Retalhos Literários

De espadas e de heróis

18 de Maio de 2017, por Evaldo Balbino 0

As crianças brincam. E adultos felizes, os que têm a infância durando conscientemente dentro de si, também brincam.

Por isso estou aqui brincando. Estou jogando com palavras, criando e recriando a minha e a nossa vida. Estou seguindo aquilo que Freud constatou em nossa existência: assim como as crianças brincam, criando mundos pela imaginação, o escritor faz isso com palavras. Os escritores criativos embarcam em devaneios não para fugir da realidade, mas para narrá-la de modo melhor. Assim também as crianças. Inventam asas não no intuito de voarem para além desta vida, mas para mergulharem num voo certeiro no âmago mesmo da sua experiência vital.

E voávamos muito na minha infância. Como se voa hoje, é claro!

Se o adejar, no entanto, permanece em sua essência, as formas de voo vão mudando em certos aspectos. Mudam-se os brinquedos, muda-se o que é moda. O motor de tudo, porém, continua. Continuam os nossos gestos com formas variadas sim, mas sempre com os mesmos desejos.

Lá nos túneis de outrora havia muitos barrancos não virgens, verdadeiros precipícios, na minha cidadezinha. E sua virgindade era porque todos eram explorados por meninas e meninos eletrizados. Hoje tais paragens estão abandonadas, cheias de mato, com mamoneiros, lobeiras e folhas de assa-peixe se alastrando por tudo. Desconfio até que estejam abandonadas. As invenções de agora se fazem em outros cenários, outras plataformas, principalmente as digitais. As cercas de arame farpado e muros de placa ou de tijolo não contam. Porque criança não respeita tais obstáculos.

E esses obstáculos eram pulados para que as matas fossem desbravadas. Éramos bandeirantes que buscavam ouro o mais fino, diamante o mais precioso e inalienável. Procurávamos o devaneio sem o qual não sobrevivemos na vida. Nos barrancos de nossa meninice, tudo era possível. Até mesmo o desmundo.

Espadas eram tantas. Cabos feitos de sabugo de milho. Grão já maduro, debulhado e servido a galinhas, pombos e humanos esfaimados de vida, alegria e gula. O sabugo ficava para restolho a gado e para brinquedos infantis. Os cabos assim, de sabugo, serviam de base onde se espetavam barrinhas finas de ferro. Eram varinhas que sobravam do mundo adulto, principalmente nas construções civis onde os pedreiros desprezavam os restos da ferragem usada para a estrutura das lajes.

Eram tantas as espadas quantos fossem os heróis que pudessem manuseá-las. Éramos cavaleiros indomáveis em cavalos imaginários.

Cavalos não existiam mesmo. Só os de verdade, mas dos adultos. A imaginação dessa forma os criava e os fazia galoparem pelo Grand Canyon de nosso bairro, nos fundos de nossas hortas, lá onde podíamos sonhar e campear. As façanhas se realizavam no pasto do Chicão ou no barranco do outro lado da rua, mais para os fundos nos pastos do Lalado. Nossos ginetes eram invisíveis. E eram lindos em suas formas, crinas levantadas ao vento, patas coriscando o chão sob o rumor que as folhas dos bambuzais faziam no topo de um barranco. E as folhas de bambu farfalhavam. Os caules lenhosos e flexíveis balançavam e se roçavam. Rangiam para nos dar medo. Alguns dos meninos até tremiam, já outros não. Aquelas vozes vegetais eram nossas companheiras, davam mais realismo a nossas peripécias.

E em nossas aventuras éramos venturosos. Heróis inabaláveis em suas vontades de viver. Lutávamos com vontade, cada um defendendo seu território contra as hordas inimigas. As nossas guerras eram pura vida, sem feridos e mortes. E golpes de espada atravessavam o ar, batiam-se contra as paredes das ribanceiras e voltavam num eco destemido para os nossos ouvidos. Era poeira fazendo densa cortina sobre os nossos medos encenados naqueles palcos. Era tudo poeira e suor, o que depois demandaria banho mais cuidadoso em casa. Isso para xingamentos das mães, para reclamações dos pais. As contas de luz e água reverberariam mais depois essas bravuras de amor.

