Causos & Cousas

Contrastes de uma noite de abril

08 de Maio de 2011, por Rosalvo Pinto 1

O dia da mentira já ficara pra trás, naquele sábado, dois de abril. Parecia uma noite de verdades, com o frio já começando a subir lajes acima. Ao volante do meu bravo fusquinha, dei uma volta pelas ruas. Sentia um frêmito diferente, algo inusitado, com carros subindo e descendo pela espinha dorsal da cidade. Inexplicavelmente, a avenida estava vazia: um ou outro transeunte procurando algum lugar. Também achei meu esconderijo: minha casa, sozinho com meu computador.

Pelas onze, deu-me vontade de procurar alguma coisa para comer. Lá por cima, tudo fechado. Desci. O bar da Maura lotado, com um show qualquer. Sem parar, carros desciam ou viravam à direita. O bar do Toru, ali na esquina do Zé Padeiro, me pareceu estar cheio. Cheguei, curioso, até o Espaço C&M: aquele mar de carros. Tentei um sanduíche no “Point” ou uma omelete na Gracinha: tudo fechado. Espichei até a churrascaria Ramona: rua entulhada de carros, gente borbulhando, entrando e saindo, fila para comprar ingresso. Alguém me informou que era o show do “Uai Garotos”. Resignado, voltei com minha fome. Alguns metros adiante, uma luz acesa e, na porta aberta, braços cruzados e apreciando o vai-e-vem dos carros, o Wanderlei do “Metade é do dono”. Pensei comigo mesmo: se uma metade é dele, a outra pode ser minha. E entrei.

Olhando para todos os lados do pequeno bar, nada vi de comível. Decepcionado, pedi uma pinga e ousei perguntar, sem esperança, por um tira-gosto. “Tenho carne de porco na gordura, de boi, de frango e linguiça”. Cresci o estômago e a curiosidade de saber o que poderia ser aquilo. Resoluto, “sai uma carne de porco. Ah, uma malzbier também”. E começou um bom bate-papo. Inicialmente, sobre os bares de Resende Costa. O Wanderlei garantia que havia uns 50, incluindo os da zona rural. Contamos e recontamos e chegamos à conclusão de que era mais ou menos aquilo. E continuamos fazendo uma conta curiosa. Ele vende, em média, 12 engradados de cerveja por semana (288 garrafas), ou seja, 1.152 por mês, o que, multiplicado por R$ 3,50, dá um total de R$ 4.032,00. Isso significa que, nos 50 bares, os resende-costenses estariam bebendo mensalmente R$ 201.600,00. Acreditem se quiserem!

Quase meia noite. Carros, rapazes e mocinhas (de sainhas curtinhas e decotes generosos) descendo sem parar. Entraram dois caras, tomaram duas gelosas e saíram. Enquanto crescia a expectativa pela “carne de porco na gordura”, entrou no bar o Hélio [Augusto Campos]. O Wanderlei proseava, ajeitava o som, telefonava, entrava e saía da cozinha. Entrou no papo o Hélio, 61 anos, 25 anos morando em Resende Costa, nascido em Barroso. Nunca tinha tido a oportunidade de prosear com ele. Casado com dona Augusta Maria Campos, duas filhas, Eliane e Franciane e um menino, o Felipe da Cesarea (assim, sem acento).

De repente, volta o Wanderlei da cozinha com um prato feito, caprichado, cheirando de longe: arroz, fubá “suado”, almeirão e a carne de porco cozida e frita. Agora foi meu olho que cresceu. E baixei nele. Acompanhavam o prato a pinga, a cerveja e uma garapa gelada. Foi quando o Wanderlei voltou novamente à cozinha, agora trazendo um violão, que passou ao Hélio. Como todo artista, ele regateia um pouco, afina e começa cantando “Meus tempos de criança” (ou “saudades da professorinha”), do Ataulfo Alves. Depois veio “Cidadão”, de Zé Ramalho, que me fez lembrar do Adoniran Barbosa. Jantar musical, que beleza! Só faltavam as velas. De vez em quando eu largava o garfo e cantava também. Não sabia o que era melhor: se a carne de porco na gordura, a “marvada” ou a música do Hélio. Para culminar, veio a “Noite de estrelas”, aquela do Dilermando Reis.

Prato, bebida e músicas. De repente, ali naquele recanto, eu me sentia um privilegiado. Soube depois que o show do “Uai Garotos” foi sensacional, que a festa no C&M foi muito animada, idem no Bar da Maura. Mas, naquela noite, eu não trocaria o “Metade é do dono” por nada. Nada de dificuldade de estacionamento, filas, ingressos, barulho, conversa alta, espera por garçon, divisão de contas etc. Nada. Era pura curtição!

