Causos & Cousas

Saudades de nossa avenida...

13 de Julho de 2010, por Rosalvo Pinto 0

Entre as ruas da Resende Costa de antigamente, apenas uma era conhecida como “avenida”.  Aliás, nem era uma avenida, era simplesmente a rua Gonçalves Pinto, como o é até hoje. Mas a “avenida” era só o trecho que começava na confluência com a rua Moreira da Rocha e terminava nos “Quatro Cantos”. Era onde os casais (casados e namorados) e amigos faziam, nos fins de semana, o tradicional “passeio na avenida” (nem se sonhava, então, com o termo footing, do inglês). “Vamos dar uma volta na avenida?”, era o convite de sempre. Ali também, ao entardecer, as crianças costumavam brincar despreocupas, “naquelas tardes fagueiras”, como dizia o poeta Casimiro de Abreu.
 
Aos nossos olhos era uma avenida bonita, com seus casarões, sobrados e suas casas singelas. As janelas se abriam diretamente sobre a rua e a gente nelas se acotovelava para conversar com os transeuntes e amigos. Poucos pontos comerciais, no térreo dos sobrados: o botequim do Tonico Chalé, a farmácia do Barbozinha, a padaria do Aurélio, a barbearia do Zé do Nico, o “negócio” do Zé Augusto, os botequins do Dico e do Neném, as lojas do Miguel Turco e do Osório, também dono do sobrado onde funcionava a única pensão da cidade. Até aqui um retrato de saudades.
 
A saudade é um mecanismo psicológico pelo qual sentimos prazer e ao mesmo tempo uma certa dorzinha, quando nos lembramos  de acontecimentos e experiências prazerosas do passado. Uma relação amorosa, uma fase feliz da vida, um convívio gostoso. Quanto mais se aproximam do fim da vida, os seres humanos sentem a experiência da saudade. É a sensação de prazer de reviver o passado, ante a perspectiva do fim que se aproxima. Por essa razão, as gerações mais velhas são mais saudosistas. Para as gerações novas, o saudosismo é algo estranho, tido como coisa de velhos. Mas os jovens de hoje fatalmente se tornarão os saudosistas de amanhã. Apenas uma questão de tempo.
 
A saudade é mais doída quando o objeto do prazer do passado se transforma radicalmente no presente. Ainda que se tenha que aceitar esse presente. Onde está a nossa avenida dos passeios, dos encontros, das conversas, dos brinquedos, da tranquilidade, da segurança, do respeito?   
 
Quem te viu, quem te vê. A avenida do passado virou a rua desfigurada do presente. Feia em sua arquitetura, entulhada de carros, por vezes pista de corrida, poluída pelo barulho desrespeitoso da música de bares e de carros, brigas e lixo espalhado nas noites dos fins de semana. Um caos, que pena! Infelizmente, por várias razões, a cidade não soube se adaptar aos tempos modernos sem perder os encantos da velha avenida, como outras cidades o fizeram. Casarões, sobrados e casas singelas foram substituídos por construções de gosto duvidoso, disformes e inacabadas. Uma meia dúzia de casas do passado teima heroicamente em dar o tom de cidade de antigamente.
 
Dói ouvir dizer que a avenida de outrora parece hoje periferia de cidade grande. É a realidade. Ao trazer amigos ou turistas para conhecer a cidade, alguns preferem evitar entrar por ela. Dão a volta lá por cima, pela Matriz, passando primeiro pelas Lajes de Cima. Mesmo assim, lá chegando, não se escapa da visão do mostrengo da caixa d’água da Copasa. Foram-se com o tempo o convívio na avenida e a vista das lajes, o nosso cartão-postal.
 
É possível tentar salvar o que resta da avenida. Além da vigilância do Conselho do Patrimônio Histórico e Cultural, a cidade necessita, com urgência, da criação de um código municipal de controle do uso do solo urbano. Sem isso, prevalece a ganância e o individualismo, para construir e para destruir. Veja-se o caso de uma obra inacabada, totalmente fora dos padrões da avenida, implorando por uma solução.  Entretanto, a mais importante ação de preservação dos espaços públicos tem um nome bem curto: “educação”. Só pela educação, na família e na escola, é possível desenvolver atitudes de respeito e de carinho com os espaços públicos de nossa cidade.
 
