Retalhos Literários

Letras e bolhas de sabão

17 de Outubro de 2015, por Evaldo Balbino 0

Lino ficou em casa mesmo, soprando um talo de mamona pelo terreiro. E as bolhas de sabão saindo a cada sopro, indo perder-se pela horta, transparentes e ao mesmo tempo meio azuladas. As bolhas despregavam-se molengas da ponta do talo, e o menino as soprando com vontade, viajando os olhos nas bolas leves se indo pelo ar.

Pegara o sabão sob os xingamentos da mãe. A vida tão cara e ele fazendo estripulias, gastando as coisas assim, sem pensar na vida, na roupa a ser lavada. E além disso sabão em pó era coisa de luxo, coisa que poucos compravam. Não era coisa para brincar não. “Mas melhor ficar em casa do que bagunçando com os primos” – a mãe dissera por fim, aceitando de certo modo as extravagâncias do filho. E lá se fora ela, levando a irmã de Lino para a escola.

Nada de ir com a mãe e a irmã. Não iria de jeito nenhum, pois o medo era maior do que a vontade de pegar pirulito na venda do Nélson. Se a mãe fosse direto para a venda, tudo seria diferente. A doçura antecipada do pirulito se mostraria pelas beiras da estrada. Aí sim caminharia ao lado da mãe, e isso seria bom, lhe daria um prazer inominável. No entanto, antes de passar pela venda, sua mãe deixaria a filha na escola. Ir à venda sim, mas à escola não.

Um pouco mais velha do que ele, a irmã começaria a estudar. Iria direto para a primeira série. Em povoado tão pequeno, não havia maternal. Os pais, em sua maioria, não ensinavam os filhos a ler. Outras necessidades da vida eram mais urgentes, como, por exemplo, cuidar da criançada que nascia e crescia em escadinha. Filharada que não parava mais. Os afazeres eram tantos, na casa e na roça, que tempo nenhum mais sobrava, muito menos para o mundo das letras. Pelo menos se permitia à prole que estudasse até a quarta série do primeiro grau, o nível mais avançado que existia ali.

A irmã estudaria como os irmãos mais velhos já estudavam ou tinham estudado. Porém ele, o Lino brincalhão das hortas, de jeito nenhum! E fazendo agora as bolhas de sabão, o menino dividia-se entre pensar nos pirulitos da venda do Nélson, redondos e envoltos por plástico, e na escola da tia Graça.

A venda era uma casa antiga, com duas portas longas de madeira azul que davam para a rua. Logo após as portas, um balcão de cimento, lindo de verde, estendia-se de fora a fora, separando os compradores do vendedor. Seu Nélson, balconista e dono do estabelecimento, ficava do outro lado. Ele era pastor de uma igreja, e ganhava também ali, na venda, o seu pão de cada dia. A sua igreja não ficava no povoado, mas em São João del-Rei. Nos fins de semana, o seu Nélson saía todo engomado e com sapatos lustrosos para, no depois da vila, subir ao púlpito e falar a ovelhas com fome e sede de justiça. Fome numa vida cheia de precariedades. O seu Nélson, porém, era mais agradável quando estava atrás do balcão, sem o cabelo pastoso com um creme tirado não se sabia de onde. Na venda, ele era mais simples, mais homem daquelas bandas mesmo.

A escola era uma casa mais antiga ainda, bonita no seu existir no pedestal de uma escada de pedra. Uma escadinha torta, e as janelas simples e de madeira se abrindo para o mundo, mostrando lá dentro meninos e meninas sentados em fila indiana. Uma vez Lino vira isso. Os pés cautelosos sobre o último degrau da escada. Os olhos pequenos e medrosos olhando lá para dentro. E, diante de todos os alunos, a professora escrevendo numa lousa com a mão direita e segurando uma vara de marmelo com a esquerda. Tabuadas, cartilhas, cadernos e lápis enfeitavam as mesas dos alunos. Tia Graça não deixava ninguém usar caneta, para a letra não sair torta, encurvada. E os olhos do menino não sabendo o que olhar, se as crianças dispostas em linha reta, se a letra bonita da professora no quadro, ou se a vara indômita nas mãos de mestra parecendo brava.