Já era de madrugada quando acabaram o prato e o show do Hélio, que o fechou com “Cruz pesada”, do Trio Parada Dura. Verdade: parecia que toda Resende Costa estava na Maura, no Toru, no C&M e na churrascaria. Contrastando, eu, o Hélio e o Wanderlei da Costa Resende no “Metade é do dono”. Ah, ia me esquecendo, a minha metade custou apenas 10 reais. Falamos da liberdade e da beleza de estar ali, casualmente, naquela hora, naquela noite de 2 de abril, com aquela carninha de porco, tudo isso ao som daquela “música sentimental”, como definiu o violonista. E o Wanderley pôs o ponto final: “O que Deus dá pra gente, a gente não consegue captar”. Valeu Wanderlei, e até o próximo “carne de porco de gordura com fubá suado”. E que volte o Hélio com seu violão.

Profissão: ladrão

10 de Abril de 2011, por Rosalvo Pinto 0

Não se trata aqui hoje de “causo”, mas de uma “cousa”, aliás, triste, também para nossa cidade. Como, infelizmente, “mal de muitos, consolo é”, não é só para Resende Costa, é para o mundo todo.

Na Resende Costa de antigamente, a bem dizer, não havia essa profissão ou essa abominável raça de ladrão. Havia algum ladrãozinho de galinha, ou de frutas, mais para farra do que para maldade.

Acho que há pelo mundo muitos estudos sobre o tema “ladrão”. Que pode ser estudado sob ângulos os mais diversos: histórico, religioso, ético, econômico, sociopsicológico e até político. Faço uns comentários que tangenciam, de leve e superficialmente, alguns desses tópicos.

Começando pela história. Há quem diga que a mais antiga das profissões é a prostituição. Discordo: acho que é a “ladroagem”. Recorrendo à Bíblia, lá no Gênesis já se dá notícia de Caim roubando de Abel. O próprio Jesus Cristo andou envolvido com a figura do ladrão. Chegou a compará-lo com a pior desgraça que pode acontecer ao ser humano, a morte, quando disse um dia que ela chega “tamquam fur” (como se fosse um ladrão). E até no Calvário, já agonizando na cruz, estava enrolado com dois ladrões. E um deles era o mau.

Acho que o combustível que sustenta a grande maioria dos homens não é a religião, a fé, a ética, as virtudes, nem o amor: é o dinheiro. Confirmem isso lá com o Marx e o Engels. Fé, ética, amor etc. sustentam o homem racional. O dinheiro, o homem animal, ganancioso, irracional, o ladrão. Mas isso é, em princípio, intrínseco à espécie humana, pois diz respeito à sobrevivência das espécies. Mas fé, ética, amor, respeito etc. são valores que podem garantir uma vida em sociedades organizadas, com harmonia entre os homens. Possivelmente sem ladrões.

O ladrão escolhe seu alvo em função das circunstâncias: o que for mais fácil, mais rendoso e menos arriscado. Assim, ele ataca e prejudica o rico, o pobre, o velho, o doente, a criança. Não tem nenhum sentimento de respeito, pena ou remorso ao atacar qualquer pessoa. E o pior de tudo: se precisar, ou mesmo sem precisar, por puro hábito e com frieza, ele mata a sua vítima. Como se mata uma barata pelo chão. O animal mata seu semelhante seguindo as leis da natureza, para a sua sobrevivência e a de sua espécie. O ladrão, não, ele mata por maldade, por ganância.

O pior é que a ladroagem é como uma planta daninha ou um cancro, que se propagam rapidamente destruindo o tecido social e difícil de ser extirpada. A sociedade reage com a lei, luta para prender o ladrão. Mas, assim que a própria lei o liberta, ele volta à sua profissão. Uma vez ladrão, sempre ladrão.

Todos os dias, os noticiários de rádios, televisões e jornais estão noticiando roubos, assaltos, latrocínios, quadrilhas, bandos, arrastões, sequestros, cativeiros e sei lá quantas coisas mais (haja palavras!). Agora mesmo, enquanto escrevo este texto, ouço pelo rádio que dois ladrões entraram, em pleno dia, numa sala da UFMG (ICEX, setor de Física) onde estudavam quatro doutorandos, um rapaz e três moças. Armados, puseram todos deitados no chão e limparam tudo que eles tinham: dinheiro, celular, notebooks, cartões. Ai deles se algum tentasse reagir.