É óbvio que não podemos viver de saudosismo. As mudanças nas cidades são inevitáveis e irreversíveis. Não se trata simplesmente de voltar ao passado. Mas podemos recuperar os valores de convivência de antigamente. Meu amigo e colunista do JL (o Prof. José Antônio, da coluna “A teia do mundo”) escreveu um texto que, de tão bonito, se espalhou pelo Brasil e pelo mundo, evocando o valor e a beleza da convivência que se cultivava no passado (“O café está na mesa”, publicado na Folha das Vertentes, de São João del-Rei). Dá até vontade de transcrevê-lo aqui. Seu texto é um gostoso café da manhã, no qual se comem e se bebem delicadezas e saudades.
 
Ainda a saudade. Parafraseando a valsinha popular “Baile da saudade”, dá vontade de cantar: “ai que saudades tenho da ... nossa avenida ...”. Porque ela, na verdade, não existe mais. Restam apenas as saudades.

Dona Guiomar Sampaio

15 de Junho de 2010, por Rosalvo Pinto 0

Dias atrás recebi, via correio, um livro intitulado “Lagoa da Prata em prosa e verso”. Surpresa das mais agradáveis: foi-me enviado pela Maria da Consolação Sampaio. Com a dedicatória: “Rosalvo, a fim de que você conheça a pequena ‘vida cultural’ de Lagoa da Prata”. Depois de bisbilhotar o livro de cabo a rabo, devo discordar de você, Consolação: nada de “pequena”! Pela publicação – aliás, coordenada pelo seu irmão, o Antônio de Pádua Lima Sampaio -, vê-se que, nessa lagoa, que dizem ser muito bonita, proseia-se e verseja-se com maestria. Pelos 87 textos do livro vejo que por aí acontece muita coisa boa. A começar, claro, por sua mãe, a dona Guiomar Sampaio. Não é por nada que ela mereceu uma homenagem especial, de folha inteira, no início do livro. Depois da homenagem ao sempre merecido Machado de Assis, segue-se a de dona Guiomar: “Pela imortal lembrança, justifica-se outra homenagem à patrona da Academia Lagopratense de Letras, Guiomar Sampaio, incondicional batalhadora em prol da cultura – uma causa tão sublime”.
 
Os escritos de dona Guiomar, da Consolação e do Toninho de Pádua de imediato me fizeram voltar ao passado. Aliás, esse é o título do gracioso poema de dona Guiomar, “Volta ao passado”: “Nem que seja necessário – Buscar o relicário – Mais escondido – Do meu coração – E tirar de lá – Com emoção
 
Também eu guardo, no relicário mais escondido do coração, tantas lembranças e emoções de minha terra natal. E em meio a essas lembranças encontrei a da família Sampaio. Aliás, entre tantos “causos e cousas”, revirando tempos atrás meu relicário, já havia encontrado as figuras de dona Guiomar e da Consolação. Alguém levou um dos meus textos à Consolação, em Lagoa da Prata (talvez o Antônio
 
“Fiqueiadmirada como você se lembra de nossa presença em Resende Costa. Foram tempos risonhos, ingênuos dos quais tenho muita saudade”, assim me escrevia a Consolação dias atrás.
 
Em um dia qualquer, a chegada de um desconhecido casal e seus quatro filhos quebrou a monotonia da vida pacata da cidade: eram o senhor Floriano Sampaio e dona Guiomar e seus filhos Consolação, Antônio de Pádua, Terezinha e Mariinha. Sô Floriano veio com o encargo de “coletor federal”. Algum tempo depois nasceu, com honra para nós, a resende-costense Mariazita. Continua escrevendo a Consolação: “Mudamos para Resende Costa em 1951, em janeiro. Ficamos no hotel de José Pio. Saímos em outubro de 1956 para Lagoa da Prata”. Lembro-me também da família morando na casa da esquina, em frente à loja do Gérson, E, mais adiante: “Rosalvo, gostaria de saber de pessoas do meu tempo aí, que fim levaram. Meus colegas de grupo, Toninha, filha de Dona Elzí, enfermeira, Nozito, Geraldo de Melo, filho de um comerciante. Umas meninas cantoras que moravam nos Quatro Cantos, órfãs de mãe, Dona Inésia. As filhas do Sr. Quinzinho (perto do Grupo), Isabel, Heloísa, Teresinha. Éramos muito amigas”. Acho que as “meninas cantoras dos Quatro Cantos” a que a Consolação se refere eram a Jamila, a Filomena e a Dalila, filhas do Sr. Miguel Turco.
 
