ter saudades. Para não enferrujar, vez por outra arranjo um servicinho pra ele. Mas o que ele sabia mesmo era fazer terço. Aliás, minto. O meu foi um alicate de dentista, aço de primeira, bico curtinho, dava mais firmeza para trabalhar. Ganhei-o de um colega de seminário, o Reinaldo de Moraes Cunha, de Mercês do Pomba.
Além do alicate, a gente mesmo fazia uma geringonçazinha, como se fosse uma pua ou furadeira. Era muito simples: uma rodinha de madeira, um toquinho redondo de 25cm com um ferrinho na ponta, um pedaço de barbante e pronto. Estava pronta a engenhoca.
Nos meus tempos de terceiro a gente utilizava quatro tipos de bolinhas, ou “contas”. As mais simples, abundantes e mais fáceis de se trabalhar com elas eram as “contas de lágrimas”. Branco-cinzentas, tinham um formato de lágrima. Bastava apanhá-las pelos matos e tirar com um arame fino (ou agulha) o seu miolo central, pois eram já furadas pelo centro. Outra, também muito comum nos matos, era redondinha, pequena e bem preta. Se não me falha a memória, eram as “contas de caeté” e era relativamente fácil de ser usada. Outra, mais rara e mais bonita, era a conta de “canafístula”, marronzada, vinda de um arbusto médio, também nativo nos matos. O problema é que ela era dura e difícil de ser furada, pois, além de dura, não tinha um formato muito regular. Por fim, a mais elegante, pois dava um terço mais comprido e, sobretudo, mais solene, mais religioso, por causa de uma certa ligação evocativa com a oliveira, árvore sempre muito lembrada na Bíblia, no Novo Testamento: era a conta de caroço de azeitona. Além de difícil para furar, dava trabalho para limpar, lavar e raspar. O problema maior era o custo da azeitona, que naqueles tempos era cara e rara.
Ainda nos meus tempos, na década de 50, apareceram as contas artificiais, de plástico, de cinco cores. Com essas contas a gente fazia um terço colorido, conhecido como “terço missionário”. Cada um dos cinco mistérios (de 10 contas) tinha uma cor, representando os 5 continentes: branca (Europa), amarela (Ásia), vermelha (América) verde (Oceania) e preta (África).
Voltando ao meu velho amigo, o alicate, devo dizer que ele, depois de fazer tantos terços, quase me jogou nas garras da polícia repressora da ditadura militar argentina. Era o tumultuado ano de 1968. Violentos movimentos estudantis no Brasil e na Argentina. Eu estava em Córdoba, Argentina, fazendo o 3º. ano de Teologia e, em dezembro, voltávamos, eu e o colega Dídimo, para o Brasil. Saímos de trem de Córdoba para Santa Fé, capital da província do mesmo nome, onde chegamos por volta das 23 horas. Tomamos um táxi e pedimos para nos levar ao Colégio Salesiano, onde iríamos pernoitar, conhecer a cidade e seguir para o norte da Argentina. O taxista percebeu que éramos estudantes brasileiros e, desconfiado, ao invés do colégio, nos levou para a delegacia da polícia federal.
Passamos a noite presos e sendo interrogados. Em dado momento, um policial abriu nossas malas e esparramou tudo pelo chão. Mexe daqui, mexa dali, ele viu o alicate. Apanhou-o, levou até a fechadura da porta do gabinete e sentenciou: “E isso aqui? Já sei. Com certeza é para vocês assaltarem bancos e arrombarem caixas!”. Depois de muitas interrogações, pedimos para falar com a Embaixada do Brasil em Buenos Aires, ou para o Colégio, onde nos esperavam. Finalmente, lá pelas seis da manhã nos liberaram. Apavorados, tratamos de sumir da cidade. Culpa do meu fiel alicate. Mas ele se redimiu e nunca mais me abandonou. E nem arrombou portas e caixas. É apenas um simples e santo terceiro!
Resende, nossa irmã portuguesa
13 de Setembro de 2013, por Rosalvo Pinto 0

Vista parcial do centro da cidade de RESENDE, Portugal. Os telhados vermelhos e bem conservados são uma característica das cidades portuguesas
Passando por Portugal no início de agosto, tive duas gratas surpresas. Para quem, como eu, que me dedico ao estudo de nossa história e de nossas origens, foi um prazer conhecer a cidade de Resende e, em Lisboa, uma descendente direta do nosso inconfidente José de Resende Costa, o filho. Deixo nosso confidente e sua descendente para outra edição do JL.
Orientado desde aqui pelo amigo, ex-aluno e colega do JL, José Venâncio de Resende, fomos (eu e a Beth minha mulher) parar na cidade de Resende, ao norte de Portugal, às margens do Rio Douro. Berço de origem da família Resende, desde os remotos séculos 12 e 13, terá sido de lá que membros da família emigraram, em meados do século 17, para o arquipélago dos Açores e, depois, nos inícios do 18, para o Brasil, indo para nossa região (Lagoa Dourada).