Casas e prédios de nossas cidades (até Resende Costa!) estão virando verdadeiras fortalezas, prisões: cercas elétricas ou do “tipo campo de concentração”, cadeados, câmeras, muros altos, trancas, alarmes eletrônicos, cacos de vidro, vigias e sei lá quantas tralhas mais. O problema é que a tecnologia do ladrão acompanha e supera a tecnologia de casas, prédios, bancos e indústrias. Encerro este parágrafo por aqui. Se continuar, vou acabar escrevendo o “dicionário do roubo” ou “do ladrão”. 

Jeová, no Antigo Testamento, para proteger o povo hebreu, castigou os dominadores egípcios com as famosas dez pragas. Hoje ele se modernizou e, para castigar os povos que destroem o planeta, vivem guerreando e se matando entre si, criou uma décima primeira praga, a pior de todas, o ladrão.

Como resolver o problema cada vez mais agravante do ladrão, principalmente num país como o nosso? Arrisco a dizer que não há solução, pelo menos nas próximas décadas. Tudo começa com as grandes diferenças de classes sociais, que induzem as pessoas a roubar. Mas nos acostumamos com um estereótipo de ladrão ligado às classes sociais mais pobres, esquecendo-nos de que há também, e muitos, os ladrões de colarinho e gravata. Eu diria que a única solução passa pela justiça social e pela educação. Educação no sentido amplo: a formação do caráter, pela família e pelas comunidades e a educação formal, pela escola. Mas, infelizmente, estamos muito, muito longe disso.

Há quase quatro anos atrás, na noite de 2 de junho de 2007, nossa cidade chorou, consternada e alarmada. A pobreza, a maldade, a ganância, a falta de educação e de respeito pelo ser humano, com apenas um tiro, levaram o nosso Geraldinho, o Geraldinho do Presépio. 

Vou-me embora pro passado

14 de Marco de 2011, por Rosalvo Pinto 0

O poeta paraibano de Campina Grande, Jessier Quirino, plagiando o título e o tema do poema “Vou-me embora pra Pasárgada”, do Manuel Bandeira, compôs um outro, longo, criativo e engraçado. Que me perdoe o Quirino, mas tomei a liberdade de apropriar-me do título plagiado do seu poema.

Não tem jeito: quanto mais a gente vai percebendo que a caminhada está chegando ao fim, mais a gente tenta se agarrar ao passado. Talvez seja um mecanismo psicológico que nos dá a sensação de que estamos rejuvenecendo. Somos taxados de saudosistas. E os saudosistas reclamam que os jovens de hoje não dão valor e não se interessam pelo passado. Então tento me lembrar do que passava em minha cabeça quando criança e jovem. E me lembro vagamente de que a gente pensava apenas no presente e no futuro. Ainda não havia um passado para nós.

O vilão de toda essa história chama-se “tempo”. É o “ser” mais justo do mundo, ele é igual para todos, sem exceção. Já diziam os romanos: “fugit inexorabile tempus”. Nem é preciso traduzir. 

Tudo isso é para justificar o trabalho que dei para a diretora Luzia, ao procurá-la no Assis Resende em busca de coisas do meu passado. Com seu expediente já encerrado, ela, atenciosa, insistiu em me atender, revirando livros e registros antigos. Deu de cara com o livro de matrícula dos alunos do “primeiro ano primário” de 1949. Exatamente o que eu procurava.

Tinha vontade de voltar aos meus tempos de “grupo escolar” e rever, ainda que no papel ou nas vagas e enfumaçadas lembranças, meus coleguinhas e minhas coleguinhas. Queria ter o gostinho de rever aqueles dias, ainda que apenas nos nomes.

O livro, manuscrito com caneta de pena molhada no tinteiro, continha os nomes dos alunos matriculados, a idade, o nome do pai e sua profissão, a data do nascimento A maioria absoluta tinha sete anos, alguns poucos 8, 9,10 e um 12 anos.

Reconhecer os nomes dos pais é uma tarefa difícil, pois a maioria era conhecida por apelidos. Quem saberia, por exemplo, que Francisco Valeriano dos Santos seria o “Cadico”, que o Hercílio Valeriano Santos seria o “Djôjô” (e seu filho, o Zezito do Djôjô, já falecido), que o Antônio Valeriano dos Santos seria o  “Colório” (e seu filho, também Antônio Valeriano dos Santos, o “Niquinho”) ou que o Antônio Rodrigues Reis seria o Antônio do Marisco (pai da Antônia do Sacramento)?