Como compositora e poetisa, dona Guiomar deixou uma pérola de hino sacro em Resende Costa: o “hino aos neo-sacerdotes”, composto para a ordenação sacerdotal dos padres Antônio das Mercês Gomes e José Hugo de Resende Maia, em 1955. Por muitos anos esse hino abrilhantou ordenações e missas novas na cidade. A meu pedido, a Consolação me enviou a letra do hino. A música eu a tenho, ainda hoje, gravada na memória. E acrescentou: “Sei que ela [dona Guiomar] fez o hino a São Tarcísio, padroeiro da Cruzada Eucarística. Posteriormente lhe envio com a partitura”. Lembro-me dele. Nós crianças o cantávamos, empoleirados e empoeirados, na carroceria do caminhão do Zizi Vale, naqueles gostosos passeios promovidos pelo dinâmico Pe. Adelmo.
 
Dona Guiomar nasceu em Visconde do Rio Branco, em 1911. Dedicou-se desde criança à música e às letras (a poesia, o português e o francês, que falava fluentemente). Como musicista, foi pianista, violonista, compositora e coralista. Participou do “Mineiros frente a frente” da antiga TV Itacolomi, levando para Lagoa da Prata o troféu de vice-campeã. Compôs o hino de Lagoa da Prata e hinos para as escolas da cidade. Dois meses antes de seu falecimento, em 1996, recebeu sua última homenagem: a “Comenda da Inconfidência”, das mãos do então governador Eduardo Azeredo, pela sua merecida produção cultural para Lagoa da Prata e para Minas. Em seu poema “Minha mãe”, Consolação Sampaio pergunta: “Que dizer de minha mãe? – Ela foi minha estrela-guia – A cotovia-irmã de Guerra Junqueiro. – Com ela aprendi a sentir a música. – Suas nuances e harmonias - Como combinar os sons ... – E encontrar acordes perfeitos ...” 
 
Valeu a pena, Consolação, abrir com delicadeza o relicário de nossas tantas boas recordações.

Laudinor do Pedro Olímpio

12 de Maio de 2010, por Rosalvo Pinto 0

Minha vontade era de dar a este texto o título de “Laudinor, o fac totum”. No grande poder de síntese do latim, esses dois termos significam “aquele que sabe fazer de tudo”. Até porque o nome “Laudinor” me sugere (ou me soa) qualquer coisa de latim. Como estudioso e apaixonado por essa língua, me parece ver ali a fusão de duas palavras: laudi (da raiz latina laud, que significa louvar, louvor) e –nor (que poderia ser da raiz de honor, honra). Por mais que tenha pesquisado, entretanto, não consegui saber a origem desse nome. Mas a minha interpretação tem muito a ver com o Sr. Laudinor, qualquer coisa como “louvor a sua honra”, sei lá. O fato é que muito me honra louvar o velho amigo Laudinor.
 
Quem em Resende Costa não conhece o Sr. Laudinor, também conhecido como “Laudinor do Pedro Olímpio”? Seus pais, Pedro Olímpio de Resende e Da. Tarcila Maria de Jesus tiveram, pasmem, 19 filhos, sendo 17 criados. Desses 17, 13 eram homens e 4, mulheres, todos nascidos e criados na zona rural. Esses números me fazem lembrar um fato curioso. Há muitos anos atrás, na tradicional cerimônia do lava-pés da semana santa, os 12 apóstolos foram representados por 12 dos filhos do Sr. Pedro Olímpio, todos altos e esguios. Mas como eram 13, o Pe. Nélson, vigário naquela ocasião, colocou um deles como ajudante do Cristo no ato de lavar os pés de seus apóstolos.
 
Mas voltemos ao fac totum. Isso vem de uma curiosa e admirável história. Nos aproximados 50 anos em que ele viveu na zona rural, já era, mais que um fac totum, um consertat totum, se é que existe o verbo consertat no latim (que me perdoe o colega João Magalhães, latinista de plantão, ali da coluna “O verso e o controverso”). Ele perambulava pela zona rural consertando tudo que se movia por lá: motores elétricos, carneiros hidráulicos, picadeiras, bombas, moinhos, monjolos etc. Acompanhava-o, ainda menino, seu filho Daniel, hoje um mecânico qualificado e muito procurado na cidade. Mas o Laudinor, com o tempo, passou a ser tanto procurado também pelo povo da cidade, que acabou se mudando para a “vila”.
 
