Abrindo novos caminhos

ROTA LISBOA (4) Jovens voltam à luta por um mundo melhor

28 de Setembro de 2020, por José Venâncio de Resende 0

A cantora luso-inglesa Mia Rose, inspirada por Greta, em protesto no Ártico (foto: Greenpeace)

Muita gente, inclusive jovens, pensa que as alterações climáticas são muito mais graves do que a pandemia. Parece óbvio, mas não para todo mundo, uma vez que há muitos céticos em relação à crise ambiental espalhados pelo planeta.

A conceituada revista Nature, em sua edição semanal de 24/09, tem como destaque de capa o título “Point of no return”, o que coloca mais combustível nesta fogueira. O estudo assinado pelos cientistas Ricarda Winkelmann e seus colegas mostra quão vulnerável é a camada de gelo do Antártico frente às mudanças climáticas.

De acordo com a pesquisa, como o clima da Terra torna-se mais quente, a camada de gelo torna-se progressivamente mais sensível a dada quantidade de aquecimento. Os cientistas que assinam o artigo alertam que, quanto mais conhecemos a Antártica, mais sombrias se tornam as previsões.

Os autores avisam que, mesmo que sejam cumpridos os objetivos do Acordo de Paris, o nível da água do mar irá subir 2,5 metros até o final do século devido ao desgelo do Antártico. Se os limites estabelecidos no Acordo de Paris não forem atingidos, a contribuição da Antártica no longo prazo para os níveis do mar vai aumentar dramaticamente e vai ficar próximo do impossível de reverter.

Não é mera coincidência que as “greves” climáticas estudantis das sextas-feiras tenham voltado às ruas de milhares de cidades do mundo todo no último dia 25. O movimento, liderado pela ativista sueca Greta Thunberg, passa a chamar-se “Mobilização Climática” e pretende alcançar todos os setores da sociedade civil.

Os jovens querem utilizar estas jornadas de sexta-feira pela emergência climática para exigir medidas concretas (mais e modernas ferrovias, mais energias limpas, mais medidas contra a degradação ambiental, mais produção sustentável) e ao mesmo tempo estimular a mudança a partir de casa (menos consumo de proteína animal, menos uso de lixo descartável como plásticos etc.), por acreditarem que a pandemia não desacelerou os impactos sobre a sustentabilidade do planeta.

Pelo contrário, até piorou a situação na medida em que surgiu um novo tipo de lixo, as máscaras descartáveis, cada vez mais presente nas ruas e praças das cidades.

Referendos na Itália e na Suíça

Tem sido muito comemorado o referendo recente (20 e 21 de setembro), que, por maioria de 70% dos italianos, reduziu o número de parlamentares por mais de um terço. Assim, a Câmara dos Deputados passa a ter 400 membros (abaixo dos 630 anteriores), enquanto o Senado terá 200 membros (abaixo dos 315 anteriores). A reforma ainda limitou em cinco o número dessa figura estranha chamada “senador vitalício”, nomeado pelo presidente da República.

A nova lei, a partir do referendo proposto pelo Movimento 5 Estrelas, deverá ter efeito depois da próxima eleição geral, prevista para ocorrer até 2023. Mas a proposta tem dois problemas: não reduz os altos salários e vantagens dos parlamentares italianos nem resolve a duplicidade de funções da Câmara dos Deputados e do Senado.

Na Suíça, a intolerância contra a migração acaba de ser derrotada pela maioria dos cidadãos. Nas urnas, disseram “não” às intenções do Partido Suíço das Pessoas (SPV) de impor a limitação de imigrantes europeus, que atualmente representam cerca de 25% da força de trabalho do país. Como se sabe, a Suíça não faz parte da União Europeia e o SVP, partido de direita, tem a maior representação no parlamento.

Dessa forma, será mantido o acordo bilateral entre a Suíça e a União Europeia que permite a livre circulação de pessoas. Prevê-se que a migração contribua para aumentar a população da Suíça, dos atuais 8,6 milhões, para cerca de 10 milhões de habitantes, ao longo dos próximos 30 anos.