Outra curiosidade são as profissões dos pais. Dos 61 nomes das duas páginas iniciais, são as seguintes as profissões anotadas: lavrador - 24, comerciante - 7, fazendeiro e pedreiro - 5, alfaiate,  serrador – 3, carpinteiro, tabelião, funcionário municipal – 2 , barbeiro, sapateiro, “chaufeur” (!), oficial de justiça, “mantegueiro”, folheiro, “copeiro”, soldado e carcereiro – 1.

Esfolando a memória e com alguma ajuda, consegui me lembrar dos colegas seguintes:

Meninas: Antônia do Sacramento (do Antônio do Marisco) – Geralda Coelho Resende (do Alípio, a Dica do Zito Coelho) – Maria da Penha da Silva (do Zé Pio Silva)  – Maria de Lourdes Peluzi (mãe do Taquinho) – Maria da Conceição Pinto (a Lilia do Tio Alfredo) – Maria José de Assis (do Ademar Coelho) – Maria da Penha de Assis Pinto (filha do Sebastião Pinto, a nossa querida professora e música) – Maria de Lourdes Reis e Silva (a Lourdinha do Nico Barbeiro) – Maria de Lourdes Resende (senhor Alcino e dona Vera Resende) – Marlene Resende (do Odilon Resende) – Maria do Carmo de Almeida (A Carminha do seu Álvaro Mendes, inteligente, estudiosa, sempre com um laço colorido no cabelo, de saudosa memória) – Sudária Alves de Andrade (nome que eu achava bonito, filha do Valter Andrade) – Vera Lúcia de Souza Melo (nossa vizinha e amiga, filha do seu Jesus de Melo).

Meninos: Antônio de Assis Santos (Totonho do Cadico) – Francisco de Assis Resende (da Sá Cristina, ex-sacerdote camiliano) – Gonçalo de Resende Lara (irmão da dona Teresinha) – Inácio Sacramento Silva (do senhor Sílvio da Adelaide, irmão do Zé do Rosário) – José do Rosário Santos (Zezito do Djôjô, já falecido) – Luiz Ferreira de Andrade (Luizinho, filho do Zé Pio da Silva) – Mário Jesus de Resende (Mário do Sérgio Procópio, tragicamente falecido) – Murilo Fonseca Chaves (filho da professora  dona Marta Fonseca) – José Célio Alves de Andrade (do Valdemar Alves) – Antônio Valeriano dos Santos (o Niquinho do Colório: toda vez que vem a Resende Costa me procura e se lembra de que éramos colegas no “Grupo”) – Antônio Justino (do Zé Duque) – um tal de Odali, que nuca mais vi! – o Mozart Resende (isso mesmo, Mozart?)

Parodiando o Adoniran Barbosa (“onde andará o Joca e o Mato Grosso”?): onde andarão as outras meninas e os outros meninos? “Que saudade da professorinha – Que me ensinou o bê-a-bá”: saudades da dona Tenga (quem de vocês aí acima se lembra do nome dela?), da dona Judite e da dona Teresinha!

Assim caminha a minha cidade

14 de Fevereiro de 2011, por Rosalvo Pinto 0

Estou plagiando o título do famoso filme épico de 1956, de George Stevens, com Rock Hudson, Elizabeth Taylor e James Dean, premiado com o 29º. Oscar. Plagio também o conteúdo da crônica do Carlos Heitor Cony, na Folha de São Paulo de 28 de janeiro passado, sob o mesmo título do filme “Assim caminha a humanidade”.

As grandes invenções tecnológicas do século passado mudaram completamente a vida dos humanos. Uma das mais importantes delas talvez tenha sido na área da comunicação. Comunicação no seu sentido mais amplo: deslocamento das pessoas e processamento de informações. A primeira já teve início em fins do século 19 (ferrovias) e início do 20 (automóvel e avião). A outra começou a partir da segunda metade do século passado: o desenvolvimento da eletro-eletrônica, que teve como resultados a telefonia, a informática, a internet, os avanços na área de diagnóstico médico, entre outros. O conjunto dessas inovações possibilitou a criação da chamada era da “globalização”. A tecnologia aproximou as pessoas do mundo. Terá mesmo aproximado? Que tipo de aproximação?

Resende Costa, obviamente, vem caminhando juntamente com a humanidade. Por muito tempo foi uma cidade pacata, tranquila e acolhedora, mesmo sem luz e sem água encanada. E nela se vivia feliz.