O Laudinor é um misto de ferreiro, serralheiro e carpinteiro. Faz um pouco de tudo, mas sua especialidade mesmo é lidar com ferro e aço. Desde ferradura e cravo de ferrar cavalo, até revólver ou espingarda. Sai de tudo de sua operosa forja: enxó, enxada, machado, machadinha, faca, facão, ponteiro, talhadeira, canivete, compasso, balanças e ... a lista vai longe. Talvez seja melhor resumir dizendo que não existe nada que o nosso fac totum não faça. Interessante é a “tanaz” (tenaz), um tipo de alicate de pernas muito compridas e de bico fino e chato, próprio para pegar peças de ferro quentes e de muita utilidade em nossos fogões à lenha: serve para pegar tampas de trempes e de panelas e paus em brasa. Quem ainda não tem uma “tanaz”, corra lá e encomende! Facas e canivetes costumam ser feitos com o capricho de um cabo de osso ou de chifre.  
 
Quem entra na sua oficina não consegue entender como é possível, com poucas máquinas e ferramentas, fazer o que ele faz. Uma furadeira de bancada, uma grande morsa, a bigorna e a forja. Sempre muito engenhoso, sua velha forja foi modernizada com um ventilador elétrico, que sopra, com pressão, as brasas do braseiro. Com isso ele economizou muito “bofe” por esses últimos anos.   
 
Sempre que posso, passo pela oficina do Laudinor. Não sem antes tomar a “benção” dele (isso mesmo, “benção”, sem “a” e sem acento no “e”...). Ele sempre tem uma novidade pra mostrar. Na última vez aconteceu algo curioso. Ao me receber no portão, ele brandia, como se fosse um troféu, uma machadinha faiscando de nova, cabo curto, de roxinho. Por que essa alegria, Seu Laudinor? Porque alguém me roubou minha machadinha antiga de estimação e o meu paquímetro. E brincalhão: por desaforo, acabo de fazer uma outra e, olha aqui, comprei um paquímetro novinho, muito melhor e mais moderno do que aquele que o ladrão me levou! Bem feito pra ele! Era a sua vingança. Depois me mostrou, orgulhoso, a última novidade: a organização de suas ferramentas de trabalho em pequenas caixas, colocadas em uma estante, como se fossem gavetas, com os nomes das ferramentas na parte frontal:  ponteiros, formões, talhadeiras e por aí vai.  
 
O Laudinor foi casado em primeiro casamento com Da. Maria de Resende Pinto. Com seu falecimento, casou-se com Da. Edna. Honrando seu pai, teve nove filhos (Antônio, Aparecida, Lúcia, Luzia, Gorete, Judite, Daniel, Maria Helena e Elias). Mas dessa vez, ao contrário de seu pai, caprichou mesmo foi nas mulheres: seis!
 
Aos 83 anos, volta e meia ele sai da oficina e entra na sua garagem. De lá sai todo espanéfico, às vezes no seu Fiat Uno, outras na sua moto. Corta a cidade e as estradas da zona rural ora num, ora noutra.
 
Este é o Laudi-nor, homem honrado, louvado pelo seu trabalho. E sempre amigo, brincalhão!
 
(agradeço a sua filha, Judite, pelas informações que me passou sobre seu pai)

José Constantino (Zé Barbeiro - 1931/ 2010)

12 de Abril de 2010, por Rosalvo Pinto 2

Zé Barbeiro

Zé Barbeiro, para os mais novos, ou Zé do Jesus, para os mais antigos. Assim sempre foi conhecido o José Constantino, que nos deixou repentina e recentemente, aos 79 anos.

O Zé Barbeiro terá sido o resende-costense que mais viveu e trabalhou no centríssimo da cidade. Se, como dizem, “filho de peixe, peixinho é”, em Resende Costa pode-se dizer, parafraseando o dito popular, que “filho de barbeiro, barbeiro é”. Do pai, Jesus Maria José (Jesus Barbeiro), para o filho, José Constantino (Zé Barbeiro) e deste, para o neto, Cláudio.

Sô Jesus Barbeiro começou trabalhando em casa, depois teve seu salão debaixo do sobrado do Joaquim Batista, tendo estado também ali perto dos Quatro Cantos, entre as casas do Jesus de Melo e do Totonho Gomes. Sempre acompanhado pelo filho José Constantino. Desde 1968 a barbearia se fixou ali na esquina da avenida Gonçalves Pinto com o antigo beco (o “beco do Barbuzinha”, como antes era chamado). Pois bem, aquela esquina transformou-se, ao longo dos anos, em um dos mais conhecidos pontos de referência da cidade. Pode-se dizer que todo Resende-costense por ali passava e passa pelo menos uma vez todo dia.

