Valcides e a imagem de Nossa Senhora da Boa Viagem na rodoviária de Belo Horizonte
11 de Fevereiro de 2010, por Rosalvo Pinto 0

Tempos atrás, ao falar aos meus alunos da UFMG sobre Resende Costa, contava-lhes que existia, na rodoviária de Belo Horizonte, uma imagem de Nossa Senhora da Boa Viagem, obra de um artista de minha cidade. E aí me vieram as dúvidas: será que ainda está lá? Seria dele mesmo? Então resolvi confirmar isso pessoalmente.
Fui à rodoviária. No guichê de informações perguntei pela imagem. Lá ao fundo, me indicaram. De longe vi um grande nicho de vidro, na lateral do terminal rodoviário, à esquerda de quem entra pela sua porta central, no nível do seu saguão principal. Fui lá conferir.
Há anos sempre ouço falar dessa imagem, como sendo obra de arte de nosso artesão e artista plástico maior, o saudoso Valcides (1926/2008). Talvez poucos resende-costenses saibam disso ou, os que sabem, talvez não tiveram a curiosidade de ir vê-la de perto.
Lá estava ela, no interior de um nicho de vidro. Realmente uma bela imagem, com aproximadamente 1,20m de altura. O nicho é arredondado, com vidros ligeiramente coloridos no fundo arqueado e, na frente, transparentes e retos. Tem uns 2,75 m de altura e de largura, grande, portanto. A imagem está sobre um pedestal de mármore branco, com 1,20m de altura. Tem uma coroa dourada, o braço direito no peito e o esquerdo levantado, sustentando um grande terço, de contas de cristal. Uma veste até os pés, cor amarelada e detalhes dourados, ligeiramente marchetada de flores, além de um manto de tamanho médio, azul, com barras douradas. Aos pés os bustos de três anjinhos, estilo meio barroco, ligeiramente sorridentes. Saindo dos pés da imagem à sua direita, uma peça que, ao que tudo indica, seria parte de uma lua minguante.
Ao pé do pedestal, uma placa de alumínio com os dizeres: “Nossa Senhora da Boa Viagem - Entronizada em 12 de outubro de 1981 pela Legião do Terço - Homenagem de Belo Horizonte à sua padroeira”. Mais abaixo, no vidro e em letras jateadas, garrafais, nome e telefones da empresa fornecedora dos vidros.
Fazendo rápida pesquisa sobre essa imagem, constatei que existem outras maneiras de se expressar esse título ou essa ideia de “boa viagem”. Mas o formato da imagem da rodoviária é igual ao da padroeira oficial de Belo Horizonte, que fica na Catedral da Boa Viagem. Constatei também que, nesse formato, não existe um terço pendente de sua mão esquerda, como se vê na imagem da rodoviária. O terço deve ter sido colocado pelos devotos da Legião do Terço, acima mencionada. O braço esquerdo levantado me parece simbolizar um gesto de estar mostrando um caminho, uma direção.
Olhei pedestal e imagem por todos os lados e ângulos possíveis. Esperava encontrar o nome de quem a havia esculpido. Não o vi. Descuido dos entronizadores da imagem ou modéstia do artista? Seguramente, a segunda opção. Era uma característica do Valcides, a modéstia. Era discreto e não gostava de divulgar suas obras, nas quais não assinava seu nome.Naquele nicho-altar só constam palavras referentes à Legião do Terço e à fornecedora do vidro blindex, essa última apenas fazendo sua publicidade, às custas no nosso artista. Isso causou-me estranheza e tristeza.
A imagem foi buscada em Resende Costa em 12 de outubro de 1981 e levada diretamente para o saguão nobre da Prefeitura Municipal de BH. Às 15 horas desse mesmo dia, foi levada pela guarda de honra do corpo de bombeiros, em carro aberto, para seu local de destino, a rodoviária. Diante de uma recepção popular, foi saudada pelo Dr. João Luiz de Sousa Dias, presidente de um órgão importante da prefeitura à época, a Metrobel. Seguiram-se a bênção da imagem e a exaltação à Virgem. Essas informações foram dadas pela Ana Rita Arvelos, irmã do Valcides.
Desde décadas, falar de “cultura” em Resende Costa significa necessariamente se lembrar do Valcides. Entre poucos outros, talvez ele tenha sido único a obter grande reconhecimento público, até mesmo nacional. Já fora reconhecido pela Revista Veja, em 1972, como “gênio de arte sacra”, mereceu reportagem no Estado de Minas, quando da entronização da sua obra no terminal rodoviário da capital mineira e tem outra imagem no museu do Vaticano. Além de muitas outras referências.
Fica aqui um convite para os resende-costenses, de passagem pela rodoviária de BH: não deixem de apreciar a obra do nosso conterrâneo.
Fui à rodoviária. No guichê de informações perguntei pela imagem. Lá ao fundo, me indicaram. De longe vi um grande nicho de vidro, na lateral do terminal rodoviário, à esquerda de quem entra pela sua porta central, no nível do seu saguão principal. Fui lá conferir.
