Causos & Cousas

Brancas e inesquecíveis lembranças

14 de Dezembro de 2010, por Rosalvo Pinto 0

Não há dúvidas de que as lembranças dos tempos de criança e de adolescente são as mais perenes e as mais gostosas. Talvez seja porque o ser humano está apenas desabrochando-se para a vida. Tempo dos brinquedos, dos primeiros amigos, das primeiras transgressões, da novidade da escola, da descoberta do amor e da sexualidade. Acima de tudo, tempo de começar a sonhar com o futuro.

Por esses tempos, lembro-me de que o meu tio paterno, o tio Saneco, morava lá no Brumado, onde havia arrendado a fazenda do Maracujá. Era um baixinho trabalhador, incansável. Plantava de tudo e negociava. Gostava de uma mula bonita e bem ajaezada. Brabo feito seus irmãos, da raça do povo da “Chácara”, entre eles o Góes, meu pai. Tia Quiquita, a típica dona de casa, paciente e prendada, exímia cozinheira e forneira, de tempos em tempos colocando mais um filho no mundo. Começando pela Maria, seguindo-se o Dinho, a Adair, a Carmen, a Olga, a Ivone, o Renato (10 dias mais velho do que eu), a Vera, o Mazinho e terminando com o Zé Imar.

Como era costume da época, tio Saneco abriu uma escola rural que funcionava em sua casa. Para isso, mandou para a “vila” a Adair e, tempos depois, a Ivone, para fazerem o primário e voltarem como professoras na roça. Como as duas ficaram por algum tempo em minha casa, quem lucrou fui eu: ganhei algumas férias na fazenda. Primeiro no Maracujá, de onde me lembro de tudo: desde a vaca brava “Paraíba”, o cachorro “Piloto”, em cujo lombo o Renato colocava um cangalhazinha de couro e sola, feita pelo tio Saneco, até a grande roda d’água do engenho, onde se faziam o melado, a rapadura e o açúcar “preto” (mascavo), os torrões de açúcar secando ao sol sobre as esteiras, que a gente tirava escondido, as latas de biscoitos para serem vendidos na festa da capela do Brumado. Não me esqueço da “bola de capota” do Dinho para as “peladas” de tardinha, no gramado em frente à casa, do agregado Zé Maria com seu cavaquinho, das visitas à casa do vizinho “Capitão” e seu enorme tacho de arroz doce, enfim, de tantas e tantas coisas que compunham um mundo mágico para mim. Mundo que nunca mais revi.

Algum tempo depois tio Saneco comprou um terreno com casa na “Floresta” e minhas férias se mudaram pra lá. Um dos pequenos cômodos da casa era a única sala de aula da escola. Menino da cidade, uma novidade, a Adair me pôs para declamar uma poesia na festinha do fim de ano, um sucesso. Lembro-me de ir visitar o velho solteirão Antônio Belena, vizinho que morava num enorme casarão de uma fazenda ali por perto (hoje Fazenda da Floresta). Já no leito, doente, achei engraçado ver uma galinha aninhada no canto, aos pés do seu catre. E dependurada no teto, sobre a cama, a tradicional tábua com queijos.

Passaram-se muitos anos. Dias atrás resolvi rever aqueles lugares, na companhia do Chiquinho, meu irmão. Emocionado, vi a casa, branquinha e bem cuidada, tal como era antes. Apenas dei falta da portinha de acesso à “Vendinha do Saneco”. Era uma tarde bonita, um pouco de sol, algumas nuvens prometendo chuva. Da frente da casa, ouvíamos o barulho das águas da cachoeira, que ainda correm, do mesmo jeitinho, atrás e bem perto da casa. Era o lugar preferido das férias. Senti naquele momento as águas que até hoje escorrem nas pedras de minha memória. Então lembrei-me da azáfama do tio Saneco fazendo polvilho.

O polvilho, tão branca lembrança. Muitos anos depois, quando me apaixonei pelo Guimarães Rosa, um dia dei de cara com o conto “Substância”. Está lá no “Primeiras Estórias”. Em princípio, o título não me dizia nada. Mas, era o Rosa, e eu entrei na estória. A Maria Exita, “na azáfama de farinha e polvilho” apaixonada pelo Sionésio, mas moída de sofrimento pela ameaça da lepra de seu pai, abandonado num lazareto. Transfigurada na brancura do polvilho, na incerteza e na dor. À medida que fui lendo o conto, foi-se criando na minha mente um velho espaço conhecido, no qual passaram a transitar a Nhatiaga, a Tia Quiquita, a Maria Exita, “hesitando” em sua paixão, o tio Saneco e o Sionésio, na tortura de sua incerteza. Tudo ali, atrás da casa, onde se fazia o polvilho. Não conseguia separar a casa do tio Saneco, das brancas e inesquecíveis lembranças de minha infância, do conto do Rosa. Passei até a imaginar que ele teria conhecido a casa branca, lá na Floresta. Só podia ser.