Zé Barbeiro era um homem de costumes simples, mas sistemático, no bom sentido. Madrugador inveterado, há muitos anos fazia religiosamente sua caminhada das quatro da madrugada, quase sempre em companhia do Zé da Matta, o Zé do Duque (quando ainda vivo). À tardinha, após o “expediente”, encerrava o seu dia de trabalho escondendo-se lá no quase invisível cantinho do bar do Elmo. Nessa hora sua companhia eram a cerveja, a cachacinha e os muitos amigos que por lá apareciam no seu esconderijo. Daí pra casa. A não ser que ... pintasse um forró mais tarde, lá na Cabana do Jovaldo.

Isso mesmo, o forró. Era um dos seus gostos prediletos. Dos bailes de antigamente ao forró dos últimos tempos. Além da música e do baile, o esporte, em especial o futebol. Botafoguense doente, sua barbearia era também um ponto de encontro dos amantes do futebol. O jornal era outra paixão do nosso Zé. Havia sempre algum em sua barbearia, sempre à disposição de quem quisesse. Era só entrar lá, folhear, bisbilhotar alguma notícia ou resultado de jogo e sair. Do pai, apaixonado pelo carnaval, herdou também esse gosto.

Sempre seguindo as trilhas do pai, Zé Barbeiro era também um procurado benzedor. A bênção acontecia lá no fundo da barbearia, onde uma lâmpada permanecia acesa, dia e noite, aos pés de um altarzinho de Nossa Senhora Aparecida.

A barbearia era seu segundo lar. Era lá que ele acolhia seus muitos amigos e clientes. Para esses tinha sempre, escondidinho lá nos fundos, um garrafão, com sua cachaça predileta: uma branquinha curtida com canela. Ponto-de-encontro de Resende Costa, sua barbearia era continuamente procurada por quem andava atrás de notícias, resultados de jogos de futebol, de loterias e do jogo do bicho. Mais que barbearia, ali era um espaço democrático e popular. E o mais interessante, era uma espécie de “sala de visita” da cidade. Por lá costumavam passar autoridades, políticos e visitantes importantes que transitavam por Resende Costa.

Zé Barbeiro só se afastou da cidade para, aos 18 anos, servir ao exército. Aos 20 se casou com Da. Francisca, com quem teve oito filhos: Sinhá, Evaldo, Leo, Aparecida, Solange, José Maria (seu primeiro sucessor que faleceu ainda jovem) e, finalmente, o caçula, o Cláudio. Esse certamente vai herdar o nome do pai e do avô: Cláudio Barbeiro. Zé Barbeiro também prestou seus serviços à comunidade como vereador.

Assim foi a vida do Zé Barbeiro. Cidadão participativo e acolhedor, conhecia Deus e o mundo. Prestativo, atendia seus clientes enfermos em casa ou no hospital. Pela sua simpatia acabou tornando-se, ainda em vida, um personagem inseparável do quotidiano da cidade. Agora que ele se foi, deixando saudades, torna-se um significativo personagem da história de Resende Costa.

(agradeço a colaboração do João do Góes, seu amigo e freguês de anos, para a escritura deste texto)

Pe. José Hugo e sua JAPY

14 de Marco de 2010, por Rosalvo Pinto 0

Na edição 81, de janeiro, dediquei o meu texto “Olympia” ao nosso prezado conterrâneo e amigo Pe. José Hugo de Resende Maia. Brincando, lhe dizia: “com certeza ele vai gostar da minha Olympia”. E acertei.

Qual não foi minha surpresa quando, em fevereiro, recebo via correio uma carta dele. Primeiramente, como o faz há anos, informa que o cheque de R$ 100,00 é para renovar a sua assinatura do JL, lembrando-me que 50,00 é para a assinatura e o restante “um acréscimo de ajuda ao nosso jornal, que merece”. O JL e eu agradecemos. E ele prossegue:

“Grato pela dedicação de seu artigo no Jornal das Lajes de janeiro – 2010, no. 81. De início, me intrigou aquele título, Olympia, quem será? Pelo jogar das cores de suas vestes, pelas unhas pintadas etc., agasalhada e descansando tranquila, depois de 25 anos de companheirismo, é que me lembrei da antiga máquina de escrever, marca Olympia e que, nos tempos em que não havia computadores, nem internet, era de grande utilidade. Parabéns por conservá-la”, comenta o Pe. José Hugo.