Há anos sempre ouço falar dessa imagem, como sendo obra de arte de nosso artesão e artista plástico maior, o saudoso Valcides (1926/2008). Talvez poucos resende-costenses saibam disso ou, os que sabem, talvez não tiveram a curiosidade de ir vê-la de perto.
Lá estava ela, no interior de um nicho de vidro. Realmente uma bela imagem, com aproximadamente 1,20m de altura. O nicho é arredondado, com vidros ligeiramente coloridos no fundo arqueado e, na frente, transparentes e retos. Tem uns 2,75 m de altura e de largura, grande, portanto. A imagem está sobre um pedestal de mármore branco, com 1,20m de altura. Tem uma coroa dourada, o braço direito no peito e o esquerdo levantado, sustentando um grande terço, de contas de cristal. Uma veste até os pés, cor amarelada e detalhes dourados, ligeiramente marchetada de flores, além de um manto de tamanho médio, azul, com barras douradas. Aos pés os bustos de três anjinhos, estilo meio barroco, ligeiramente sorridentes. Saindo dos pés da imagem à sua direita, uma peça que, ao que tudo indica, seria parte de uma lua minguante.
Ao pé do pedestal, uma placa de alumínio com os dizeres: “Nossa Senhora da Boa Viagem - Entronizada em 12 de outubro de 1981 pela Legião do Terço - Homenagem de Belo Horizonte à sua padroeira”. Mais abaixo, no vidro e em letras jateadas, garrafais, nome e telefones da empresa fornecedora dos vidros.
Fazendo rápida pesquisa sobre essa imagem, constatei que existem outras maneiras de se expressar esse título ou essa ideia de “boa viagem”. Mas o formato da imagem da rodoviária é igual ao da padroeira oficial de Belo Horizonte, que fica na Catedral da Boa Viagem. Constatei também que, nesse formato, não existe um terço pendente de sua mão esquerda, como se vê na imagem da rodoviária. O terço deve ter sido colocado pelos devotos da Legião do Terço, acima mencionada. O braço esquerdo levantado me parece simbolizar um gesto de estar mostrando um caminho, uma direção.
Olhei pedestal e imagem por todos os lados e ângulos possíveis. Esperava encontrar o nome de quem a havia esculpido. Não o vi. Descuido dos entronizadores da imagem ou modéstia do artista? Seguramente, a segunda opção. Era uma característica do Valcides, a modéstia. Era discreto e não gostava de divulgar suas obras, nas quais não assinava seu nome.Naquele nicho-altar só constam palavras referentes à Legião do Terço e à fornecedora do vidro blindex, essa última apenas fazendo sua publicidade, às custas no nosso artista. Isso causou-me estranheza e tristeza.
A imagem foi buscada em Resende Costa em 12 de outubro de 1981 e levada diretamente para o saguão nobre da Prefeitura Municipal de BH. Às 15 horas desse mesmo dia, foi levada pela guarda de honra do corpo de bombeiros, em carro aberto, para seu local de destino, a rodoviária. Diante de uma recepção popular, foi saudada pelo Dr. João Luiz de Sousa Dias, presidente de um órgão importante da prefeitura à época, a Metrobel. Seguiram-se a bênção da imagem e a exaltação à Virgem. Essas informações foram dadas pela Ana Rita Arvelos, irmã do Valcides.
Desde décadas, falar de “cultura” em Resende Costa significa necessariamente se lembrar do Valcides. Entre poucos outros, talvez ele tenha sido único a obter grande reconhecimento público, até mesmo nacional. Já fora reconhecido pela Revista Veja, em 1972, como “gênio de arte sacra”, mereceu reportagem no Estado de Minas, quando da entronização da sua obra no terminal rodoviário da capital mineira e tem outra imagem no museu do Vaticano. Além de muitas outras referências.
Fica aqui um convite para os resende-costenses, de passagem pela rodoviária de BH: não deixem de apreciar a obra do nosso conterrâneo.
Olympia
14 de Janeiro de 2010, por Rosalvo Pinto 0
(dedico este texto ao conterrâneo, amigo e leitor assíduo do JL, Pe. José Hugo de Resende Maia. Ele, com certeza, vai gostar da Olympia...)
Bonito meu nome, concordam? Lembra o Olimpo, a montanha sagrada onde moravam os deuses imortais, entre eles Zeus, o maior. Depois de Métis e Têmis, suas duas primeiras esposas ou amantes, eu bem que poderia ser uma delas, uma das deusas do Olimpo, quem dera! Me contento com o nome.
Toda vestida de verde, estou feliz por aqui mesmo, numa outra montanha sagrada, de livros. Nem sei que verde é. Antigamente a gente só conhecia as seis cores da caixinha de lápis de cor, ou, tempos depois, as sete cores do “espectro de Newton”, é isso mesmo? Não sei por que, parece estranho, mas eu gostava também do preto e do vermelho, que acrescentava como adereços ao meu verde. O porquê disso, perguntem ao Freud, que está logo acima de mim. Hoje os nomes das cores são cada vez mais esquisitos: tijolo, areia, salmão, gelo, telha, azeitona, marfim, palha, folha, petróleo, tem até o azul-noite, e, mais curiosos ainda, o azul-bacia, o azul-calcinha! Agora, não dá pra aguentar é o verde-água! Se a água é incolor, que verde é esse? É até meio chique falar esses nomes. Ué!? por que estou falando isso? Ah, era da cor da minha roupa. Bem, deve ser verde musgo ou, talvez, verde oliva, chique mesmo. Tenho boca grande, sei que muitos homens gostam de mulheres de boca grande. Meus dentes branquinhos, até brilhantes. Mesmo tendo mastigado muito, estão perfeitos. Meus dedos, um pouco gastos pelo trabalho, mas ainda bonitos. As unhas pintadas de verde também, um pouco mais escuro. Descanso quietinha, agasalhada por uma capa transparente. Acho que é de uma coisa chamada acrílico.