Se fosse para a escola, ele só gostaria de colorir. Nada de fazer contas e escrever palavras. Nada de quebrar a cabeça com tanta coisa difícil. “Ler, escrever e fazer conta de cabeça, Lino; isso sim é superior” – os adultos professoravam, e o garoto só pensando em traquinagens, em vida solta no campo como soltos ficavam os bezerros ainda não desmamados.

E se ele fosse para a escola e lá se perdesse da mãe, entre os outros meninos e palavras e números? Não. Não iria. A irmã tinha ido, e ele soprando agora bolhas de sabão, com um medo danado de que ela não voltasse daquele mundo estranho. Havia idas sem voltas na vida.

O seu irmão mais velho, por exemplo, o que já tinha estudado até a quarta série, não morava mais com a família. Fora para São Paulo em busca de trabalho e só de vez quando chegavam suas cartas, separadas meses umas das outras. E a mãe chorando com as palavras distantes do filho, querendo vê-lo, mesmo grande já, em seus braços buscando ser eternos.

 

Só de lembrar-se da mãe chorando, as lágrimas escorrendo pelo rosto, e do irmão distante de todos, Lino namorava mais ainda as bolhas flutuando. Leves e soltas, para nunca mais voltar.

Brincadeiras na roça

17 de Setembro de 2015, por Evaldo Balbino 0

Ilustração Elimar do Carmo

O carrinho de boi feito de casca de umbigo de banana. As juntas de boi para puxá-lo eram de sabugo. A primeira Kombi de plástico que o pai me dera, e eu fazendo com enxadão (porque mais estreito) estradazinhas pelo terreiro afora. Água havia aos borbotões. Era só buscá-la no córrego da tia Tuquinha, e tudo estava resolvido: as estradas eram aguadas, e a vegetação poderia crescer cheia de vida para enfeitar os caminhos da kombizinha. Isso não são apenas lembranças. Tudo faz parte da vida que vivíamos no Ribeirão de Santo Antônio. De tanto me lembrar das coisas, nada se perde e tudo é revivido com a mesma avidez do passado.

Nas noites do Ribeirão eram muitas as diversões. Isso até lá pelos inícios da década de 1980. Na falta dessa parafernália que cada vez mais a modernidade urbana vai introduzindo nos mais distantes e ermos lugares do mundo, nós tínhamos um montão de coisas que fazer. Celulares, computadores, shopping-centers, parques de diversão, boates, bares – nada disso tínhamos num lugar em que nem luz elétrica existia. Era um show para a criançada ir até à vila, onde postes escassos de luz anunciavam o contrário da escuridão. Mas no Ribeirão não era sempre tão escuro assim não. Num céu sem estrelas, a lua muitas vezes ajudava a clarear as coisas e as vidas. E como ajudava!

Crianças e adolescentes brincavam de tudo pelas noites da existência rural.

No “passa-anel”, objetos pequenos e desejáveis (como anéis, pedrinhas e moedas de centavos do Cruzeiro) eram dádivas que as mãos cúmplices do passador entregavam às escondidas para algum colega da fileira. "Com quem está o anel?". Essa pergunta ia se repetindo até que um adivinhador, sortudo, tomava posse do que era o desejo de todos.

Na “Alfândega”, ficávamos tempos a fio tentando descobrir as regras inventadas e dizendo coisas a esmo como gato, vaca, mendigo, ratos. Até que por fim o grupo inventor da regra dizia “Isso passa sim”, e as portas se abriam para outros mais colegas se entregarem às invenções.

Numa roda ficávamos cantando “Pai Francisco” e ouvindo as palmas do ceguinho ao centro. O mesmo ceguinho, com suas mãos que não viam, tocava um de nós. Tocava o que seria a vítima a transformar-se, em seu lugar, no próximo cego.

Na batata quente, ficávamos em roda e com o sempre medo sob esta canção repetida: “Batata que passa quente, / batata que já passou, / quem ficar com a batata, / coitadinho se queimou!”.