Até as três primeiras décadas do século passado a cidade não tinha energia elétrica e água encanada. Vivia-se com lampiões, velas, lamparinas e “latas d’água na cabeça”. Não havia carros. Na década de 40 começa, tímida e precariamente, a aparecer a luz elétrica e a água encanada. Um ou outro carro. Vivia-se uma vida de maior harmonia. Prevalecia a convivência, todos se conheciam. Luz e água só se consolidaram, razoavelmente, a partir dos anos 60. Caminhamos: hoje, ao que tudo indica, todas as casas da cidade estão ligadas à luz e à água. Salvo engano, até na zona rural todos têm acesso à energia elétrica. Isso significa que a cidade se abriu para o mundo moderno: automóveis, telefone (fixo e móvel), televisão, internet etc. Entretanto, a cidade cresceu, recebeu imigrantes, as pessoas não mais se conhecem e se frequentam como antes, prevalece o individualismo.

Até meados do século passado nem se falava em assaltos e latrocínios. O índice de criminalidade era baixo, resultado de uma ou outra desavença. As portas das casas eram abertas de manhãzinha e fechadas somente de noite. As portas abertas se transformaram em grades, cadeados, cercas do tipo “campo de concentração”. Não havia atropelamentos: ruas e praças eram para as crianças brincarem. Hoje já temos um trânsito complicado, atropelamentos. O primeiro semáforo pode ser, infelizmente, considerado por muitos como um progresso. Na verdade, estamos cada vez mais prisioneiros de nossa modernidade e pagando caro pela perda de nossa liberdade e tranquilidade.

Até a década de 50 a comunidade resende-costense vivia ao redor e em função da Igreja Católica. O calendário da cidade era o calendário da Igreja. Não havia carnaval, substituído por retiros espirituais. Hoje tudo mudou: temos muitas outras formas de manifestação religiosa ou espiritual. Aqui não se trata de avanços ou regressos. A cidade cresceu e, com ela, a liberdade religiosa, antes praticamente coibida.

Até os anos 50 já tivemos manifestações artísticas que hoje não mais temos: o teatro, o cinema, a orquestra. Atividades produzidas e cultivadas aqui, com grande esforço e dedicação. Louva-se o empenho da juventude, que ainda mantém acesa a chama da música na cidade, da banda de música às bandas de rock e outros gêneros. Pena que vivemos a era do importado e do mecanizado. Até o Grupo de Serestas sumiu. Curiosamente, os bailes de antigamente, restrito aos adultos, foram hoje substituídos pelo som alto das danceterias e baladas da juventude, seguidas, nas madrugadas, da algazarra de rua de seus frequentadores. Foi-se a tranquilidade das noites dos fins de semana.

Antigamente, à noite as pessoas se visitavam, assentavam-se nos passeios para conversar, batiam uma prosa nas janelas, passeavam na avenida. Hoje, mal escurece, todos se fecham dentro de casa para assistir às novelas das brigas e assassinatos, das traições, da futilidade e da banalização do sexo. Horários sagrados, até para assistir a barbaridades escrachadas, como o tal de BBB e outros.

Assim caminha a humanidade. Para melhor? Para pior? Sei lá, mas aposto na segunda hipótese. E justifico. Nosso planeta caminha a largos passos para sua autodestruição. Não é preciso provas. Basta olhar ao redor e ouvir as notícias do resto do mundo. Quem, por crenças religiosas, acredita no fim dos tempos, pode ir se preparando, que ele vem mesmo, mas provocado pelo próprio homem. Como se não bastasse, com o capitalismo selvagem, agora globalizado, o humano torna-se cada vez mais individualista, egoísta e violento. Triste, mas simples e indiscutível realidade.

Assim caminha a nossa cidade ...

Do peguete ao divórcio

10 de Janeiro de 2011, por Rosalvo Pinto 0

Não sou psicólogo, psicanalista ou sociólogo. Apenas um linguista.

A faculdade da linguagem é uma das condições fundamentais da vida dos seres humanos. Sem ela nós seríamos como os demais animais: seres irracionais. Foi a partir do desenvolvimento dessa capacidade que nos tornamos seres racionais, ou seja, pensantes e conscientes.