Também pudera, depois de 25 anos de trabalho ininterrupto, estou aposentada. Merecia mesmo. Por esse tempo todo fui uma excelente professora. De língua portuguesa, de linguística, de latim, sabia e ensinava muita coisa. Ajudei muita gente a passar nos vestibulares. Escrevi muitas cartas: de amor, de tristezas, de angústias, de negócios. Documentos importantes, petições, rescisões, declarações, muitos. Fui sempre incansável e obediente. Pegavam meu braço e eu me deixava levar mansamente pra lá e pra cá, por horas e horas, sem me queixar. Discreta e fiel, guardava e ainda guardo muitos segredos, no emaranhado do meu esqueleto.
Ah, me esquecia de dizer. Tenho um sobrenome complicado, mas certamente elegante: Olympia Werke Wilhelmshaven. Dá até pra desconfiar que sou estrangeira. E sou mesmo: nasci na Alemanha. e vim para o Brasil em fins da década de sessenta. Sem falsa modéstia, posso dizer que também sou precoce: já nasci falando e comecei a trabalhar com uns três ou quatro anos, não me lembro bem. Morei uns três anos no sul de Minas antes de vir para Belo Horizonte, em janeiro de 1970. Naquela história de amor à primeira vista, me casei logo com o homem perto do qual vivo até hoje. É, posso até dizer que foi um casamento feliz. Puro companheirismo. Tenho muito orgulho de ter participado de quase tudo que ele conquistou. Por isso acho que ele me tocou sempre com o maior carinho. Seus dedos me acariciavam muito rápidos, mas sempre com maestria, delicadeza, com sensualidade.
De tanto trabalhar, envelheci. Mas conservei a pele lisa e atraente. Nenhuma ruga. Posso mesmo dizer que ainda sou bonita. Os tempos passaram, mudaram e meu companheiro se apaixonou por outras, mais novas, modernas. Mas eu não o abandonei, estou sempre aqui, de onde o vejo, com tristeza, acariciando outra. Mas sempre à espera de que seus dedos voltem, algum dia, a me tocar como antes. É estranho, mas tenho certeza que de ele me ama, pois, apesar de tudo, nunca me abandonou. Ainda cuida de mim. De tanto em tanto ele se volta para trás e me olha. Desconfio até que com uma pitada de saudade. De algum tempo para cá ele colocou duas mãozinhas, longas, brancas e delicadíssimas, sobre mim. Então me lembro de uma frase misteriosa e instigante que eu escrevia para ele, nos tempos do trabalho e do amor, quando eu era muito tagarela. Se não me engano era daquela amante do escultor Rodin, a Camille Claudel, que esperou por ele a vida toda: “há sempre alguma coisa de ausente que me atormenta”. É verdade, tanto nos tempos do amor como nos de hoje, do silêncio e da solidão, meu tormento.
Agora vocês já sabem quem eu sou: Olympia Wilhermshaven, com muito prazer. Então venham me ver. Tragam apenas delicadeza nas pontas dos dedos e podem me tocar à vontade. Talvez assim eu reviva aqueles tempos de puro encantamento. Venham mesmo, estou esperando.
(Minha homenagem à Olympia, companheira e confidente inseparável de muitos anos, hoje, silenciosamente oferecida)
Bonito meu nome, concordam? Lembra o Olimpo, a montanha sagrada onde moravam os deuses imortais, entre eles Zeus, o maior. Depois de Métis e Têmis, suas duas primeiras esposas ou amantes, eu bem que poderia ser uma delas, uma das deusas do Olimpo, quem dera! Me contento com o nome.
Toda vestida de verde, estou feliz por aqui mesmo, numa outra montanha sagrada, de livros. Nem sei que verde é. Antigamente a gente só conhecia as seis cores da caixinha de lápis de cor, ou, tempos depois, as sete cores do “espectro de Newton”, é isso mesmo? Não sei por que, parece estranho, mas eu gostava também do preto e do vermelho, que acrescentava como adereços ao meu verde. O porquê disso, perguntem ao Freud, que está logo acima de mim. Hoje os nomes das cores são cada vez mais esquisitos: tijolo, areia, salmão, gelo, telha, azeitona, marfim, palha, folha, petróleo, tem até o azul-noite, e, mais curiosos ainda, o azul-bacia, o azul-calcinha! Agora, não dá pra aguentar é o verde-água! Se a água é incolor, que verde é esse? É até meio chique falar esses nomes. Ué!? por que estou falando isso? Ah, era da cor da minha roupa. Bem, deve ser verde musgo ou, talvez, verde oliva, chique mesmo. Tenho boca grande, sei que muitos homens gostam de mulheres de boca grande. Meus dentes branquinhos, até brilhantes. Mesmo tendo mastigado muito, estão perfeitos. Meus dedos, um pouco gastos pelo trabalho, mas ainda bonitos. As unhas pintadas de verde também, um pouco mais escuro. Descanso quietinha, agasalhada por uma capa transparente. Acho que é de uma coisa chamada acrílico.