Na Cabra-cega, o interrogatório seguia acelerado. “Cabra-cega, de onde você veio?”. “Vim lá do moinho.”. “O que você trouxe?”. “Um saco de farinha.”. “Me dá um pouquinho?”. “Não.”. E depois disso, todos saíam correndo. A cabra perseguia os demais, no desespero por deixar a triste sina e repassar o destino da cegueira para algum desavisado que se deixava pegar.

Na brincadeira de estátua, ficávamos todos inertes ouvindo o canto mágico e salvador do líder que escolheria alguém para ser o próximo condutor da brincadeira, o liberto da condição da pedra e agora com o poder de medusa para petrificar os amigos: “Entrei no jardim de flores, / não sei qual escolherei; / aquela que for mais bela, / com ela me abraçarei”.

Assim íamos nos desdobrando no pula-corda; no Seu Lobo; no serra, serra, serrador; no jogo de palitinhos; no jogo da velha; nas cinco Marias; na amarelinha (pulando aqui e acolá); na forca (soletrando e descobrindo letras); na caixinha de surpresas; na pulação da carniça; no carrinho de mão; e no chicotinho queimado com as gritarias de “tá quente”, “tá frio”, “tá esquentando” e “tá pelando”. Cirandávamos, corríamos no pique, buscávamos esconderijos no esconde-esconde, suávamos no pega-bandeira, e mais que tudo gostávamos de brincar de cair no buraco.

Eu gostava era desta última brincadeira. Menino matreiro, sabia bem cair no buraco e pedir um beijo à minha salvadora.

“Caí no buraco!”

“Quem te tira?”

“Meu bem.”

“Seu bem é esse?”

“Não.”

“Seu bem é esse?”

“Não.”

“É esse?”

“Também não.”

“É aquele?”

“É!”

E com os olhos fingidamente vendados, afetando cegueira das bravas, eu pedia do meu bem, sempre uma menina bonita e faceira, um “bico de garrafa”, que traduzido era “um beijo na boca”. Tudo bem que um biquinho de nada, lábios se encostando sem muito movimento, mas para mim isso era uma festa.

 

O difícil mesmo era na hora de tirar a sorte nas brincadeiras. “Uni, dúni, tê, / Salamê minguê, / Um sorvete colorê; / Uni, dúni, tê, / Quem saiu fora foi você!”. E o medo de ser o escolhido, de ter de sair da brincadeira. Mas a vida é assim mesmo. Muita coisa não escolhemos. Nem o tempo que passa é nossa escolha. Ainda bem que temos a memória, para nossa salvação, nesta barca se indo sempre para o futuro.

Colchão de palha e palhas de feijão

13 de Agosto de 2015, por Evaldo Balbino 0

A mãe, torrando fubá no fogão a lenha, atravessava a noite com o manejo das mãos sobre a panela. Ora a mão direita, ora a esquerda, para não cansar tanto. E cada mão segurava firme a colher de pau enterrada no fubá, o cheiro gostoso daquela iguaria alastrando-se pela cozinha, pela casa, atravessando os estrados acima das paredes, cruzando a cumeeira um cheiro bom de vida, de fogão aceso lá dentro, de pessoas existindo.

E lá no terreiro Lino entre os primos, sentindo o aroma de fubá torrado, sua boca enchendo-se d’água, porque pela manhã teria opções: ou café com farinha, ou leite gordo (tirado da vaca no curral) com farinha, ou farinha com açúcar que também era uma gostosura. E a meninada toda, os seus irmãos, comendo farinha e falando com vontade, só para verem o fubá voando, saindo pelas bocas. Os meninos e as meninas sujando-se de fubá torrado e de vida. E se optasse pelo café com farinha, Lino colocaria muito fubá e pouco café. Faria uma paçoca, aquela massa parecendo de areia e tão macia. Um fubá torrado e amolecido pelo café gostoso da mãe.

Esses pensamentos de Lino não o afastavam da brincadeira com os primos. Brincar e pensar em comida eram uma coisa só.