 

ROTA LISBOA (3): “Saco de dinheiro”

24 de Setembro de 2020, por José Venâncio de Resende 0

Jogador mais caro do mundo (fonte: maisqueum jogo).

Por que falar de centavos se podemos falar de milhões?

O jogador Faiq Jefri Bolkiah, considerado o futebolista mais rico do mundo, vai jogar na primeira liga portuguesa nesta temporada. O sobrinho do sultão do Brunei assinou contrato com o Marítimo, time da ilha da Madeira, terra de Cristiano Ronaldo, depois de uma carreira feita em Inglaterra.

O médio ofensivo de 22 anos, com dupla nacionalidade (Estados Unidos e Brunei), tem fortuna avaliada pela revista “Forbes” em 18 bilhões de euros (cerca de 117 bilhões de reais), mais do que ganham juntos Messi, CR7 e Neymar. Faiq jogou em clubes como Newbury, Southampton, Arsenal e Leicester.

Um “saco de dinheiro” é o que Portugal vai receber da Comissão Europeia para bancar o “plano de resiliência e recuperação econômica”. Aqui, discute-se febrilmente como gastar a dinheirama dos fundos europeus, uma base de 6 bilhões de euros por ano que o país receberá entre 2021 e 2030. Muita gente quer pegar uma carona nos recursos do plano, cuja primeira versão o governo terá de apresentar a Bruxelas em meados de outubro.

Quem cunhou a expressão “saco de dinheiro” foi o ministro da Economia e Transição Digital, Pedro Siza Vieira, em entrevista na televisão. Mas ele acrescentou: “não podemos fazer o que quisermos (com esse dinheiro)”. Os recursos terão de ser usados para criar uma sociedade mais inclusiva e justa, resolver problemas estruturais, reduzir a dependência de carbono e de recursos naturais (economia mais limpa) e ampliar o acesso à digitalização. “Uma sociedade em que as pessoas e as empresas possam beneficiar das tecnologias digitais para melhorar a sua condição de vida e a produtividade da nossa economia.”

Trata-se de uma “enorme oportunidade, mas sobretudo de uma gigantesca responsabilidade”, reforçou o primeiro ministro Antônio Costa. Afinal, milhares de empresas e postos de trabalho foram perdidos e estão ameaçados de desaparecer e houve uma queda no rendimento do conjunto da sociedade. E “daqui a seis anos estarão cá (os burocratas da Comissão Europeia) para pedir as contas do que fizemos com esses recursos extraordinários que foram postos à nossa disposição”. No mesmo sentido, o presidente da República, Marcelo Rebelo de Sousa, alertou: “Este tipo de comboio (trem) só passa uma vez”.

Faltou crescimento

Em entrevista ao Jornal de Notícias (20/12/2012), o ex-embaixador alemão em Lisboa, Helmut Elfenkamper, já alertava que os fundos europeus não produziram crescimento em Portugal. Apesar do fato de o país ter recebido “um influxo de dinheiro muito substancial, não produziu realmente crescimento”. Entre 2000 até aquela data, as taxas de crescimento foram de 0,2%; “se contarmos até 2008, eram 0,8%”.

Entre 1986 e 2011, Portugal terá recebido 80,9 bilhões de euros em fundos estruturais e de coesão, de acordo o estudo 25 Anos de Portugal Europeu da consultora Augusto Mateus & Associados para a Fundação Francisco Manuel dos Santos (FFMS). O valor chegaria aos 96,7 bilhões de euros até ao final de 2013.

Especialistas ouvidos pelo Diário de Notícias (20/05/2013) consideraram que erros foram cometidos, como na “aposta excessiva em infraestruturas, principalmente as rodoviárias”, como definiu o antigo secretário de Estado dos Assuntos Europeus e ex-eurodeputado, Carlos Costa Neves. Ele admitiu que nem sempre foram definidas as melhores prioridades, houve um investimento não reprodutivo, muitas vezes porque era preciso cumprir prazos ou, pior, ir ao encontro de expectativas eleitorais.