Meus leitores podem estar curiosos em saber como foi o desfecho da estória. Final feliz na vida dos personagens e mais feliz ainda, nas palavras do Rosa:
 
 “Sionésio e Maria Exita – a meios-olhos, perante o refulgir, o todo branco. Acontecia o não-fato, o não-tempo, silêncio em sua imaginação. Só o um-e-outra, um em-si-juntos, o viver em ponto sem parar, coraçãomente: pensamento, pensamor. Alvor. Avançavam parados, dentro da luz, como se fosse no dia de Todos os Pássaros”. Beleza, não?

Gentil Vale

12 de Novembro de 2010, por Rosalvo Pinto 0

Se existe um resende-costense que amou ao extremo sua cidade natal, este com certeza terá sido o Gentil Ursino Vale. Tendo se casado, em 1948, com uma moça de Passa Tempo, ele tentou, junto às autoridades e políticos locais da época, a transferência de sua mulher, professora primária, para Resende Costa. Não conseguiu, tendo que mudar-se para aquela cidade. Em uma de suas obras ele se queixa amargamente: “Resende Costa foi madrasta para com este filho, que a ama demais e que nunca a esqueceu”.

Filho de Francisco Rodrigues Vale (Chico Cassiano, 1873-1927) e de Zita Agripina dos Reis (falecida em 1949), Gentil nasceu na Lavra, cercanias de Resende Costa. Teve uma infância um tanto atribulada, por problemas familiares. Com a morte de seu pai em 1927, Da. Zita se casou novamente em 1929 com o coletor estadual Joaquim de Melo. Com as naturais dificuldades de aceitação de um novo casamento, os filhos do casal se dispersaram e Gentil foi morar com seu irmão Onésimo, em Cel. Xavier Chaves. Em fins de 1930 voltou a morar com a mãe, em Resende Costa. Em 1934 foi estudar no Caraça, onde permaneceu até 1937. No ano seguinte, apresentou-se como voluntário ao 11º. Regimento de Infantaria de São João del-Rei. Em 1942 deixou o exército e foi trabalhar na Fábrica de Armas do Exército em Itajubá. Em 1948, casou-se em Passa Tempo com Maria Imaculada Faleiro (falecida em 1979), tendo tido com ela 11 filhos. Morou em Passa Tempo até 1956, trabalhando na agência local da Estatística, quando foi transferido para a agência de Divinópolis, como chefe da mesma.

Enquanto esteve morando em Resende Costa, ele se destacou pela a dedicação à cultura e à arte. Amante das letras e do teatro, com certeza uma herança da primorosa formação recebida no renomado educandário do Caraça. Gentil foi um dos protagonistas dos tempos áureos do teatro em Resende Costa nas décadas de 30 a 50. E lembrar esses tempos é lembrar os nomes do Agenor Gomes de Souza (avô do Agenorzinho Gomes) e do José Ramos. Sob a direção do Gentil foram encenadas as peças “Compra-se um marido”, comédia de José Wanderley; “O homem que nasceu duas vezes”, do Oduvaldo Viana, um dos maiores teatrólogos do Brasil; “Pertinho do céu”, de Mário Lago; “Deus lhe pague”, de Juraci Camargo; “A ditadora” e “A cigana me enganou”, de Paulo de Magalhães, entre outras. Essas peças eram levadas, sempre bem recebidas, às cidades vizinhas de Prados, Ritápolis e Dores de Campos.