As palhas de feijão, entulhadas num canto do terreiro, ainda estavam mais ou menos secas, já indo para murchas. Antes que o tempo das águas chegasse, o pai providenciaria a retirada das palhas dali. Não deixaria aquilo tudo apodrecer bem no canto do terreiro. “Sujeira traz bicho ruim”, dizia a mãe. E o pai primava pela organização de tudo, para que os filhos não adoentassem, pois nem enfermeiro havia no povoado. E o que se diria de um médico? Este é que não existia mesmo. Terreiro limpo, campo da faina lúdica de crianças, é sinal de saúde, de vida longa e regada com coisas boas. O pai e a mãe assim pensavam e mantinham a limpeza em tudo.

Antes, porém, de as águas chegarem, de as palhas de feijão batido apodrecerem, antes mesmo de essas palhas serem removidas, a garotada fazia a festa. E Lino e seus primos, alimentando-se do cheiro do fubá torrado e da energia de uma infância sem fim, iam cavando túneis nas palhas de feijão. Palhas que davam coceira pelo corpo, mas que revigoravam aquelas vidas e alimentavam aquelas meninices. O trabalho era prazeroso.

Sem eletricidade, luz artificial não fazia falta. A luz da lua e das estrelas sempre alumiava as grotas do Ribeirão de Santo Antônio. Em tempos de seca, o céu é limpo e se descortina mais ainda durante a noite, dando ao mundo a luz das alturas, o farol que faz as grotas parecerem sombras de outro mundo e que torna os terreiros brilhantes, pontos de claridade aqui e acolá em povoado de poucas casas.

E pela noite os trabalhos se embrenhavam. Como as mãos da mãe torrando o fubá noite adentro, as mãos afanosas das crianças iam se enraizando nas montanhas de palhas de feijão. Os túneis em progresso, a maquinaria da infância sem descanso. O cheiro gostoso da palha vindo da terra, misturando-se com o suor da labuta de crianças que já tinham tomado banho e que ainda insistiam em suar na tarefa de existir.

E depois de estarem prontos os túneis, cada um dos meninos e das meninas virava um trem de ferro. Eram máquinas da noite, marias-fumaça atravessando as montanhas de palhas de feijão. Era uma delícia entrar no escuro dos túneis, sentir-se ameaçado pelas laterais e pelo teto na iminência de um desabamento, e aí Lino pensava em mineradores soterrados, em trabalhadores sofrendo para respirar debaixo da terra. Nessas horas ele pensava até mesmo nos mortos sem ar nas sepulturas. Mas tristeza nenhuma tomava o garoto. Bom era tudo aquilo, como boa é a vida. Esta vida que temos e que por isso mesmo conhecemos antes de a morte nos abraçar.

Depois de idas e vindas pelos túneis sob montanhas, os moleques incansáveis eram chamados. A madrugada já quase cobrindo a noite, já quase lhe arrematando a existência escura, e os pais exigindo que os filhos fossem para a cama. Os primos iam embora, Lino reclamando de ter de descansar o corpo sem nenhum cansaço. Qual o problema de avançar a noite toda, de clarear o dia na lida entre as palhas de feijão?!

“De jeito nenhum!”, diziam os pais. “Já passou da hora de criança deitar”. E resmungando, sem tomar outro banho, Lino ia para sua cama, quase obediente.

 

E sobre o colchão de palha de milho, a modorra infantil estendia-se. A coceira no corpo não coibia a marcha do sono. O repouso assentava-se sobre a cama e prosseguia. O menino continuava brincando, não mais agora entre as palhas de feijão no terreiro, mas pelos túneis dos sonhos infindáveis desta vida.

Caso do vestidinho

16 de Julho de 2015, por Evaldo Balbino 0

Sua irmã pulava, menos ele. Nadador de areia, ele era. Quando se animava, com seu pequenino corpo deitado, batia seus braços e pernas naqueles trechos de água rasa, a areia castigando um pouco o rosto, o peito, a barriga de gula e infância. Nadando assim, desengonçadamente, acabava por ficar com o short cheio de areia, mas pelo menos nadava. Do seu jeito nadava.