Outros especialistas garantiram que houve desperdício e falta de controlo na aplicação dos fundos, o caso de Isabel Meirelles, especialista em assuntos europeus. Devia-se ter investido mais nos sectores reprodutivos e não na política do betão”, acrescentou. Entre 2007 e 2011, por exemplo, o dinheiro europeu ajudou a construir mais de três mil quilômetros de estrada.

Isabel Meirelles disse ainda que não houve uma visão global de aproveitamento dos fundos” e que houve “excesso de burocracia”. Além disso, houve erros no Fundo Social Europeu: por exemplo, houve cursos que não foram dados porque houve desvios de dinheiro e outros que nunca deveriam ter sido aprovados”, como o ensino de “fazer queijo da serra no Algarve.

Na sua entrevista, Helmut Elfenkamper lembrou que, em 20 anos, foi o terceiro maior recipiente de recursos comunitários per capita, e que naturalmente haveria uma redução desse montante. Ainda assim, muita gente ficou desapontada com os resultados (desemprego, recessão acentuada, receita fiscal abaixo do esperado etc.). Por isso, insistiu sobre a importância das reformas estruturais para gerar crescimento.

O ex-embaixador alemão defendeu o crescimento da produtividade e o aumento da qualificação profissional para aumentar os salários: “o caminho é pela formação, mais qualificação das pessoas que trabalham, e, certamente, não a longo prazo pela descida dos salários”.

Da entrevista de Elfenkamper para agora, muitos desafios ainda continuam presentes: desigualdades sociais e regionais, baixa produtividade, justiça deficiente, excessiva dependência do turismo de massa, envelhecimento da população, êxodo de profissionais qualificados.

Enquanto escrevo sobre Portugal, fico pensando nas carências e na falta de visão de longo prazo no nosso Brasil. Tão diferentes, mas tão iguais! 

 

ROTA LISBOA (2)

20 de Setembro de 2020, por José Venâncio de Resende 0

Ponte romana Trajano, sem veículos (fonte: Câmara Municipal de Chaves).

Nova fase da pandemia 

Portugal entrou na sua terceira fase da pandemia, de acordo com autoridades da área de saúde. A primeira fase aconteceu entre março e abril; a segunda, mais amena, entre maio e julho; e a terceira chega agora, antecipando ao período de outono/inverno. Um indicativo do agravamento da situação é que o índice de contágios (o chamado Rt que mede a transmissibilidade) voltou a ultrapassar o 1 (cada 10 infectados, por exemplo, transmitem o vírus a mais de 10 pessoas).

Terceira fase ou segunda onda? O fato é que os contágios voltaram com força na Europa, aos milhares por dia em países como Espanha, França e Reino Unido. Tanto que, depois de algum relaxamento, países já adotam confinamento parcial, restrições em ajuntamentos sociais e ampliação do uso obrigatório de máscaras. A exceção é a Suécia, muito criticada por ter optado por um caminho diferente (não fechou escolas, manteve o comércio aberto e focou na responsabilidade individual).

Em Portugal (país de 92.210 km² e cerca de 10 milhões de habitantes entre Espanha e o Oceano Atlântico), o governo acredita que o país caminha para os 1000 casos diários já na próxima semana, seguindo a tendência geral da Europa. No período de um mês, o número de contágios pulou de pouco mais de 200 por dia para 849 casos (em 19/09). No auge da pandemia, em 10 de abril (uma semana depois do início do 2º estado de emergência), o número de casos diários atingiu 1516 e o número de mortes, 26.