Também pudera, depois de 25 anos de trabalho ininterrupto, estou aposentada. Merecia mesmo. Por esse tempo todo fui uma excelente professora. De língua portuguesa, de linguística, de latim, sabia e ensinava muita coisa. Ajudei muita gente a passar nos vestibulares. Escrevi muitas cartas: de amor, de tristezas, de angústias, de negócios. Documentos importantes, petições, rescisões, declarações, muitos. Fui sempre incansável e obediente. Pegavam meu braço e eu me deixava levar mansamente pra lá e pra cá, por horas e horas, sem me queixar. Discreta e fiel, guardava e ainda guardo muitos segredos, no emaranhado do meu esqueleto.
Ah, me esquecia de dizer. Tenho um sobrenome complicado, mas certamente elegante: Olympia Werke Wilhelmshaven. Dá até pra desconfiar que sou estrangeira. E sou mesmo: nasci na Alemanha. e vim para o Brasil em fins da década de sessenta. Sem falsa modéstia, posso dizer que também sou precoce: já nasci falando e comecei a trabalhar com uns três ou quatro anos, não me lembro bem. Morei uns três anos no sul de Minas antes de vir para Belo Horizonte, em janeiro de 1970. Naquela história de amor à primeira vista, me casei logo com o homem perto do qual vivo até hoje. É, posso até dizer que foi um casamento feliz. Puro companheirismo. Tenho muito orgulho de ter participado de quase tudo que ele conquistou. Por isso acho que ele me tocou sempre com o maior carinho. Seus dedos me acariciavam muito rápidos, mas sempre com maestria, delicadeza, com sensualidade.
De tanto trabalhar, envelheci. Mas conservei a pele lisa e atraente. Nenhuma ruga. Posso mesmo dizer que ainda sou bonita. Os tempos passaram, mudaram e meu companheiro se apaixonou por outras, mais novas, modernas. Mas eu não o abandonei, estou sempre aqui, de onde o vejo, com tristeza, acariciando outra. Mas sempre à espera de que seus dedos voltem, algum dia, a me tocar como antes. É estranho, mas tenho certeza que de ele me ama, pois, apesar de tudo, nunca me abandonou. Ainda cuida de mim. De tanto em tanto ele se volta para trás e me olha. Desconfio até que com uma pitada de saudade. De algum tempo para cá ele colocou duas mãozinhas, longas, brancas e delicadíssimas, sobre mim. Então me lembro de uma frase misteriosa e instigante que eu escrevia para ele, nos tempos do trabalho e do amor, quando eu era muito tagarela. Se não me engano era daquela amante do escultor Rodin, a Camille Claudel, que esperou por ele a vida toda: “há sempre alguma coisa de ausente que me atormenta”. É verdade, tanto nos tempos do amor como nos de hoje, do silêncio e da solidão, meu tormento.
Agora vocês já sabem quem eu sou: Olympia Wilhermshaven, com muito prazer. Então venham me ver. Tragam apenas delicadeza nas pontas dos dedos e podem me tocar à vontade. Talvez assim eu reviva aqueles tempos de puro encantamento. Venham mesmo, estou esperando.
(Minha homenagem à Olympia, companheira e confidente inseparável de muitos anos, hoje, silenciosamente oferecida)
“Ridiculus mus”
13 de Dezembro de 2009, por Rosalvo Pinto 0
Aquela tinha sido uma semana difícil. Muito trabalho. Trabalho duro, noturno e nada de pagamento por hora extra. Entrar e sair de buracos apertados e escuros. Pelejar dentro de tubos de esgoto fedorentos. Risco constante de acidentes: qualquer cochilada, morte certa. Tudo isso a troco de um miserável prato de bóia.
Era sábado de manhã. Ele voltava do trabalho para casa, mas antes passou pela banca e comprou um jornal, daqueles baratinhos, 0,25 centavos, que todo mundo pode comprar. Até porque não sabia ler direito. A idade também já não ajudava. Dava pra ler apenas títulos e manchetes, o suficiente pra saber o que rolava pelo mundo, descansando lá no submundo onde morava. Começou pelas chamadas da capa. “Bandido assaltou e matou casal”. “Quadrilha fez arrastão em condomínio de luxo em São Paulo”. “Assaltantes de banco matam segurança e fogem”. “Ladrões roubam carro e arrastam criança por cinco quilômetros pelas ruas do Rio”. Cruz credo, só desgraça, murmurou horrorizado Dom Ratão.
Isso não é nada, pior do que isso é sermos sistematicamente perseguidos pelos humanos, pensou revoltado Dom Ratão, ao ler no jornal, com dificuldade, que 80% do código genético do rato tem semelhança com o dos homens. Não entendo muito disso, resmungou, ao ver a foto de um ratinho branco no jornal, mas dá para sacar que devíamos ser mais bem tratados. Somos quase iguais a eles. Isso aumenta nossa revolta.