Naquele dia o corgo da Bilica estava uma beleza. Ninguém na praiazinha estendendo-se. E por isso ele não ficou sobre a grande pedra. O medo de um fantasma aparecer lá em cima era tamanho. Melhor mesmo era debruçar-se sobre a areiazinha, nadar tal qual um marinheiro indômito, navegar com seu corpinho sedento de água e aventura.

As horas foram-se passando, e ele e sua irmã não tiveram tino do tempo. A areia das horas escorrendo, e ampulheta nenhuma avisando os guris que a noite já estava breve. A menina foi a primeira a perceber a proximidade do escuro.

– Vamo embora, Lino! Já tá ficano tarde!

Meio amuado com a situação, o garoto assentiu a contragosto, e foi logo tirando o shortinho para entregar à irmã. Como era de praxe, ela lavaria seu short na água corrente, tiraria dele toda a areia, esfregaria o pano com vontade (que para isso ela tinha jeito) e depois lhe devolveria a roupinha exígua para que ambos pudessem voltar para casa.

As mãos hábeis da irmã trabalhavam sobre a correnteza. Enquanto isso, Lino permanecia escondido atrás de uma pedra, pois meninas nem ninguém mais podiam ver o seu piu-piu. A mãe sempre ensinava e o pai com cara brava sempre advertia. As mãos da irmã fazendo um barulho gostoso. Um esfrega-esfrega de uma na outra, atritando a peça, tirando as manchas. Tivesse sabão ali, e as espumas brilhariam à luz do sol já quase se indo para trás das serras lá adiante. Lino olhava para o trabalho com enleio. Acocorado atrás da pedra, escondendo sua nudez como um Adão redivivo, ia vendo as mãos fraternas no favor necessário.

E a irmã ia jogando o shortinho dele para cima e o ia pegando novamente. E gritava com o irmão:

– Vê, Lino, como sou esperta! Vê!

E o menino xingando, e ela brincando com a cara de um pobre garoto desnudo. De repente, num descuido da irmã, o short de Lino caiu um pouco mais para longe e começou a descer a correnteza. A garota tentou salvar a bermudinha, mas não conseguiu. As águas fortes não deram trégua para menina tão frágil.

Começou a choradeira de Lino. Como voltaria agora para casa, de piu-piu balangando que nem ponteiro desengonçando de relógio? Não, de jeito nenhum! E aí ele se lembrou do relógio antigo, na casa da Bernardinha. Um relógio pomposo, mas carcomido pelo tempo, em cujo alto pousava um pássaro, frio e morto. A frente do relógio com um vidro transparente, e o pêndulo balangando de um lado para outro, sem parar, sem se cansar. O seu piu-piu não se cansaria também. Mas como andar pelado pela estrada? Como mostrar-se assim, sem roupa nenhuma, para quem pudesse passar por ele? Por certo os primos, filhos da tia Tuquinha, zoariam com sua cara. Não, de jeito nenhum mesmo! A irmã que desse um jeito!

Vendo-o emperrado e choroso atrás da pedra, a garotinha encontrou a solução:

– Tô de calcinha, Lino. Então ‘cê vai com meu vestido, tá? De calcinha num fico pelada não.

E o menino, receoso, enfiou sobre sua cabecinha o vestido da irmã. Desengonçadamente subiu ao lado dela para a mina. Nem olhou a água fria e gostosa da bica. Uma água descendo lenta, pouca e refrescante.

Mais acima, na estradinha que levava à sua casa, deram de encontrar com dois carreiros guiando duas juntas de bois e um carro-de-boi cantando de peso. Vendo o menino com vestido, os homens iniciaram gargalhadas terríveis. E aí sim o menino chorou, chorou alto, mais alto que a alta poeira que os bois levantavam com seus cascos.

Fugindo da poeira e das gargalhadas, a infância chorosa subiu a estrada estreita, perguntando-se por que tamanho desajuste, qual o problema de um menino vestir um vestido. O mundo tem disso. As coisas parecem ser dadas, e pronto. São naturais, e nada se pode fazer contra elas.

 

Então, com muita raiva, o menino, lá do alto da estrada, empinou o traseiro na direção dos boiadeiros, levantou o vestido em seu corpinho e mandou aqueles homens catarem cascalho diante dos bois.