Acredita-se que este resultado tenha a ver com um certo relaxamento durante as férias de verão porque a população estava cansada do confinamento e de outras restrições que praticamente pararam o país desde março. Um novo salto nos contágios deve aparecer nos próximos dias em decorrência da volta às aulas presenciais com o início do ano letivo em meados de setembro.

Se é que podemos chamar de positivo, o fato é que número de mortes é bastante baixo na atual fase da pandemia, comparando com a primera fase. Até porque os contágios estão atingindo as faixas etárias mais jovens da população, embora os surtos em lares de idosos continuem ocorrendo em diferentes regiões do país. O resultado tem sido a menor pressão sobre o sistema de saúde.

O discurso do governo é de que não se pode baixar a guarda, mas sem parar o país. As autoridades, por exemplo, resistem à volta do confinamento total, mas defendem a adoção de medidas descentralizadas (regionais e locais). A palavra de ordem é controlar a pandemia sem trancar o país: sem fechar escolas, sem proibir visitas a lares de idosos, sem destruir empregos. 

Além da experiência acumulada desde março na forma de lidar com a pandemia, o governo apela à responsabilidade da população e os especialistas esperam por maior capacidade de resposta do sistema de saúde. Acredita-se que a evolução desta terceira fase vai depender da efetividade das medidas de saúde pública e da responsabilidade de cada cidadão ao lidar com a doença.

Mas 2020 e parte de 2021 já são dados como perdidos do ponto de vista econômico. Em entrevistas na imprensa ou mesmo em conversas informais, os empresários são menos otimistas do que os governantes. Os negócios vão de mal a pior e o desemprego só aumenta. Há previsões de que, no caso de uma segunda onda, a taxa de desemprego possa atingir cerca de 17,5% este ano, acima de estimativas anteriores (entre 11% e 14,5%), afetando mais fortemente o comércio e o setor de restaurantes e alojamento que empregam trabalhadores menos qualificados e mais vulneráveis.

Num shopping center do bairro onde moro, só se falam de lojas fechando as portas. O movimento caiu tanto que o dono de um restaurante, que já teve sete funcionários, trabalha agora com a esposa e uma funcionária. Decidiu que o melhor é viver cada dia como se fosse o último.

Consulta popular

Uma consulta popular (referendo) no mínimo curiosa aconteceu recentemente na cidade de Chaves (cerca de 18.500 habitantes), no norte de Portugal (divisa com a Espanha). No domingo (13 de setembro), os moradores decidiram, por 85,37%, que a ponte romana (construída na época do imperador Trajano entre fins do século I e início do II e classificada como monumento nacional) deveria continuar exclusiva para pedestres. É que havia uma reivindicação no sentido de que a ponte fosse reaberta ao trânsito de veículos.

Isto nos remete para um dos editoriais da revista britânica The Economist (edição de 19/09), que comenta o surgimento em vários países das “assembleias de cidadãos” e outros grupos deliberativos, para considerar questões que exigem respostas dos políticos. Por semanas ou meses, 100 ou mais cidadãos – tomados aleatoriamente mas com a ideia de criar um corpo reflexivo da população como um todo em termos de gênero, idade, renda e educação – encontram-se para discutir um tópico escolhido de maneira cuidadosa. No final, eles apresentam suas recomendações aos políticos.

Sem se fixar no número de participantes (pode variar de acordo com o tamanho do município) e se são pagos ou voluntários, o importante é que haja independência da parte deles em relação aos políticos. “Assembleias de cidadãos são muitas vezes promovidas como um meio de reverter o declínio na crença na democracia, o qual tem sido precipitado na maioria do mundo desenvolvido na última década mais ou menos”, conclui a revista.

Pesquisas recentes mostram que os cidadãos em geral queixam-se de que os políticos não tem entendimento da, ou interesse na, vida e nas preocupações da população. “As assembleias de cidadãos podem ajudar a remediar isto.”

Fico imaginando cidades do porte de Resende Costa ou São João del-Rei realizando “assembleias de cidadãos”, adaptadas, evidentemente, aos seus perfis. Discutindo, por exemplo, temas como a retirada dos veículos do centro da cidade ou a mudança de um terminal rodoviário para um local mais adequado.