Mais adiante, numa propaganda, ele se lembrou de dois sujeitos intragáveis: Hanna e Barbera. Sabia que esses caras tinham ficado bilionários às custas de sua raça. Inventaram milhares de estorinhas nas quais um representante de sua gente, um tal de Jerry, um dos protagonistas, estava sempre roubando e apanhando. De vez em quando, passando lá pelas beiradas do teto do cinema, ele via seus irmãos em apuros lá num pano branco grande. Sacanagem, ele pensou. Escarrapachados nas poltronas, esse povo fica comendo pipocas e dando gargalhadas às nossas custas.
Na página seguinte, outra notícia, em letras grandes, chamou-lhe a atenção: “Ladrões no Senado: Sarney é acusado de 11 falcatruas”. Esses tais de humanos são interessantes: eles roubam, roubam, até matam para roubar e ainda usam o nosso nome como sinônimo de “ladrão”. “O deputado fulano é um rato: roubou dinheiro do orçamento”. Chegaram até a inventar um verbo com nosso nome: “Precisamos urgentemente desratizar o Congresso”, leu mais adiante. É o cúmulo da maldade.
Nós não roubamos nada. Simplesmente buscamos o que comer, pensou, lembrando-se da tal da lei da sobrevivência das espécies. Que eu saiba, nunca, nunca mesmo, assassinamos alguém para roubar alguma coisa. Uma vez, lá do meu buraquinho atrás do armário da cozinha, escutei um humano falando com o outro: “quem rouba de ladrão tem cem anos de perdão”. Daí fiquei pensando: que moral têm esses humanos para nos representar como símbolo da ladroagem?
E por aí vai o desprezo para conosco. De vez em quando ouço um humano dizer a outro: “você parece um rato de sacristia”, ou, “aquela mulher parece um rato de laboratório”. Ah!, e por falar em laboratório, vem o pior: somos os eternos cobaias de uns homens chamados pesquisadores. Estão sempre nos prendendo em gaiolas e, na televisão, aparecemos sempre sendo espetados por uma seringa. É nossa sina. E os instrumentos de tortura que inventaram para nós: a ratoeira, os venenos, o tal do chumbinho? E ainda gozam de nós: “aquele político caiu numa ratoeira”, como se não bastassem essas geringonças inventadas para nos matar.
Nosso sofrimento não tem limites. Para quando somos pequenos inventaram um nome horroroso: “camundongo”. Nos últimos tempos, nosso nome virou uma geringonça esquisita que trabalha o dia inteiro apertado na mão dos homens e, ainda por cima, de graça: “mouse”. Até no latim clássico nosso nome já era feio: “mus”, do qual, eu acho, os ingleses derivaram o “mouse”. Isso é nome a ser dado a alguém? A propósito, uma coisa pior ainda. Nosso nome foi sempre usado para fazer as piores comparações. Dizem que um famoso poeta romano, um tal de Horácio, falando de alguém que promete uma grande obra e acaba produzindo uma porcariazinha, saiu-se com essa (desculpem-me, tenho que falar primeiro em latim, depois traduzo...): “Parturient montes, nascetur ridiculus mus” (as montanhas vão parir e vai nascer um ridículo rato). Um absurdo, e logo numa de suas obras mais importantes, a “Arte Poética”. Essa não!
Enfim, rato, camundongo, “mus”, ou “mouse”, encerrou suas elucubrações Dom Ratão, podem nos chamar de qualquer coisa. Estamos lixando para isso. Mas, pelo amor de Deus, não nos comparem e não nos confundam com aquele povinho lá de Brasília. Uma vergonha, esses humanos: roubando, sobretudo dos pobres, e escondendo dinheiro em cuecas e meias, credo! Seria o fim da nossa raça!
Era sábado de manhã. Ele voltava do trabalho para casa, mas antes passou pela banca e comprou um jornal, daqueles baratinhos, 0,25 centavos, que todo mundo pode comprar. Até porque não sabia ler direito. A idade também já não ajudava. Dava pra ler apenas títulos e manchetes, o suficiente pra saber o que rolava pelo mundo, descansando lá no submundo onde morava. Começou pelas chamadas da capa. “Bandido assaltou e matou casal”. “Quadrilha fez arrastão em condomínio de luxo em São Paulo”. “Assaltantes de banco matam segurança e fogem”. “Ladrões roubam carro e arrastam criança por cinco quilômetros pelas ruas do Rio”. Cruz credo, só desgraça, murmurou horrorizado Dom Ratão.
Isso não é nada, pior do que isso é sermos sistematicamente perseguidos pelos humanos, pensou revoltado Dom Ratão, ao ler no jornal, com dificuldade, que 80% do código genético do rato tem semelhança com o dos homens. Não entendo muito disso, resmungou, ao ver a foto de um ratinho branco no jornal, mas dá para sacar que devíamos ser mais bem tratados. Somos quase iguais a eles. Isso aumenta nossa revolta.