Vivendo em Divinópolis, dedicou-se à atividade do magistério de Língua Portuguesa e à arte de escrever. “Confidências do agreste” (1982), “Lamento da Terra Verde e outros contos” (1986) e “Clara fonte” (1990) foram algumas de suas produções em crônicas e contos. Destacou-se também como memorialista. A produção de suas memórias pessoais teve como objetivo, segundo ele, “tentar construir a perenidade para pessoas e coisas de minha terra”. Essas memórias compõem o trio “Escavações no tempo” (1984), “Ecos de ontem” (1989) e “Visões perdidas” (1991), nas quais ele recupera fatos, curiosidades, festas, costumes, personalidades de destaque e a vida simples e folclórica de inúmeros resende-costenses. “São lembranças que teimam em não morrer em mim”, lembra o escritor, abrindo “Escavações no tempo”. Poucos escreveram tanto sobre Resende Costa como ele, colocando-se ao lado do Prof. José Augusto de Resende, do Prof. Antônio de Lara Resende e do Mons. Nelson Rodrigues Ferreira.

Foi, em 1961, um dos fundadores da Academia Divinopolitana de Letras, da qual foi o primeiro presidente. Tendo sido indicado para integrar a Academia Municipalista de Letras de Minas Gerais, de Belo Horizonte, tomou posse, excepcionalmente e para sua alegria, em Resende Costa, em 1984. Escolheu como patrono o Dr. José Vilela da Costa Pinto, médico e político por mais de 30 anos em Resende Costa, da qual foi prefeito na década de 40. Sua posse foi patrocinada e prestigiada, além da Academia que o acolhia, pela Paróquia Nossa Senhora da Penha (Pe. Nelson Rodrigues Ferreira) e pela Prefeitura Municipal (Prefeito Gilberto Pinto) e homenageado pela Associação Cultural Movimento Raízes, ainda atuante àquela época.

Gentil abre sua obra “Visões perdidas” mais uma vez lembrando-se de sua terra natal. “Que o passado de minha saudosa e amada Resende Costa, em determinada etapa de sua vida, continue vivo e atual para os que hoje lá respiram seus ares vivificantes e para os que ainda hão de vir, sucedendo-se no tempo”. E, confirmando ainda uma vez seu acendrado amor: “São páginas de saudades, escritas com as tintas do coração”.

(Agradeço ao Tomás da Tereza (o “Chefe”) a sugestão de escrever sobre a figura do Gentil Vale. “Era uma pessoa que amava muito nossa terra”, justificava-me o Tomás. E ele tinha razão).

Sr. Floriano Sampaio em Resende Costa

11 de Outubro de 2010, por Rosalvo Pinto 0

É sempre interessante ler a história de uma cidade através do olhar de alguém que, não sendo nela nascido e criado, nela viveu por algum tempo.

Tempos atrás, o JL nos proporcionou a agradável oportunidade de descobrir, na cidade de Lagoa da Prata, a família Sampaio, que viveu em nossa cidade entre 1951 e 1956. Na edição 86 (junho/2010) do JL descobrimos e relembramos a figura de dona Guiomar Sampaio, através das informações de sua filha, Consolação, e de nossas próprias lembranças daqueles tempos. A lembrança de dona Guiomar estreitou nossos contactos com a família. Em maio, pescando lá pelas bandas da Barra do São Francisco (Bahia), o Dr. Luiz e o João do Galo, por um simples acaso, conheceram o Antônio de Pádua Sampaio, o Toninho, irmão da Consolação. Dois meses atrás, outra surpresa: a Consolação me envia três livros: um de autoria do seu pai, o Sr. Floriano (“Reminiscências”) e dois de dona Guiomar, sua mãe, de poemas (Marcas do Tempo e Retrato Abstrato). Li, com prazer, os três. Coisas muito bonitas.

O livro do Sr. Floriano Geraldo Sampaio foi lido em um fôlego só. Mais que um livro de contos, é uma lição de vida. Muito bem escrito, num estilo leve, agradável, cheio de humor, relata as peripécias de sua vida. E que vida! Ele se revela um homem lutador, empreendedor, solidário (era vicentino convicto e atuante), cheio de gratidão para com as pessoas que o ajudaram a crescer na vida, culto, enfim, homem do trabalho, do respeito, da honestidade. Tudo isso, sem deixar nunca de ser um exímio e apaixonado pescador. Em seus contos transita com desenvoltura pela geografia, astronomia, saúde, história e, claro, a pescaria. Com uma prodigiosa memória, descreve e mapeia gostosamente, com amor e perfeição, a cidade-menina Belo Horizonte, onde ele viveu, melhor, batalhou, menino e jovem. Uma delícia as referências à memória de BH, sobretudo do centro, onde trabalhou e dos bairros de Santa. Tereza, Floresta e Barro Preto.