E o amor era tanto, que os nossos pais aceitavam, no final das contas, energias tamanhas se desdobrando nos grandes espaços. E o céu sem fim, com seu azul profundo ou seu ar espesso de nuvens cinzentas, abraçava a todos os guris e gurias que corríamos pelos campos, pela poeira da vida vivida e nunca esquecida.

Menino também brinca de boneca

13 de Abril de 2017, por Evaldo Balbino 0

Certo dia a irmã de Lino passou uma tarde inteira na casinha das amigas Lu e Tila. As duas irmãs a tinham convidado para brincarem de comadres lá no fundo da horta com a permissão dos pais.

Depois de costurar e bordar com as colegas, sua irmã chegou na boca da noite com um presente feito por elas, o qual lhe fora oferecido de bom grado.

– É feia de doer, parece até uma bruxa a coitada! – maldisse a irmã de Lino.

Cabeça quadrada. Cabelo não tinha nenhum: só um pano preto envolvendo o crânio. Olhos, nariz e boca mal traçados com costura de agulha hesitante e linha preta. O pescoço e o corpo eram um toquinho de panos envoltos por uma fazenda maior e bem costurada. Braços e pernas, idem, só que em toquinhos menores. As pernas, é claro, mais compridas que os braços. O vestidinho que usava a boneca era bonito, de chita, numa costura também acriançada. Assim um pouco torta, a bonequinha era linda aos olhos de Lino. O vestido dava vida àquela “bruxinha”, assim nomeada pela irmã. Um vestido ramado, com flores vermelhas e amarelas num fundo verde-claro.

A menina luxenta, desdenhando a bonequinha, atirou-a sobre o banco de madeira da sala, dizendo que iria jogá-la no lixo depois.

Então o menino se apaixonou pela rejeitada. “Que bruxa que nada!”, pensou consigo. Pediu a boneca para si com a maior naturalidade do mundo. A irmã fez um muxoxo e deu de ombros:

– Se quiser, pega! Nunca vi menino brincar de boneca, mas pode pegar.

Lino não se importou com as palavras da irmã. Ora essa! Não tinha nada disso não. Estava amando a boneca e pronto. Não via problema nisso não.

Pegou a boneca e abraçou-a com aperto carinhoso. Não lhe daria nenhum banho, não por enquanto, que ela estava novinha ainda, acabada de ser feita. Se lhe cuidasse bem, se não a deixasse no chão sujo de terra, se não a expusesse ao Sol que castiga, não teria que banhá-la tão cedo.

Levou-a para seu quarto, e lá a deixou dormindo tranquila sobre a cama, bem ao lado do travesseiro. E já ansiava a hora em que dormiria ao lado dela, abraçados os dois. Ele sendo o pai de um serzinho tão pequeno e indefeso.

Saiu para correr com os amigos na rua. Jogou uma pelada, pegou bandeira e depois ainda brincou de esconde-esconde. O tempo todo, porém, brincando lá com os amigos, foi sentindo uma ansiedade, uma espera danada. Uma vontade louca de chegar em casa, tomar um banho, tomar um café com leite bem gordo e se deitar ao lado da bonequinha, dar-lhe carinho desmesuradamente. Um instinto profundo foi tomando conta de seus pensamentos, cada vez mais. Um desejo de ser pai do serzinho desengonçado, não aceito pela irmã.

Tudo, porém, ficou só na vontade. No mais depois da noite, já em casa e de banho tomado, o menino se preparava para dormir, quando o pai chegou de fazer serão no trabalho.

O homem entrou no quarto do garoto dando um ufa de cansaço pelo longo dia, e seus olhos viram a boneca sobre a cama do filho. Indagou que coisa era aquela ao lado do travesseiro.