De Lisboa até Porto (bela e interessante cidade), são 2 horas e meia de uma aprazível viagem em moderno e rápido trem. Mais uns 100 km à nordeste, de ônibus ou de trem, chega-se à pequena (uns 3.500 habitantes) e simpática cidade de Resende. É a sede do “Concelho” (município), cuja população é de 13.300 habitantes.
A cidade está numa grande encosta que desce até o fundo do vale, onde serpenteia o Rio Douro. Tal como nossa Resende, do alto descortina-se um belo cartão postal.
Eu imaginava encontrar uma cidade com um perfil e um casario muito antigo. Engano. Trata-se de uma cidade toda moderna, com um ou outro casarão antigo. Um encanto de cidade: limpíssima, habitações de bom gosto, modernas e ricas, praças coloridas e bem cuidadas, com uma infraestrutura invejável: belas escolas, museu, biblioteca, estrutura pública de lazer, com piscinas, quadras e aparelhos de ginástica, corpo de bombeiros e um bonito comércio. No ponto mais alto está o “Seminário de Preparatórios da Diocese de Lamego”, cidade importante da região.
O escritor e historiador português padre Joaquim Correia Duarte, atual pároco de S. Miguel de Anreade - Resende, em sua obra Casas e Brasões de Resende (2007), ao estudar os palácios e os brasões da nobreza que habitava na região em épocas muito antigas, lamenta o desaparecimento de algumas preciosas moradias (“paços”) e seu brasões (“pedras de armas)”, esculpidos em pedras. Essas pedras de armas ficavam geralmente à entrada dos palácios. Seu livro contém o estudo e as fotos de 37 paços, 19 com pedras de armas e 18 sem essas pedras e a história de cada uma das famílias que neles viveram desde antigas eras.
Depois de 25 anos de cuidadosa e laboriosa pesquisa, ele escreveu: “eu pude verificar, com certa mágoa, como algumas casas que foram em tempos tão ilustres se encontram desprezadas e como diversos brasões monumentais se apresentam cheios de musgo e de silva, ou partidos em pedaços nos cantos dos quinteiros [quintais]. E tudo isso, por simples desconhecimento e não por faccionismo ou malvadez” (p. 9). Bem, essa história nós já conhecemos: com a nossa Resende aconteceu a mesma coisa. Também sofreu pelo desaparecimento de seu casario antigo, com a diferença de que muitos de seus casarões foram substituídos por construções feias e mal ajambradas.
A Resende portuguesa tem sua atividade econômica maior centrada no plantio da cereja (considerado o maior da Europa), além das tradicionais videiras, que geram os famosos vinhos da região do Douro. Como curiosidade culinária, a cidade é conhecida pelas suas deliciosas “cavacas”, uma espécie de bolo doce, amarelado e com uma cobertura branca, de açúcar em ponto. Outra curiosidade: as principais famílias de Resende foram os Resendes (famílias das mais antigas e ilustres de Portugal, segundo o padre Joaquim Duarte) e os Castros. Em Resende e região distinguiram-se também as famílias Pinto, Cardoso, Fonseca, Carvalho, Azevedo, Melo, Coelho, Macedo e Abreu, entre outras. São esses sobrenomes que a gente lê nas placas da cidade, sobretudo os Resendes e os Pintos.
Quase “colado” em Resende está a freguesia (povoado) de Anreade, com sua simpática e aconchegante capela da Senhora da Luz, toda construída de pedra. Assistimos a uma parte da missa, com um belo coral atrás do altar. E tivemos o prazer de conhecer o padre Joaquim Duarte, que gentilmente nos recebeu e com o qual acertamos nossos contactos para futuras trocas de informações. Espero que ele nos ajude a esclarecer quando e por qual motivo se deu a emigração de membros da família Resende para os Açores. De lá para o Brasil já temos boas hipóteses e algum documento.
Enfim, essa é a Resende das cerejas. Escreve o padre Joaquim: “No mês de Abril Resende é um paraíso de beleza e brancura. As encostas ribeirinhas do concelho são então terras de noivas encantadas, de coração em festa e alvoroço, cobertas de mantos de alvura e de fulgor”.
(Quem quiser conhecer a obra acima citada e uma alentada história de Resende, do mesmo autor: Resende e sua História, vol. 1: “O Concelho”, 1994, 861 páginas), basta dirigir-se à nossa Biblioteca Municipal. O Venâncio, ao passar pela Resende portuguesa no ano passado, trouxe essas duas obras e as doou para nossa biblioteca).
Aegrotasne?
14 de Agosto de 2013, por Rosalvo Pinto 0
No longínquo 1956 eu era seminarista interno no Colégio São João, em São João del-Rei. Estava no antigo 4º. ano de ginásio, 14 anos. Naqueles tempos o estudo do Latim era rigoroso: a disciplina “Latim” acompanhava a gente deste o 1º. ano ginasial, passando pelo colegial, noviciado e ia até o 3º. ano de filosofia.