O exercício da linguagem possibilitou a organização das sociedades humanas. Quanto mais complexas essas sociedades e maiores nossos conhecimentos sobre nós e sobre o mundo, mais a linguagem vai se aparelhando para dar conta desses processos. Por isso as línguas naturais humanas são extremamente criativas. Para cada nova necessidade criam-se novas palavras. Que podem durar séculos, como desaparecer de uma década para outra. As novas gerações não conhecem a palavra “boko moko” (ou “boco moco”), por exemplo. Nascida e usada na década de 70, logo, logo desapareceu. Significava desatualizado, fora de moda no agir e no vestir, conservador, ultrapassado etc. Na mesma época criou-se a palavra “dica” para indicar um conselho, uma sugestão, uma indicação (suponho que “dica” venha dessa palavra) para se resolver uma questão, termo usado em provas, vestibulares, concursos etc. Essa continua firme na língua.

Sabemos que uma das questões mais complicadas na vida dos humanos é a do relacionamento amoroso entre homem e mulher. À medida que a moral e os costumes nessa esfera vão se mudando, a linguagem vai se adaptando a essas mudanças através da criação de novas palavras.

O nosso português anda apertado para dar conta de criar novos termos referentes aos diferentes tipos ou fases dos relacionamentos amorosos, que vão se multiplicando. E haja criatividade!

Antes uma olhadinha no passado para lembrar como funcionavam essas coisas. Em matéria de amizades e relacionamentos, os pais andavam sempre vigilantes, fiéis cães de guarda, sobretudo quando se tratava da moça. Depois vinha a árdua e perigosa tarefa do “pedido de namoro”, geralmente por parte do rapaz. Podia dar certo ou dar zebra. No primeiro caso, tinha que começar namorando em casa, da namorada, claro. No caso de zebra, o namoro poderia começar (e continuar) às escondidas. No início era preciso contar com a boa vontade das “velas”, do lado das moças. Geralmente cabia às irmãs mais novas, e principalmente às primas ou às tias a difícil tarefa de ser ou ir de vela. Em muitos casos elas entravam na história apenas de gaiatas, como parte de um álibi: “no reveion vou à praia com o Carlão, mas a Bia da tia Jô vai com a gente”. E muitos pais, bobinhos, acreditavam nessa história. Depois vinha o casamento, com todos seus problemas, convites, padrinhos, enxoval, festas, confusões, brigas etc. até o veredicto final, na igreja: “prometo, para sempre”. Só que hoje até esse termo “sempre” já perdeu o seu sentido original. Passou a significar “até enquanto durar”.  

Hoje as coisas são bem diferentes. Tudo pode começar com um simples “peguete”. O peguete é a forma de relacionamento na qual os parceiros se “pegam”, alguma ou mais vezes, para uma pequena paquera, uma fugida, um sarro, um amasso, saídas rápidas, uma balada, mas nada de compromisso. Mais ou menos no mesmo nível, há também a fase do “periguete”, essa mais para as garotas. São aquelas mais “prafrentex” (olha aí outro termo que não se usa mais), que são mais atiradas, mais dadivosas, pulando de galho em galho. Daquelas sobre as quais algumas mães ainda comentariam, preocupadas: “se a Kelly continuar assim, vai acabar ficando solteirona”. Quando esse relacionamento já cresce um pouco em tempo e em intimidade, vem a etapa do “ficar” ou do(a) “ficante”. “Você está namorando o Edu, minha filha? Não, estou apenas ficando”, costuma-se ouvir por aí. Até essa fase é tudo numa boa, sem brigas, sem desgastes, apenas pura fruição. Do ficante passa-se a um grau de compromisso maior: o namoro ou namorado. É a época, para uns, de relacionamento firme e, para outros, de um relacionamento do tipo vai-e-vem, brigas e voltas.

Ao namoro segue-se, ou não, o tradicional noivado. Antigamente o noivado era solenemente pedido. Hoje pode até ser simplesmente comunicado aos pais: “vamos ficar noivos e vamos nos casar no dia tal”. E ponto final. Quando ao namoro não se segue o noivado, é porque não haverá casamento. Então a situação seguinte é apenas de “juntados”. “Vão se casar? Não, vamos apenas juntar os panos, os trapos”. Ao casamento podem se seguir hoje as situações de “separados” ou, mais juridicamente resolvidas, as de “divorciados”. 

Mas o importante é que desde o “peguete” até o eventual divórcio, o fator financeiro está na base de tudo, das artimanhas da relação e dos problemões das separações. E a regra básica para enfrentar tais situações poderia ser esta: para qualquer um dos tipos de relacionamento, é bom estar com o pensamento e o olho no coração (ou na cama...), inicialmente, mas, depois e sobretudo, no bolso...