Lino ficou quieto, temeroso da tradicional braveza do pai. Uma braveza que lhe tirava a espontaneidade, a possibilidade de viver sem receios. Uma braveza amorosa, mas cheia de espinhos desnecessários. Diante do silêncio do filho, outra vez a pergunta. E mais uma vez o silêncio do garoto.

Antes que o pior acontecesse, a mãe veio imediatamente ao socorro do filho. Foi logo entrando no quarto e informando ao marido do que se tratava. Disse sem medir palavras, pronta já para enfrentar as manias do esposo. Ele não pestanejou um segundo sequer. Seus olhos relampejaram sobre o filho, reprovadores, e suas mãos, sem esperar alguma reação da esposa, pegaram a bruxinha sem se importarem com o choro do menino. Porque este já chorava, e não pouco. Com passadas bravas, o pai foi até a privada seca, lá no fundo da horta, e jogou o brinquedo na fossa.

Lino continuou chorando em seu quarto, só que agora em silêncio. Engoliu pouco a pouco as lágrimas antes que o pai viesse lhe exigir contenção. E foi dormir sozinho. Nem tinha jeito de fazer uma sepultura para sua filha, que sobre a fossa da privada isso não seria possível. Entre as fezes humanas, ficaram enterrados sua filha e o seu desejo de ser pai.

Mata virgem no fundo da vida

16 de Fevereiro de 2017, por Evaldo Balbino 0

Lu e Tila eram duas irmãs fazendo suas mágicas no fundo da horta, que era um valezinho bem mais para baixo do nível da casa paterna.

Entre bananeiras, um pé de jabuticaba, piteiras, pés de ora-pro-nobis e taioba, elas fizeram sua casinha com telhado de varetas cruzadas sob folhas secas e capim. As paredes eram lonas pretas, retesadas por paus fincados no chão e presas na base com pedras para que o vento não fizesse traquinagens.

Os utensílios e móveis que tinham, sem nenhuma ajuda de ninguém adulto, eram simples e dadivosos. Os bancos e as prateleiras eram tijolos e madeiras sobejados de construções. As toalhas e os guardanapos, retalhos velhos não aproveitados no tear. A mesa da cozinha, uma pedra de mármore já um pouco carcomida de que o pai se desfizera e que ficou elegante sobre os tijolos regulares. As vasilhas eram sobras da cozinha da mãe. Televisão e geladeira não tinham: quase ninguém possuía esses confortos, daí elas não se preocuparem com isso. Para cama, bem no canto do barraquinho, sacos trançadinhos estendidos sobre folhas de bananeira. Sobre os sacos, ásperos para corpinhos cansados, colchas velhas de retalho que também eram restolho muito aproveitável do enxoval da mãe.

Todo santo dia, vinham afazeres infindáveis. A vassoura não parava nunca. Varria e levantava poeira, que o chão era de terra mesmo. E depois a luta das meninas para remover o pó dos móveis. Não queriam, porque não queriam de jeito nenhum, que alguém chegasse ali e escrevesse desaforos sobre a mobília, como aqueles que elas viam nos fuscas pelas ruas. Um “Lave-me por favor!” que era mais um deboche direcionado ao dono do veículo do que um pedido de socorro do pobre e sujo carrinho. Além do mais, sujeira não é bonito, pensavam consigo as irmãs trabalhadeiras. Lenço na cabeça, espanavam tudo, e tudo limpavam com esmero exemplar.

Aquele era o mundo delas, bem melhor, longe dos mandos do pai e das cobranças da mãe. Ajudavam sim no tear, nos afazeres da casa, na varredura do passeio em frente da casa. Até as marmitas faziam para o pai comer lá na lavoura, que plantar e colher para ajudar no sustento de quatro pessoas não era nada fácil. Ajudar sim, porque os dois teares também contribuíam em sua faina com as despesas da família. A mãe num tear, sempre. E as duas irmãs se revezando em outro para não cansarem tanto, pois tinham que estudar, ajudar em casa e ainda cuidar de sua verdadeira morada, a que ficava lá nos fundos entre as ramas de ora-pro-nobis e os pés de taioba. Os gastos eram volumosos. Três mulheres e um homem; e as duas filhas eram boas de garfo, sim senhor!