 

ROTA LISBOA

17 de Setembro de 2020, por José Venâncio de Resende 0

Mistura explosiva entre futebol e política

Uma das polêmicas dos últimos dias em Portugal foi a inclusão do nome do primeiro-ministro Antônio Costa, do Partido Socialista, na comissão de honra de apoio à reeleição do empresário Luís Filipe Vieira na presidência do Benfica, um dos maiores clubes portugueses. Não que isso seja novidade, afinal o que não faltam são políticos (deputados e prefeitos) de diferentes partidos em conselhos de clubes de futebol.

A repercusão no meio político e na imprensa foi intensa, não apenas por questão de princípio. Também porque Vieira é acusado de tráfico de influência junto à Justiça (lenta, por cá também) para acelerar a devolução de 1,6 milhão de euros (cada euro vale mais de 6 reais) em imposto cobrado indevidamente pelo fisco português. É acusado ainda de ter causado perda de 225,1 milhões de euros ao Novo Banco (do qual é um dos maiores devedores), que se tornou um saco sem fundo de dinheiro público.

Vieira não resistiu à pressão e “expulsou” os políticos da comissão de apoio à sua recandidatura, a começar por Costa. Numa semana onde as coisas não correram bem para Vieira, o Benfica foi eliminado pelo Paok (time grego) da Liga dos Campeões. Depois de investir cerca de 80 milhões de euros em jogadores (inclusive brasileiros), a noite da derrota na Grécia representou perda de quase metade deste valor, que é o que o Benfica deixará de ganhar na primeira fase (de grupos) da famosa liga europeia de futebol.

Tanto que já há muita gente perguntando se Jorge Jesus não se terá arrependido de ter trocado o Flamengo pelo Benfica. Enquanto isso, o campeonato português começa com os estádios vazios e cancelamento de jogo (devido a casos de infecções de jogadores), por decisão das autoridades de saúde, para desespero dos dirigentes e frustração dos torcedores.

Caçando máscaras

Todos devem estar acompanhando os incêndios que ardem da Califórnia nos Estados Unidos à Amazônia e ao Pantanal no Brasil. Por aqui, o verão chega ao final com um saldo de incêndios inferior à média dos últimos dez anos, embora tenham ardido cerca de 40 mil hectares de floresta e mato.

Para além da inépcia dos governos em lidar com os incêndios, o fato é que o clima é cada vez mais propício a calamidades, embora os céticos não acreditem nisso. As imagens são dantescas e falam por si. 

Ultimamente, meu esporte preferido nas caminhadas diárias (cerca de 50 minutos) tem sido contar o número de máscaras descartáveis jogadas em ruas e praças. Num única caminhada, cheguei a localizar cerca de 20 máscaras. Boa parte dessas máscaras vai juntar-se aos plásticos em rios e oceanos, contribuindo para aumentar a poluição dos mares e afetar a fauna marinha.

Não bastasse isso, na medida em que se for adaptando ao novo coronavírus (que se tornará endemia, de acordo com virologistas), a vida tenderá a voltar a certa normalidade. Inclusive, com o enxame de carros nas ruas e rodovias e de aviões nos céus, a maior parte ainda movida a combustível fóssil (petróleo e carvão são fonte de 85% da energia), um dos principais responsáveis pela poluição que causa o aquecimento global e a morte de mais de 4 milhões de pessoas por ano.

Assim, os incêndios, as enchentes e outros fenômenos climáticos – e consequentemente mais fome, pobreza e deslocações em massa de pessoas - tendem a ser mais frequentes e violentos, acelera-se o degelo das calotas polares e aumenta o nível das águas dos mares, sem falar dos prejuízos à saúde.

Como diz um jornalista português, está tudo ligado.