Antes de “Reminiscências” ele havia escrito “Coisas, fatos pessoas”. “Reminiscências” foi escrito em 1998, aos seus 91 anos de idade. Com sua impressionante memória, no capítulo “Confidências” (p.79-99), ele se lembra de pessoas com nome e sobrenome e de casos curiosos da fase de sua vida e da sua família em Resende Costa.

O “Caroco” foi um deles. Dona Aurora e dona Maroca eram duas irmãs solteiras (tias da Dinha e da Dora Lara), vizinhas do cômodo alugado para a Coletoria Estadual na qual trabalhava o Sr. Floriano. Ele conta que, num dia de muito frio, elas acolheram em sua casa o Caroco e colocaram um colchão no chão da sala para ele dormir. De noite ele se levantou e urinou no outro canto da sala. Nas noites seguintes, o hóspede voltou e ... a sala foi ficando impregnada com o cheiro da urina. Sr. Floriano mudou de Resende Costa e o Caroco morreu. Mas ele veio a saber que, “no canto da morrinha do xixi, brotou um perfume estranho, suave, agradável, de coisa diferente das coisas da terra. Se a casa ainda existir, existirá o perfume. Perfume do Caroco”, conta ele (p.89-91).

Um dia o Sr. Barbosinha o atendeu numa situação drástica de doença. “Barbosinha era um farmacêutico extraordinário e sua casa ficava a um quarteirão da Coletoria. Que Deus o tenha na sua glória”. O Sr. Alberico Roman era um vendedor de bilhetes da loteria mineira com o qual ele fazia as suas “fezinhas’.

Pe. Nélson rifou uma máquina de costura Singer, novinha. Para ajudar e como dona Guiomar, sua mulher, estava de olho nela, ele comprou um bilhete. Feito o sorteio, ninguém apareceu. Depois de três meses de aviso no sermão dominical, o Pe. Nélson fez novo sorteio. Saiu para sua vizinha, a Adiles do Sr. Zé do Ciro (Irmã Savéria, camiliana, irmã da Marlene e da Dorinha Silva). Passados vários dias, remexendo sua gaveta na coletoria, ele achou o bilhete premiado no primeiro sorteio. E conta que, mesmo tristonha, Da. Guiomar foi visitar a Adiles e ensinar a ela costurar. É lembrado também, de passagem, o Elmo Daher, que lhe sugeriu pedir uma remoção para a cidade de Rio Preto, na divisa entre Minas e São Paulo, para atender aos estudos de seus filhos.

Do período da vida de sua família em Resende Costa o Sr. Floriano deixou registrado em seu livro os comentários seguintes sobre nossa cidade:

“Havia quatro anos morando em Resende Costa, tínhamos relacionamento com quase todo o povo da cidade e com Padre Nélson, depois Monsenhor Nélson, José Pio, filho do Sr. Sérgio Procópio, dona Odete, nossa comadre, o Pinto, meu companheiro de pesca [provavelmente o Chico Daniel, pescador e vizinho], o Sr. Peluzzo e mais outros, aliás, muitos outros” (p.86).

“A cidade foi uma espécie de paraíso que os meninos desejavam: tinham liberdade para brincar, companheirada boa e amiga, escola ao sabor, enfim, viviam alegres. Guiomar, num ambiente artístico, onde todo mundo entendia e gostava de teatro, também vivia feliz” (p.97).

“Era uma cidade pequena, de gente simples, religiosa e boa, onde se vive bem e em harmonia, terra de minha filha – Mariazita” (99).

“Cai a tarde tristonha e serena ...”

13 de Setembro de 2010, por Rosalvo Pinto 0

 Assim o primeiro verso da canção-valsa de Erothides de Campos evocava o anoitecer na Resende Costa de 60 anos atrás, unindo a sensação do despertar do amor com as badaladas da Ave Maria.

Não me lembro mais se foi em 1950 ou 1951. Numa tarde, a pacata cidade de então parou, assustada por um som estranho e diferente. Era uma música que invadia os ares no mormaço ensolarado daquela tarde. As pessoas chegavam nas janelas e saíam às ruas, curiosas. Os mais curiosos logo identificaram: era um som que vinha da torre da Matriz. Pe. Nélson e um técnico acabavam de instalar e ligar o primeiro sistema de alto-falantes. E fizeram uma surpresa para os moradores. Duas grandes cornetas, do alto da torre, começaram a difundir, salvo engano, os sons do Hino Nacional. Já naquela tarde, às seis horas em ponto, a melodia suave, delicada e plangente da Ave-Maria de Bonaventura Somma se derramou pelas encostas da cidade e pelos campos adjacentes.