Mais adiante, numa propaganda, ele se lembrou de dois sujeitos intragáveis: Hanna e Barbera. Sabia que esses caras tinham ficado bilionários às custas de sua raça. Inventaram milhares de estorinhas nas quais um representante de sua gente, um tal de Jerry, um dos protagonistas, estava sempre roubando e apanhando. De vez em quando, passando lá pelas beiradas do teto do cinema, ele via seus irmãos em apuros lá num pano branco grande. Sacanagem, ele pensou. Escarrapachados nas poltronas, esse povo fica comendo pipocas e dando gargalhadas às nossas custas.
Na página seguinte, outra notícia, em letras grandes, chamou-lhe a atenção: “Ladrões no Senado: Sarney é acusado de 11 falcatruas”. Esses tais de humanos são interessantes: eles roubam, roubam, até matam para roubar e ainda usam o nosso nome como sinônimo de “ladrão”. “O deputado fulano é um rato: roubou dinheiro do orçamento”. Chegaram até a inventar um verbo com nosso nome: “Precisamos urgentemente desratizar o Congresso”, leu mais adiante. É o cúmulo da maldade.
Nós não roubamos nada. Simplesmente buscamos o que comer, pensou, lembrando-se da tal da lei da sobrevivência das espécies. Que eu saiba, nunca, nunca mesmo, assassinamos alguém para roubar alguma coisa. Uma vez, lá do meu buraquinho atrás do armário da cozinha, escutei um humano falando com o outro: “quem rouba de ladrão tem cem anos de perdão”. Daí fiquei pensando: que moral têm esses humanos para nos representar como símbolo da ladroagem?
E por aí vai o desprezo para conosco. De vez em quando ouço um humano dizer a outro: “você parece um rato de sacristia”, ou, “aquela mulher parece um rato de laboratório”. Ah!, e por falar em laboratório, vem o pior: somos os eternos cobaias de uns homens chamados pesquisadores. Estão sempre nos prendendo em gaiolas e, na televisão, aparecemos sempre sendo espetados por uma seringa. É nossa sina. E os instrumentos de tortura que inventaram para nós: a ratoeira, os venenos, o tal do chumbinho? E ainda gozam de nós: “aquele político caiu numa ratoeira”, como se não bastassem essas geringonças inventadas para nos matar.
Nosso sofrimento não tem limites. Para quando somos pequenos inventaram um nome horroroso: “camundongo”. Nos últimos tempos, nosso nome virou uma geringonça esquisita que trabalha o dia inteiro apertado na mão dos homens e, ainda por cima, de graça: “mouse”. Até no latim clássico nosso nome já era feio: “mus”, do qual, eu acho, os ingleses derivaram o “mouse”. Isso é nome a ser dado a alguém? A propósito, uma coisa pior ainda. Nosso nome foi sempre usado para fazer as piores comparações. Dizem que um famoso poeta romano, um tal de Horácio, falando de alguém que promete uma grande obra e acaba produzindo uma porcariazinha, saiu-se com essa (desculpem-me, tenho que falar primeiro em latim, depois traduzo...): “Parturient montes, nascetur ridiculus mus” (as montanhas vão parir e vai nascer um ridículo rato). Um absurdo, e logo numa de suas obras mais importantes, a “Arte Poética”. Essa não!
Enfim, rato, camundongo, “mus”, ou “mouse”, encerrou suas elucubrações Dom Ratão, podem nos chamar de qualquer coisa. Estamos lixando para isso. Mas, pelo amor de Deus, não nos comparem e não nos confundam com aquele povinho lá de Brasília. Uma vergonha, esses humanos: roubando, sobretudo dos pobres, e escondendo dinheiro em cuecas e meias, credo! Seria o fim da nossa raça!
Didico e suas histórias ...
14 de Novembro de 2009, por Rosalvo Pinto 3
Qualquer jornalista se deliciaria com uma conversa ou entrevista com o Didico Vieira. Sem o ser, eu me senti um jornalista de sorte. Da roça para a “vila”, onde viveu até o início de sua juventude e, daí, para enfrentar a vida na “paulicéia desvairada”, aos 17 anos. Um resumo de sua vida
A vida do Geraldo Vieira da Silva, filho do João Vieira, tem dois grandes capítulos: a vidinha em Resende Costa, envolvido com tropas e tropeiros e a vida em São Paulo, cuidando da cavalaria do Jockey Club de São Paulo, durante 35 anos, em contacto com a fina flor da sociedade paulistana. Dá pra sacar que ele tem mesmo muita coisa a contar.
Cheguei à sua casa pelas 10 da manhã. Depois de dois “ô, de casa”, apareceram duas crianças me informando que ele estava trabalhando no lote vago de cima. Estava lá no fundo, suado de foice e enxada, limpando o lote para plantar o sempre cobiçado feijãozinho das águas. Fiquei sem jeito de interromper seu trabalho. Mas vi que ele já vinha com jeito acolhedor. Quando lhe falei que era conversa para o Jornal das Lajes, ele largou as ferramentas, abriu um sorriso e me puxou para perto de sua casa. Fomos entrando numa garagem, com um fusca avermelhado, meio desbotado, logo na entrada. Depois eu conto a história desse fusca, apressou-se a me dizer. Mas o fusca faz parte do outro capítulo. Agora digo eu: conto essa história depois. Primeiro o capítulo 1: “tropas e tropeiros”.