Auxiliavam em tudo. Quando tinham trégua, porém, lá iam cuidar da sua casinha, a de verdade, na mata virgem no fundo da vida.

Nesse lar aconchegante (porque somente delas), poucos amigos entravam. Eram escassos os agraciados, os convidados por tão boas anfitriãs. A irmã de Lino era sempre um dos obsequiados por Lu e Tila. Ia lá muitas vezes, e voltava deslumbrada, contando detalhes daquela vida verdadeira, daquela vivência de se invejar.

Tempos depois, Lino entrou lá uma vez com a sua irmã. E da casinha guardou uma doce visão. As donas serviram afáveis e doces saborosas, colhidas ali mesmo na hora avançada da tarde. Tomaram uma limonada depois, para refrescar o calor e amenizar o doce que ficara impregnado nas bocas ávidas de vida.

O menino gostou tanto da visita, que depois disso mandou para as duas irmãs uma geladeira (um invólucro de vidro transparente que encontrara no barranco de lixo perto de sua casa e que era uma belezura). As amigas lhe ficaram muito gratas. Depois de lavada a geladeira, nunca deixavam de depositar nela água fria filtrada lá na cozinha da mãe.

Mas Lino se deslumbrou mesmo, quando lá na casa esteve, foi com os pés de ora-pro-nobis, as silenciosas e grandes ramas que ficavam ao redor do ranchinho. Eram cercas vivas orando pela proteção da casinha das amigas. Com suas flores brancas de miolo alaranjado, os arbustos deram ao menino uma sensação boa de paz, alegria e proteção. Ofertaram-lhe, naquele mundinho imenso das amigas, a fabulação importante e necessária nesta vida.

Os cinco corações

19 de Janeiro de 2017, por Evaldo Balbino 0

A tarde indo pelo meio, o Sol abrasador lá fora. Sob o telhado candente de amianto, as mãos da mãe trabalham. Rangendo um pouco, o tear inquieto transpira castigado pelo calor. Os pés da mãe alternam as pisadeiras. Os braços puxam e empurram a queixa, intercalando-se no ato certeiro de jogar o novelo, cruzando os fios de retalho que vão compondo a colcha. Alguns fios arrebentam-se na teia. Mas a paciência levanta-se do banco, apoia a barriga no rolo, e os dedos pacientemente arrebanham os fios tresmalhados, passando-os pelo liço, unindo ponta com ponta, restabelecendo a continuidade que se havia perdido, o caminho da construção.

Na parede de tijolo, algumas aranhas escondidas invejam trabalho tão difícil, porque não ofertado pela natureza. Enquanto a aranha é a mestre natural da tessitura, a mulher é a mestra-mor, pois não lhe foi dado tecer assim gratuitamente. Teve a mulher de aprender tecnologia tão nobre, tão bela. No entanto mulher e aranha não se confrontam. Ambas são parceiras nas tessituras da vida.

E a mulher vai tecendo com o filho ao lado. O menino fica ali, raquítico mas esperto, cansado de já ter ido à escola pela manhã, de já ter buscado o leite na casa da Dinha, de já ter ajudado na arrumação da cozinha depois do almoço. Dever de casa já feito, que a tabuada será tomada pela professora no dia seguinte. Ponto por ponto será cobrado. A multiplicação é complicada, contudo o garoto persiste. Tem o desejo de que na vida as coisas boas, como estar ali com a mãe, se multipliquem e que não sejam vítimas de tanta subtração. Mais para a noite, ele ainda terá que correr pela rua, bater uma pelada, fugir às pressas num esconde-esconde pelos cantos ao redor. Antes disso tudo, porém, a contemplação da boca e das mãos da mãe. Um canto nos gestos e na voz.

Então o desejo antigo do menino, anterior a ele mesmo. E o pedido que nunca se cala:

– Mãe, canta de novo pra mim!? Canta a da vaquinha!