Com o tempo vieram outras Ave Marias, também clássicas, como as de Schubert e de Bach/Gounod, que se alternavam com a primeira. Mas me lembro de que, já nos primeiros dias, ouvíamos a Ave Maria de Erothides de Campos (composta em 1924), misturando as saudades do primeiro amor com as badaladas da Ave Maria. Para nós, meninos, valia a novidade e (por que não?) também a beleza daquela Ave Maria, desde então gravada na minha memória. Para muitos adultos, aquelas palavras podiam doer fundo em seus corações. Vejam:


Cai a tarde tristonha e serena, em macio e suave langor
Despertando no meu coração a saudade do primeiro amor!
Um gemido se esvai lá no espaço, nesta hora de lenta agonia
Quando o sino saudoso murmura badaladas da “Ave-Maria”!

Sino que tange com mágoa dorida, recordando sonhos da aurora da vida
Dai-me ao coração paz e harmonia, na prece da “Ave Maria”!

No alto do campanário, uma cruz simboliza o passado
De um amor que já morreu, deixando um coração amargurado.
Lá no infinito azulado uma estrela formosa irradia
A mensagem do meu passado quando o sino tange “Ave-Maria”.


Na Resende Costa daqueles tempos, tempos de lajes imensas, limpas e abertas, envoltas naquele friozinho aconchegante, era impossível não se emocionar, todas as tardes, com um sentimento de nostalgia e de paz. Quem por lá viveu naquela época, ainda guarda na memória a irradiação saudosa daquelas melodias. Tardes tristonhas e serenas, badaladas da Ave-Maria.

Ao som das Ave-Marias, entrava-se na penumbra da Matriz para a récita do terço, por vezes o rosário completo. Em seguida, rezava-se, pausadamente, uma oração de despedida, longa e comovente. Despedia-se do dia, da igreja e do seu Santíssimo, ali representado pela luz tremeluzente da lâmpada de azeite dependurada no teto. As palavras daquela oração já se esmaeceram na memória. Restam apenas fragmentos de saudade: “... ah, seu fosse aquela feliz lampadazinha, cuja doce e tremente luz, vai arder...” E as pessoas dirigiam-se para suas casas. Nem rádio nem televisão. Apenas conversas, café com biscoito, cama. Desligava-se a energia elétrica e a cidade dormia. E sonhava com a Ave Maria do dia seguinte.

Lembro-me agora de que o primeiro responsável pelo serviço de alto-falantes foi o Nhonhô Caiano. Sempre fazendo seus terços de contas-de-lágrima ou de canafístula, andando pelas ruas, de tarde ele pontualmente subia para a hora da Ave-Maria. Nós meninos, coroinhas, víamos com curiosidade a radiola, aqueles discos pretos e duros, aquela caixinha cheia de pequenas agulhas, grossas e douradas, que eram trocadas com frequência e que acabavam em nossas algibeiras, o imponente microfone em um pedestal. E sempre ríamos quando o Nhonhô, ao final de cada disco, anunciava pomposamente o seu título: “Acabamos de OUVIU, o Hino Nacional!”

Já em 1953 o zeloso Pe. Nélson cuidava de registrar no seu caprichado “Livro do Tombo”, a recomendação de que "os alto-falantes da igreja sejam utilizados exclusivamente para assuntos da paróquia e avisos religiosos, jamais para músicas profanas ou propagandas alheias à vida espiritual da Casa de Deus". Mas, com certeza, ele sabia que a Ave Maria de Erothides de Campos, que emocionava tanto os resende-costenses de então, não, não podia ser profana...

Meu primeiro emprego

10 de Agosto de 2010, por Rosalvo Pinto 0

 Nós, seres humanos, temos um gostinho especial em nos lembrar, sempre, da realização de algumas ações marcantes de nossa vida. São ações que, de certa forma, determinaram novos valores, novas etapas e direções na vida. Quando temos o cérebro já quase bem (in)formado, ali pelos sete anos, vem, para os cristãos católicos, a “primeira comunhão”. Seguem-se depois outros “primeiros” ou “primeiras”: o primeiro dia de escola, a primeira relação sexual, o primeiro namorico, o primeiro amor, o primeiro emprego, o primeiro carro (e a primeira carteira de motorista), o primeiro casamento etc. Assim, de primeiro em primeira, vamos caminhando para o último...