Bolsa Família, “Renda Brasil” e renda mínima universal

31 de Julho de 2020, por José Venâncio de Resende 0

Renda Brasil: nova nota de 200, com a foto do lobo guará, mais alguns reais.

Duas versões circulam nos meios políticos: uma de que o governo virou refém do “sucesso” do Auxílio Emergencial criado para enfrentar a pandemia (visão da área técnica) e a outra de que o governo capturou a ideia da transferência de renda cujo carro-chefe é o Bolsa Família (visão da área política).

Parece que ficou difícil simplesmente acabar com o Auxílio Emergencial devido ao seu impacto nas várias regiões do país. Então, a solução seria do limão fazer uma limonada. Com a vantagem de que já existe a base consolidada do Bolsa Família em todo o país, o que é um ponto de partida importante.

O fato é que, na medida em que as parcelas do Auxílio Emergencial encaminham para o seu final, o governo acelera os estudos para criar o novo programa de transferência de renda, que aumentaria tanto os valores quanto o público abrangido, com a marca “Renda Brasil”.

Uma equipe interministerial (áreas econômica e social) dedica-se à elaboração de um plano que incluiria o Renda Brasil. Fala-se num valor do benefício entre R$ 250 e R$ 300 ao mês e num programa destinado a seis milhões de pessoas (informais, desempregados, autônomos), para além daquelas já atendidas pelo Bolsa Família (43,7 milhões de famílias).

Afinal, o que é o Renda Brasil? O próprio ministro da Economia, Paulo Guedes, afirma que os beneficiários serão os mesmos que estão recebendo o Auxílio Emergencial. Excluídas as famílias de classe média e média alta que pediram o benefício.

Guedes fala ainda em incluir (e mesmo reavaliar) programas como o abono salarial, seguro-defeso (pescadores artesanais) e farmácia popular, bem como melhorar (e ampliar) as informações do Cadastro Único.

Recursos

O desafio é como financiar o Renda Brasil. Especialistas dizem que a ideia do governo ao criar o imposto sobre operações financeiras na internet (transações digitais) é utilizar parte da arrecadação para cobrir as despesas do Renda Brasil. Mas o governo quer mesmo é criar uma nova versão da CPMF sobre todas as movimentações financeiras, inclusive o comércio eletrônico, para aumentar a arrecadação.

Além disso, o primeiro projeto de reforma tributária encaminhado pelo ministro Paulo Guedes ao Congresso Nacional – que prevê a unificação do PIS e da Cofins num imposto de valor agregado federal – tem alíquota de 12%, considerada alta por tributaristas e setores econômicos atingidos. Quebrado por conta da pandemia e da crise econômica, o governo não tem recursos para implantar o Renda Brasil muito menos para desonerar a folha de pagamento como é desejo de Guedes.

De qualquer forma, dado o impacto do Auxílio Emergencial, que “deu um aquecimento extraordinário na economia do Brasil”, Paulinho Daher, vereador e empresário do ramo de farmácias em Resende Costa, em conversa com este jornalista, considerou que, “diante do visível benefício social atrelado ao aquecimento da economia”, vale a pena o esforço. Numa “análise superficial”, ele acha “interessante a criação do programa Renda Brasil, com a fusão ao Bolsa Família”.

Em paralelo à proposta do governo, foi lançada no Congresso Nacional a Frente Ampla pela Renda Básica, presidida pelo deputado João Campos (PSB) e tendo como presidente emérito é o ex-senador Eduardo Suplicy que luta há décadas pela adoção da renda básica. Um dos economistas que mais debatem o tema no momento, Mônica De Bolle, fará parte do conselho consultivo desta Frente, ao lado de outros economistas, de representantes da sociedade civil e de ex-servidores públicos.

Segundo De Bolle, há várias propostas de renda básica no Brasil. “Algumas são perfeitamente viáveis do ponto de vista macroeconômico e sustentáveis do ponto de vista fiscal. Outras são impagáveis.”