Atendendo a vontade incansável do filho, o tear batendo sem cessar, lá vem a voz da mãe gorjeando com altura e zelo a história triste da vaca em seu destino. As mãos puxando e empurrando a queixa do tear, enquanto a boca entoa a queixa da vaca em seu fadário. A declamação inicial, considerando a vaca em sua realidade sem alegoria, introduz um cenário triste: "Aquela pobre vaquinha indo para o matadouro, / tão velha e magra que tem os ossos furando o couro. / Parece que ela adivinha que caminha para o fim. / Se ela pudesse dizer, talvez nos diria... assim...". E o guri suspirando, esperando pela voz modulada após o introito doloroso.

E de imediato o lamento da vaca, a verdade dita ao homem, nua e crua: “Meu boiadeiro me levando à morte, / Dei minha vida para lhe ajudar, / Meu leite puro é que matou a fome / De seus filhinhos, que ajudei criar. / Os meus filhinhos você levou embora, / Uns para o corte e outros no estradão, / Puxando carro pelo chão do mundo / De dor, sangrado pelo seu ferrão. O “chão do mundo” provoca um oco no coração do moleque, um sentimento de profunda tristeza. As palpitações do tear dão o compasso da música, os passos da vaca, o ritmo de um coração machucado que, no entanto, bate ainda com anseio de vida. Os batimentos secos do tear misturam-se com as vogais sonoras na voz da mãe, dando a elas uma base, um alicerce, um chão firme.

A “chicotada da partida” reboa no ouvido atento à voz da mulher. Os olhos da infância estremecem, como se estivessem eles mesmos sendo flagelados. Uma infância já tremendo perante os açoites do mundo. E a mãe continua dramática, num canto altissonante que todos da rua podem ouvir. O tear segue gemendo surdamente; os pés não param; as mãos prosseguem; o gorjeio avança, vibrando.

“Quando sua faca atravessar meu peito / E o meu sangue lhe escorrer na mão...”. O coração do garoto disparado, a língua seca de alegria e de medo, os olhos com um brilho indescritível. A imagem do sangue escorrendo, da faca atravessando o peito da vaca, da vaca morrendo sem resistir à faca. E o menino tonto, tonto de prazer com o canto da mãe, tonto de dor ao encarar a morte. A morte de um ser tão importante como a vaca.

De repente uma luz brilha no céu: “Desde o início da humanidade, / Quando em Belém viram a Divina Luz, / Com o meu calor, na fria manjedoura, / Fui eu que um dia aqueci Jesus”. Os lamentos da mãe e da vaca perduram, mas agora a estrela de Belém aparece e aquece todos os corações. O seco coração do tear, o amoroso coração da mãe, o sangrento coração da vaca, o disparado coração do filho, o sagrado coração de Cristo.

E a imagem do presépio abre o sorriso do menino. Não um presépio montado, desses que se fazem todos os anos em milhões de casas. Mas sim um presépio outro, remoto: aquela cena real em que Maria e José, fugidos de Herodes, hospedam-se numa estrebaria sob os auspícios de simples animais. E lá estava a vaca, presença doce e duradoura, anterior ao lamento que agora o menino ausculta.

A rua descalça

15 de Dezembro de 2016, por Evaldo Balbino 0

A rua tinha recantos. Descalça, pobre e ao mesmo tempo rica de possibilidades e fantasias. Com a terra à mostra, surgiam estradas para carrinhos de madeira e de plástico, levantava-se poeira densa com pés afoitos nas queimadas e peladas. No pega-bandeira, era um deus-nos-acuda. A Prefeitura, de vez em quando, espalhava cascalho para evitar o barro nos dias de chuva. Davam trabalho as pedrinhas. Tropeços dos dedos que, errando a bola, se machucavam. Vacilações de saltos altos sobre os serezinhos duros e rolantes. Desvios necessários para os carrinhos de meninos com pressa: os seixozinhos eram montanhas a ser transpostas, e os carros tinham que volteá-las porque os garotos ainda não possuíam alta tecnologia para perfurar pedras. E, o que era pior, as pedrinhas dificultavam muitas vezes as partidas de bolinha de gude.