O restante do cômodo, um verdadeiro museu. De cara me mostrou a antiga cangalha que seu avô lhe deixara de lembrança. O Sr. João Procópio Santana, conhecido na época como “Procópio do Beramuro”, ou “Procópio tropeiro” era o seu avô. E padrinho também, fez questão de dizer, com orgulho. E disse mais: foi um dos maiores tropeiros do passado. Ele e o Zé Policarpo. Uma vida tocando tropa daqui para a Zona da Mata. Único meio de transporte de cargas na época. Levava mercadorias e trazia mantimentos para as “vendas” do Chiquito Vale, Duque, Airton Vale. Coisas que não havia por aqui: batatinha e açúcar eram as cargas principais. O “açúcar pernambucano” vinha de lá, por ser mais barato. E cada vez mais entusiasmado, passou a dar uma aula sobre tropa.
Uma tropa com “T” maiúsculo tinha que ter 12 burros (ou mulas). Os animais trabalhavam a partir dos dois anos e meio, quando acontecia a 1ª. muda (de dentes), até os vinte. Aos três e meio vinha a 2ª. Aos quatro e meio, a última, quando aparecia o “gavião”, os dentes lá do fundo. Aí o burro estava maduro para carregar até 8 arrobas (120 kg). Uma pintura de saudade brilhava nos olhos quando começou a lembrar os nomes dos burros. Tinha que começar pelo “Avenida”. Nome significativo: era o burro-de-guia. Ia na frente, com carga menor. Todo enfeitado: cincerro, espelhos e fitas coloridas. Chegando em encruzilhadas, ele era comandado apenas pela voz do tropeiro, gritando lá de trás: “frente, esquerda, direita”. Encaixado na sua cangalha subia bem alto um pau roliço, o “arrocho”. Na sua ponta uma fita, ora branca, ora vermelha. A branca significava “tropa vazia ou com carga leve”; a vermelha, “carga pesada”. Quando a tropa se aproximava de uma cava, o tropeiro subia o barranco para olhar a saída dela. Avistando outra tropa com fita vermelha, parava a sua e esperava a outra passar. Se fosse branca, a preferência era da sua. Os espelhos eram para refletir de longe o guia da outra tropa.
Continuaram os nomes. A cada um, uma expressão de deslumbramento e saudade: Despacho, Sereno, Realeza, Xodó, Soberano, Jeitoso, Pachola ... Aí o Didico fez outra pausa. Opa! Esse era o “burro de coice”, o que vinha atrás. Geralmente um dos mais velhos, mais lerdos, tinha que ser manso. Com uma carga um pouco menor, por cima dela levava a “cozinha”. O outros ... o Didico ficou agoniado por não se lembrar mais dos quatro que faltavam. Vou lembrar depois. Contou que o Jeitoso era um burro preto que foi vendido, tempos depois, para o Saneco (seu tio, lembrou ele). Na “Pereirinha”, lugarejo da região, continuou, havia uma fazenda com uma “indústria” de burros para atender aos tropeiros. Nosso conhecido Sílvio do Lindolfo por muitos anos foi o intermediário no comércio de burros na região.
Sem perceber, havia passado quase uma hora de prosa. E o Didico queria porque queria passar para o capítulo 2. A um dado momento, falou-se no Jornal das Lajes. Vi algumas páginas dele pregadas na parede. Mais que depressa ele atalhou: olha, se você precisar de algum número antigo, é só falar. Lá no meu sítio tenho uma coleção. Quando aparece alguém, sempre mostro alguma coisa do jornal.
Despedi-me. Momentos agradáveis. Sobretudo por conhecer um homem de fibra, obstinado trabalhador, articulado, bem informado, bom humor, de bem com a vida, apegado a sua terra, aos seus costumes, à sua história. Uma história de muitas saudades, encerrou emocionado o nosso Didico.
(agradeço ao Márcio Daniel de Sousa, o amigo Brizola, a descoberta e a indicação do Didico).
A vida do Geraldo Vieira da Silva, filho do João Vieira, tem dois grandes capítulos: a vidinha em Resende Costa, envolvido com tropas e tropeiros e a vida em São Paulo, cuidando da cavalaria do Jockey Club de São Paulo, durante 35 anos, em contacto com a fina flor da sociedade paulistana. Dá pra sacar que ele tem mesmo muita coisa a contar.
Cheguei à sua casa pelas 10 da manhã. Depois de dois “ô, de casa”, apareceram duas crianças me informando que ele estava trabalhando no lote vago de cima. Estava lá no fundo, suado de foice e enxada, limpando o lote para plantar o sempre cobiçado feijãozinho das águas. Fiquei sem jeito de interromper seu trabalho. Mas vi que ele já vinha com jeito acolhedor. Quando lhe falei que era conversa para o Jornal das Lajes, ele largou as ferramentas, abriu um sorriso e me puxou para perto de sua casa. Fomos entrando numa garagem, com um fusca avermelhado, meio desbotado, logo na entrada. Depois eu conto a história desse fusca, apressou-se a me dizer. Mas o fusca faz parte do outro capítulo. Agora digo eu: conto essa história depois. Primeiro o capítulo 1: “tropas e tropeiros”.