Meu primeiro emprego, para meu orgulho, tem a ver com a vidinha de Resende Costa de antigamente. Eu nasci e vivi minha meninice num tempo em que todas as casas, na zona rural e na cidade, tinham uma “horta”, na qual havia, além das hortaliças, um pomar mais ou menos sortido, um galinheiro com seus poleiros mais ou menos recheados de galinhas e um chiqueiro, com um porco ou uma porquinha com seus filhotes. Curiosamente, o maior amigo do homem, o cachorro, não tinha muita vez naquele tempo. Pelo menos como tem hoje, quando ele está mudando radicalmente de papel: de serviçal, subordinado, para dono e dominador.

É óbvio que horta, pomar, galinheiro e chiqueiro demandavam mão-de-obra. Sem dúvida que o mais complicado era a manutenção de um chiqueiro. O espaço seguro, o mal cheiro, o trato – para o qual era preciso ajuntar e guardar a tradicional “lavagem” -, o ato de “capar”, tratando-se porco, a perícia para matar e, o que era o pior, a trabalheira para “arrumar o porco”. Matar, chamuscar, abrir em duas bandas e cortas as diversas partes exigia uma perícia incomum. Criar porco dava sempre trabalho e na cidade havia os “tocadores”, os “capadores” e os “matadores” de porco.

Ali pelas cinco das frias madrugadas, em seguida à sinfonia dos galos de todas as casas, a gente acordava, periodicamente, com tenebrosos grunhidos. Eram os gemidos de dor de um pobre suíno, assim que a ponta de um reluzente e afiado punhal, fino e comprido, entrava ali por baixo de uma das axilas e atingia seu coração. Era o sinal, o início de um dia inteiro de trabalho, com a indispensável ajuda de parentes, amigos e vizinhos, além de um ou outro contratado. Pois é, justamente aqui começa a história de meu primeiro emprego. Dos meus sete aos dez anos de idade.

Assim que se ouvia o grito lancinante de morte, vindos de suas tocas nos barrancos e nas árvores da redondeza, começavam a chegar os urubus. Acomodavam-se nas árvores das hortas, à espreita de um vacilo dos envolvidos no trabalho, para dar um rasante e levar alguma coisa. Aí entrava em ação, até o final do dia, a figura imprescindível do “espantador de urubu”, ou do “tomador de conta de urubu”.

No casarão dos meus padrinhos, bem em frente à nossa casa, com frequência se matava um porco. Nico de Souza era fazendeiro graúdo e as bocas a serem alimentadas eram muitas. Os donos da casa, os pais de Sá Donana (o Nico Cassiano e a Sá Amélia) e mais uma meia dúzia de mulheres serviçais. Além das constantes e muitas visitas que por ali passavam e das latas de carne na gordura que eram enviadas a parentes e amigos de outras cidades. A notícia da morte de um porco no dia seguinte já me deixava ouriçado. Pelas seis horas eu já estava no meu posto, de varinha na mão e atento a qualquer movimento no céu e nas árvores. Além do honroso trabalho, ainda ficava livre de ir à escola. Era trabalho de responsabilidade. Almoçava por ali, com um olho no prato e outro nos urubus. No fiel desempenho do meu primeiro emprego, urubu nenhum conseguiu levar algum agrado.

Ao fim da tarde, quando nada mais os atraía, os urubus iam se retirando aos poucos. Com a certeza de que podia deixar o posto, corria a apresentar-me a minha empregadora, para a parte melhor da festa. Sá Donana me levava ao seu quarto, esticava o braço e apanhava, de cima do guarda-roupa, uma lata redonda e grande daquelas de talco, cheias de moedas. Meus olhos brilhavam quando ela colocava nas minhas mãos uma moeda grandona, de um mil réis. O projeto de gastar já rondava minha cabeça ao longo do dia: novas e variadas bolinhas de gude, papel de seda e linha para fazer “estrelas” (assim chamávamos as pipas), uma bola de borracha (a gente se virava com bolas de meia), bombinhas, picolé (coisa rara, que vinha na jardineira de São João del-Rei, em latas cheias de serragem), essas coisas, nossos sonhos de criança.

Cansado pelo exaustivo trabalho, barriguinha cheia, um mil réis na mão, era hora de dormir para, no dia seguinte, ir às compras! Lá no “Negócio do Zé Augusto”. Ainda bem que naquela época não havia o tal do Estatuto da Criança e do Adolescente!