Entre as alternativas em discussão, ela aponta a “renda mínima para todas as crianças, universalisando o benefício”, proposta por pesquisadores do Ipea e da USP. “Uma ideia é começar pela primeira infância, a faixa de 0 a 6 anos, que receberiam meio salário mínimo. Tal programa abrangeria um enorme contingente de famílias pobres e vulneráveis, cobrindo as lacunas deixadas pelos programas sociais existentes.” Seria assim um programa complementar aos já existentes.

Parece-me que o grande desafio será conciliar as propostas do governo federal e da Frente Ampla liderada pela esquerda.

Renda mínima universal

Com a pandemia, as discussões sobre a criação de uma renda mínima universal ganharam novo impulso. Bolsa Família ou Renda Brasil não são a mesma coisa que a ideia de renda mínima universal.

Por inspiração do filósofo e estadista britânico Thomas More (1478-1535), na obra Utopia, o seu amigo Juan Luis Vives propôs, em 1526, à prefeitura de Bruges, na Bélgica, a criação de uma lei que garantisse a todos os cidadãos um auxílio para a sua sobrevivência, independente dos ganhos do trabalho.

A proposta nunca foi implantada, mas deu início a uma discussão que perdura ao longo dos séculos. Foi abraçada por figuras como o filósofo Condorcet (1743-1794), o político Thomas Paine (1737-1809) e o filósofo e matemático Bertrand Russell (1872-1970), de acordo com reportagem de Leonardo Neiva da BBC News Brasil*. “Abrigado na casa de uma amiga enquanto fugia da perseguição em plena Revolução Francesa, o Marquês de Condorcet escreveu, em 1793, Ensaio de um Quadro Histórico do Progresso do Espírito Humano, um de seus trabalhos mais famosos. No último capítulo, o autor defende a distribuição de uma renda fixa para as famílias pobres cujos pais cheguem à velhice sem meios de continuar trabalhando para sustentá-las.”

Amigo de Condorcet, o filósofo americano Thomas Paine, um dos fundadores dos Estados Unidos, publicou, em 1797 na França, texto no qual propunha um fundo nacional, pago a todas as pessoas ao chegarem aos 22 anos, no valor de 15 libras esterlinas e dez libras por ano por toda a vida para todos que passarem dos 50, para permitir que vivam a velhice sem miséria, e deixem o mundo de forma decente. Esse valor seria sustentado por uma taxa paga por proprietários de terras sobre sua herança e chegaria a todos, ricos ou pobres.

O filósofo Bertrand Russell sugeriu, em 1918, uma pequena renda, suficiente para as necessidades” (que) “deve ser garantida para todos, trabalhem ou não, e uma renda maior, determinada pela quantidade de mercadorias produzidas, deve ser dada aos que estão dispostos a se engajar em algum trabalho considerado útil pela comunidade.

Entre os vários defensores de um modelo de renda básica, no século 20, o economista liberal americano Milton Friedman sugeriu a criação de um imposto de renda negativo, em que aqueles com rendimentos mais baixos receberiam pagamentos do governo em complemento à sua renda.

Em 1986, um grupo de estudiosos e pesquisadores criou a Rede Europeia de Renda Básica, hoje de escopo mundial e que se dedica ao estudo e ensino de questões ligadas à renda básica. Entre seus fundadores, o filósofo e economista belga Philippe Van Parijs é um dos principais defensores da ideia no mundo.

A partir da década de 1990, a ideia da renda básica foi encampada por figuras como o economista Thomas Piketty e o empreendedor bilionário Elon Musk, para fazer frente ao avanço da automatização e à substituição de trabalhadores por robôs. Seria uma forma de compensação pelas profundas mudanças que ocorrem no mercado de trabalho.