Com a rua em cascalhos, o jeito era buscar pelos passeios das casas, também descalços. Ali a Prefeitura não intervinha, a não ser para ralhar com certos avanços em direção à rua que alguns moradores espertamente tentavam fazer. Ao lado de cercas de taquara ou placas de cimento, a garotada brincava. E havia uma placa, mais lá para baixo no depois da casa do Chicão, em que tinham desenhado o Zico com suas pernas ágeis no futebol. Ficava ao lado de uma porteira que diziam mal-assombrada pelas madrugadas, mas ninguém se importava com isso. O medo era deixado para de noite, quando pela porteira vinham almas de seres sem nome. Vinham lá dos cafundós do pasto do Chicão, bem lá dos fundos mesmo, onde havia bambus enormes, sombras densas, samambaias comestíveis e cobras de asas.

O desenho do Zico era uma graça. Jogador de renome na época, corpo desenvolto inclinando-se no ar para dominar a bola, como que mostrando sua liderança no Flamengo, com vitórias que vinham pelas décadas de 1970 e 1980. Tinha mesmo que ser feito o desenho do atleta, diziam. E não só pela Copa que aconteceria no México (estávamos no ano de 1986), mas também pelas brilhantes participações do esportista nos campeonatos brasileiros de 1980,82,83 e na Seleção Brasileira nas copas da Argentina em 1978 e da Espanha em 1982.

Era ao lado daquela placa que os meninos mais gostavam de jogar suas partidas de bolinha de gude. A presença do jogador rubro-negro carioca dava mais força aos concorrentes, que lutavam por acertar as birocas e “matar” as bolinhas dos colegas. “Matar” e arrematar, que as coleções de cada um não podiam diminuir, mas antes deveriam aumentar ad infinitum. E com orgulho cada participante andava pela rua descalça com seu saquinho transparente cheio de bolinhas. Os saquinhos eram surrupiados das despensas paternas, pois tinham vindo das vendas e mercados embalando mercadorias diversas. Da nobre função de embalar víveres, as embalagens de plástico passavam à nobilíssima tarefa de guardar as bolinhas compradas e as angariadas em conquistas às vezes honestas e noutras não.

E as batalhas se mostravam cada vez mais difíceis. Na terra vermelha dos passeios descalços, nem cimento nem ladrilho nem cerâmica. Tudo era poeira sob pés encardidos, que chinelas não eram bem-vindas naquelas horas. Os dedos dos pés plantavam raízes no chão. De cócoras, os meninos mostravam destreza com o indicador e o polegar arremessando as bolotinhas de vidro em direção a cada um dos quatro buraquinhos feitos no chão, sempre no desejo de acertá-los todos para depois avançar contra as bolinhas dos inimigos. “Perder a vez”, nunca! Ganhar, sempre!

E os olhos cresciam mais era sobre as bolinhas raras, as que pareciam pedras valiosas. A miríade de cores e brilhos em cristalizações fazia os olhos cintilarem. As bolinhas transparentes, com um tom azulado no centro, mostravam-se as mais cobiçadas. Eram arremedos de topázio azul, água-marinha, lápis-lazúli e outros azuis profundos, para lembrar aqui o belo poema de Henriqueta Lisboa, “Azul profundo”. Nessa poesia, temos as sensações de infinidade e ao mesmo tempo pequenez do homem diante da vida em sua imensidão: “Ó tesouro desconhecido / por toda a eternidade! // Ó luz da solidão, / ó nostalgia, ó Deus!”.

Temos nostalgia sempre. Uma lembrança azul. Do que foi e do que virá. E também do que é, pois é no agora que tentamos abraçar (e faço isso escrevendo esta crônica) o que corre o risco de fugir de todos nós: a vida, sua beleza, sua memória e seu porvir. Participar daqueles jogos (escrevo agora) era buscar por gemas cheias de vida, joias e pedras preciosas em rua descalça e rica como a própria existência.