O padre José Marino Luz era o competente, exigente e temível professor. Era novembro, e ele nos havia passado um conto em latim, de uma página, para ser destrinchado nos mínimos detalhes da gramática latina. E, ainda por cima, todos tivemos que decorá-lo, na ponta da língua. “Aegrotasne?” era o estranho título. Para os que não sabem o que significa, aguardem!
Naquele tempo, nos exames de final de ano havia uma prova escrita e outra oral. Para a prova oral compunha-se uma banca de três professores, tendo como chefe o professor da disciplina.
Era o início de dezembro, a gente suspirando por umas férias, pois os estudos não eram brincadeira. Não podíamos passar as férias com a família. Lembro-me de que só voltei à casa de minha família cinco anos depois de minha entrada no seminário, para passar uns 20 dias, morando, imagine-se, apenas a 36 km de minha terra natal!
Por algum motivo meu pai teve que vir a São João e passou pelo colégio para deixar, na portaria, uma encomenda para mim. Não pôde me ver, pois visitas, até dos pais, só eram permitidas só no primeiro domingo de cada mês, de 14 às 17 horas. O porteiro guardou o embrulho na prateleira e meu pai se foi.
Passados três dias, o porteiro me chamou para pegar o embrulho. Corri à portaria e, só de vê-lo, deduzi, pelas manchas de gordura, que era alguma coisa de comer. Curioso e satisfeito, voltei ao refeitório para o jantar. Naqueles tempos de comida ruim e racionada (éramos uns 250 seminaristas!), qualquer coisinha de comer era bem-vinda. Pelas regras, quem recebia coisas de comer tinha que dividir com os colegas de mesa. Alguns espertinhos, dependendo do volume, davam um jeito de esconder tudo no seu armarinho no dormitório, ao lado da cama. À noite, quando se apagavam as luzes, esses espertos ratinhos roíam seus petiscos debaixo do cobertor, para o assistente não ouvir e tomar o dito cujo. Assim, escapavam de ter que dividir com os colegas. Com o meu embrulho não daria para fazer isso, nem que eu quisesse, pois era razoavelmente grande.
As mesas do refeitório eram retangulares e grandes: 4 de um lado e 4 do outro, assentados em bancos compridos. Nas pontas da mesa, o chefe e o vice-chefe. Cuidavam de ajudar a manter a disciplina e, sobretudo, de servir a comida, para haver uma distribuição justa entre todos. Caso contrário...
Naquele jantar, os comensais da mesa nem sequer prestaram atenção na leitura que se fazia durante parte da refeição. Estavam de olhos grudados no embrulho. Abri, curioso. A surpresa: era um frango assado, recheado de ovos cozidos fatiados e miúdos do frango. Minha mãe era uma especialista em fazer esse prato. Os colegas de mesa arregalaram os olhos de satisfação. Naquele dia podia-se livrar das muxibas de carne de boi, que eram servidas uma vez por semana. Aquele frango significava um banquete. Destrinchado e distribuído, em pouco tempo evaporou-se o presente de minha mãe. Até aí, dada a fome e a novidade, nada de anormal. O castigo viria depois.
Lá pela noitinha, o frango veio mostrar a que veio: diarreia, vômitos, indisposição e dor de cabeça. Aquela foi uma noite de procissão aos banheiros. No dia seguinte, foi preciso transferir quase todos para a enfermaria, dada a gravidade da situação.
Dois dias depois e os companheiros de mesa ainda pálidos, olhos fundos, inapetência e corridas aos banheiros. Para mim, no terceiro dia era o dia do exame oral de latim, pois o exame escrito acontecera antes do desastre gastronômico.
Ainda convalescendo, desci as escadas da enfermaria e entrei na sala de aula para prestar o exame. Lá estavam os componentes da banca, com uma cara de inquisidores. Eu me assentei, sem jeito, envergonhado, sentindo-me culpado por aquela tragédia, sem dizer uma palavra. E o medo de ter que interromper o exame e sair às carreiras da sala?
O presidente da banca esticou uma bolsinha de pano para eu retirar o número do ponto a ser examinado. Tremendo, passei o número ao professor, esperando pelo pior, talvez uma écloga de Virgílio ou uma sátira de Horácio, daquelas bem difíceis.
Alguns segundos de silêncio e de sofrimento. De repente, ouvi a voz do examinador, solene e pausada, como que segurando-se para não rir e quebrar a seriedade daquele momento:
- “Aegrotasne?”. Eu respondi:
- Sim, mas já sarei”. E ele:
- Então, declame!
Eu suspirei, aliviado. Apesar da palidez, dos olhos fundos, da vergonha, de tudo, declamei garbosamente o texto. E ganhei um solene 10. Até que não foi ruim, o frango acabou me salvando do exame oral de Latim. E, como dizemos em Resende Costa: “Assim mesmo teve bão!”.
Ah! Já ia me esquecendo: para os que não sabem, “aegrotasne?”, do latim, significa: “Estás doente?”