Pausa para uma pitada de história. A trajetória da escrita é fascinante e antiga. Desde as tentativas seculares das marcas rupestres, passando pelos hieróglifos, antigos alfabetos e pergaminhos medievais, chega-se ao importantíssimo marco histórico da invenção da imprensa, pelo alemão Johannes Gutenberg (1390-1468). Exagerando um pouco, pode-se dizer que a história do mundo se divide em antes e depois de Gutenberg.

A imprensa, no sentido de uma técnica de se multiplicar os textos escritos, ainda está mais firme do que nunca. Mesmo depois dos fabulosos avanços das modernas tecnologias de processamento de informações e de sua transmissão. Curiosamente, a palavra “imprensa” incorporou, modernamente, um outro sentido: refere-se também aos variados meios de divulgação de informações: jornais, revistas e, até mesmo a televisão. Soa um pouco estranho, mas ouve-se falar muito em “imprensa falada e televisiva”. Toda essa historinha é para situar, nesse contexto, a famosa “máquina de escrever” ou “máquina de datilografia”. É fácil se lembrar de que “datilografia”, palavra oriunda do grego, significa mais ou menos “escrever com os dedos”. E aqui entram a minha “Olympia” e a “Japy” do Pe. José Hugo, para quem retorno a palavra.

“Eu, preguiçoso pela computação, continuo ainda apegado à minha portátil, não Olympia, mas JAPY, made in France, Paris, desde mais ou menos 1952, quando estudava Filosofia em Mariana, fruto de meus trabalhos manuais em fabricação de pastas de viagens (de couro) e capas de missais e breviários”. Para quem não sabe, “missal” e “breviário” são livros que contêm o ritual da missa (o primeiro) e orações, salmos e textos bíblicos que os padres eram (não sei se são mais...) obrigados a ler/rezar diariamente (o segundo).

Após esses comentários, posso agora colocar em diálogo a minha Olympia com a Japy do Pe. José Hugo. O mesmo amor e carinho que tenho pela minha, ele tem pela sua. Veja-se a beleza e a delicadeza de seu texto:

“Está conservadinha, brilhosa, dedais pretos e dentes também branquinhos. Tem uma capa protetora “de aço”, que a tem protegido bem nesses mais de 50 anos de uso. Conserva-se de pé, encostada na parede, ao lado de minha mesa de trabalho. Os erros que ela comete são mais por culpa de seu patrão que vai se envelhecendo e às vezes se distrai. Ela me perdoa, e aos amigos também. Como neste trechinho, quantas falhas, que fazer?”

Legal mesmo. As máquinas de escrever cumpriram brilhantemente seu papel desde o início do século passado, acredito, até a década de 80. Havia as normais - grandes e pesadas -, as semiportáteis (como a minha Olympia) e as portáteis. As grandes costumavam ter o “carro” (o rolo no qual se enfiava o papel) comum, médio e grande. Podiam ter um rolo de até um metro de comprimento, dependendo do tamanho do papel. As existentes no Brasil eram fabricadas na Europa (Alemanha, França, Inglaterra, Suécia, Itália etc.) e nos Estados Unidos. Os antigos “datilógrafos” devem se lembrar das marcas Underwood, Remington, Olivetti, Facit, IBM e, claro, as nossas Olympia e Japy. Nas décadas de 70 e 80 algumas dessas se modernizaram: eram já elétricas, sem o tal do “carro” (substituído por esferas), tinham corretor etc. Ser datilógrafo era uma coisa importante e essencial. Qualquer perspectiva de emprego exigia um bom curso de datilografia. Entre as numerosas escolas de datilografia de Belo Horizonte, uma das mais famosas foi a “Escola Andrade”, ali na Galeria do Ouvidor, do resende-costense Percy (Alves) Andrade. Neto do Chiquinho Alves, salvo engano foi meu colega de escola primária. Fico por aqui. Termino com as palavras do meu companheiro “datilográfico”:

“Gostaria de ser jornalista e escritor para também prestar-lhe [à sua Japy] minha homenagem, como você prestou à sua Olympia”. Você acaba de prestar, Pe. José Hugo. Um grande abraço.