A precarização e a automação do trabalho estão no centro do debate, que tem a participação da Rede Brasileira de Renda Básica, reunindo estudiosos com o objetivo de educar a população sobre o tema. Esse fenômeno da precarização do trabalho, que decorre em grande parte da automação, faz com que se pense em uma forma de proteção social que não dependa do emprego, diz Tatiana Roque, professora do Instituto de Matemática da UFRJ e vice-presidente da Rede.

Plebiscito

O primeiro plebiscito nacional sobre o tema aconteceu num país rico: a Suíça. Em junho de 2016, o governo suíço submeteu a consulta popular a proposta da renda básica universal, que previa um “salário” mensal de 2.500 francos suíços (R$ 9.000) para todos os adultos e cerca de $625 (R$ 2.200) para as crianças, independente da condição social ou financeira. O plebiscito foi precedido de uma coleta de 126 mil assinaturas por parte de grupos de diversas cidades suíças. A proposta, que defendia a renda básica incondicional (RBI) para todos, não foi aprovada mas ganhou repercussão internacional.

Há 30 anos que o ex-senador Eduardo Suplicy luta pela implantação da proposta da renda básica no Brasil, com base em “experiências formidáveis que ocorrem no mundo. Eu mesmo assisti palestra de Suplicy, no auditório do Instituto de Economia Agrícola (IEA) onde trabalhei, e, olhando para o então senador, pensava quão sonhador ele era.

A lei da renda básica da cidadania, proposta por Suplicy, chegou a ser aprovada e sancionada em 2004, mas nunca saiu do papel. Por esta lei, brasileiros e estrangeiros que vivem no país há pelo menos cinco anos devem ter direito a um benefício suficiente para atender despesas básicas com alimentação, educação e saúde.

Recentemente, Eduardo Suplicy, atualmente vereador paulistano, enviou um exemplar do livro Utopia ao presidente Jair Bolsonaro, com a recomendação no Twitter de que melhor do que distribuir armas será assegurar a Renda Básica de Cidadania para todas as pessoas.

A renda básica universal pode contribuir para sacudir o capitalismo e acabar com as desigualdades, segundo o historiador Rutger Bregman, colaborador de jornais como The Washington Post e The Guardian e autor do ensaio Utopia para realistas, divulgado inicialmente no site The Correspondent.

É uma discussão que tem muito chão pela frente. Já há quem acredite que uma renda mínima universal será financiada pelas empresas de tecnologia e por profissionais altamente especializados e com altos salários. Não será surpresa se, em algum momento, alguém propor a taxação, com alíquotas diferenciadas, de robôs, dos autômatos aos mais inteligentes.

* https://cultura.uol.com.br/noticias/bbc/53494255_nascida-ha-mais-de-500-anos-ideia-de-renda-basica-para-todos-ganha-forca-na-pandemia.html?fbclid=IwAR2YrV1JIZMoNEnDejWbrPK3x5WefEEdHkQaotvjvMRCSrrOEMVil-0P7HU

Fontes:

https://www.jornaldaslajes.com.br/integra/os-primeiros-numeros-do-auxilio-emergencial-em-resende-costa-e-municipios-vizinhos-/3103

https://www.otempo.com.br/politica/governo-cria-forca-tarefa-para-agilizar-renda-brasil-1.2361698

https://www.jornalcontabil.com.br/

https://economia.estadao.com.br/noticias/geral,a-reforma-tributaria-e-as-inconsistencias-do-governo,70003381787

https://blogs.correiobraziliense.com.br/azedo/nas-entrelinhas-a-volta-do-mais-do-mesmo/?fbclid=IwAR30KJ2fbwRLDayQPXd4eE-oGgyyYUeRCAy14Bn9r_TB3ad5r7XFpFOuB1k

https://economia.estadao.com.br/noticias/geral,renda-basica-e-impagavel,70003322902

https://brasil.elpais.com/brasil/2017/03/23/economia/1490287072_800265.html?ssm=FB_CC&fbclid=IwAR3HiyfFsjSC5oasRnRei8zuoMSoKVh_trZCkG8xDNPrCfhxy1ps9bL52X8