A assombração do cor’go da Sá Bilica – Parte final

17 de Junho de 2015, por Evaldo Balbino 0

Jogavam pedras na mulher. Esterco seco pela estrada, cascalho das ribanceiras, frutos caídos de árvores. Tudo era arma contra aquela fantasma tão real. E nada adiantava. Ela vinha bufando sobre todos, como bufa a morte inevitavelmente. Na correria desatada entre as árvores da estrada, todos avançaram rapidamente e perderam de vista a mulher horrenda que vinha mais atrás deles.

No terreiro lá de casa, os adultos trabalhavam, como se nada terrível estivesse acontecendo. Viram todos nós suados, correndo, pálidos, alguns com o short molhado de urina por tanto medo, mas isso não se percebia, porque estávamos todos molhados pela água do cor’go. Aos nossos gritos e acenos, com avisos de que estávamos sendo perseguidos por uma assombração que vinha atrás de nós, todos riram e zombaram de nós, dizendo que tudo era benfeito, porque nós deveríamos é estar ajudando no trabalho e não vagabundando à luz do dia. A meninada tentou mostrar-lhes a assombração, porém ninguém excepcional vinha vindo mais lá atrás, a não ser um dos nossos coleguinhas, retardatário e chorando com o seu medo enorme.

Vendo o medo estampado nos olhos de todos e a incredulidade dos adultos, decidi caçar meu rumo, o esconderijo que eu tinha para enfrentar a vida. Desde pequeno eu já via essa necessidade. Fui para cima da nossa casa e me alojei entre o telhado e os estrados de bambu, os forros que nos protegiam de vento e noite. Ali, encolhido, fiquei matutando por que na vida tudo é tão perigoso, tudo pode acontecer à revelia de nós a qualquer momento. Fiquei ali quieto, esperando que a assombração, onde estivesse, se acalmasse e não mais desejasse sangue de menino tão pequeno como eu era.

Na minha quietude, porém, escutei um ruído sussurrado vindo do quarto-de-dentro dos meus pais. O quarto-de-dentro era onde dormiam minhas irmãs, as solteiras. Naqueles tempos as moças, mesmo namoradeiras e casadoiras, tinham de dormir sob a vigilância dos pais. Assim, qualquer pessoa, para acessar o quarto das moças, tinha de passar pelo quarto dos progenitores. Apesar do cuidado dos pais, havia janelas no quarto, caminhos abertos para a noite e para a vida. Janelas abertas para o mundo.

Era lá do quarto-de-dentro, portanto, que vinha o barulho. Um tocar em objetos e móveis, um ruído de mãos e tecidos, um baque de dedos namorando água ruidosa.

Decidi me guiar até o estrado sobre o cômodo. Rastejei meu pequeno corpo como se fosse uma lagartixa atenta, dessas que se levam por paredes entre frestas e cantos à procura de moscas para alimento. Mas ali eu não buscava comida, e sim alívio para o medo que sentia. Queria ver o que me dava calafrios. Como alguém poderia estar no quarto-de-dentro, se todos, homens e mulheres, não estavam na casa, mas sim no terreiro labutando com palhas e grãos de feijão? E se o alimento ali fosse eu, não a mosca vitimada pela lagartixa branca e pegajosa, mas sim o menino medroso atacado por uma assombração com sua foice reluzindo no ar? O meu medo era tamanho, mas minha vontade não sei de quê, de chegar quem sabe ao desmedo, era maior ainda. O meu medo não sumiria assim de todo. Mas pelo menos ficaria mais brando, mais acostumado com os sustos que a vida nos prega.

Escondido sobre o forro, olhei por entre as frestas do estrado. E vi, juro que vi, do lado da cama de minhas irmãs, a temível foice da assombração. E ao lado da foice, numa bacia de alumínio bem grande, vi aquela mulher de corpo esquálido e terrível se banhando.

 

Agora sem a bota de sete-léguas, sem nenhum pano na cabeça escondendo-lhe a identidade macabra, seu rosto era negro como todo o corpo. E ela se banhava e ria. E da negritude banhando-se na água da bacia, emergia um corpo branco. Da brancura trêmula da minha infância.