O restante do cômodo, um verdadeiro museu. De cara me mostrou a antiga cangalha que seu avô lhe deixara de lembrança. O Sr. João Procópio Santana, conhecido na época como “Procópio do Beramuro”, ou “Procópio tropeiro” era o seu avô. E padrinho também, fez questão de dizer, com orgulho. E disse mais: foi um dos maiores tropeiros do passado. Ele e o Zé Policarpo. Uma vida tocando tropa daqui para a Zona da Mata. Único meio de transporte de cargas na época. Levava mercadorias e trazia mantimentos para as “vendas” do Chiquito Vale, Duque, Airton Vale. Coisas que não havia por aqui: batatinha e açúcar eram as cargas principais. O “açúcar pernambucano” vinha de lá, por ser mais barato. E cada vez mais entusiasmado, passou a dar uma aula sobre tropa.
Uma tropa com “T” maiúsculo tinha que ter 12 burros (ou mulas). Os animais trabalhavam a partir dos dois anos e meio, quando acontecia a 1ª. muda (de dentes), até os vinte. Aos três e meio vinha a 2ª. Aos quatro e meio, a última, quando aparecia o “gavião”, os dentes lá do fundo. Aí o burro estava maduro para carregar até 8 arrobas (120 kg). Uma pintura de saudade brilhava nos olhos quando começou a lembrar os nomes dos burros. Tinha que começar pelo “Avenida”. Nome significativo: era o burro-de-guia. Ia na frente, com carga menor. Todo enfeitado: cincerro, espelhos e fitas coloridas. Chegando em encruzilhadas, ele era comandado apenas pela voz do tropeiro, gritando lá de trás: “frente, esquerda, direita”. Encaixado na sua cangalha subia bem alto um pau roliço, o “arrocho”. Na sua ponta uma fita, ora branca, ora vermelha. A branca significava “tropa vazia ou com carga leve”; a vermelha, “carga pesada”. Quando a tropa se aproximava de uma cava, o tropeiro subia o barranco para olhar a saída dela. Avistando outra tropa com fita vermelha, parava a sua e esperava a outra passar. Se fosse branca, a preferência era da sua. Os espelhos eram para refletir de longe o guia da outra tropa.
Continuaram os nomes. A cada um, uma expressão de deslumbramento e saudade: Despacho, Sereno, Realeza, Xodó, Soberano, Jeitoso, Pachola ... Aí o Didico fez outra pausa. Opa! Esse era o “burro de coice”, o que vinha atrás. Geralmente um dos mais velhos, mais lerdos, tinha que ser manso. Com uma carga um pouco menor, por cima dela levava a “cozinha”. O outros ... o Didico ficou agoniado por não se lembrar mais dos quatro que faltavam. Vou lembrar depois. Contou que o Jeitoso era um burro preto que foi vendido, tempos depois, para o Saneco (seu tio, lembrou ele). Na “Pereirinha”, lugarejo da região, continuou, havia uma fazenda com uma “indústria” de burros para atender aos tropeiros. Nosso conhecido Sílvio do Lindolfo por muitos anos foi o intermediário no comércio de burros na região.
Sem perceber, havia passado quase uma hora de prosa. E o Didico queria porque queria passar para o capítulo 2. A um dado momento, falou-se no Jornal das Lajes. Vi algumas páginas dele pregadas na parede. Mais que depressa ele atalhou: olha, se você precisar de algum número antigo, é só falar. Lá no meu sítio tenho uma coleção. Quando aparece alguém, sempre mostro alguma coisa do jornal.
Despedi-me. Momentos agradáveis. Sobretudo por conhecer um homem de fibra, obstinado trabalhador, articulado, bem informado, bom humor, de bem com a vida, apegado a sua terra, aos seus costumes, à sua história. Uma história de muitas saudades, encerrou emocionado o nosso Didico.
(agradeço ao Márcio Daniel de Sousa, o amigo Brizola, a descoberta e a indicação do Didico).
Aviação em Resende Costa
09 de Outubro de 2009, por Rosalvo Pinto 1
Parece bizarro falar em aviação em Resende Costa, uma cidade sobre uma grande laje, tendo ao seu redor apenas morros, vales e barrancos. Avião ali, só no céu, mesmo assim, olha lá, com risco de embicar e trombar na torre da Matriz. Um aeroporto? Nem sonho! Vou pegar uma carona nas aventuras aeronáuticas do Renato Morethson (edição 77). Quem leu a entrevista com ele viu lá que na década de cinquenta o prefeito Geraldo Monteiro tentou fazer um “campo de aviação” (como se dizia na época), sem sucesso. Afora isso, apenas dois fatos podem ligar a cidade à aviação: o pouso forçado de um “teco-teco-Paulistinha”, na década de 40 e as aventuras mirabolantes do Renato naqueles tempos, ambos fatos muito bem e gostosamente descritos por ele.
Não vou repetir a história do paulistinha, pois muita gente já se deliciou com ela na edição passada. Conversando com o Renato sobre esse assunto, ele me dizia, completando o que disse na entrevista, que até hoje não consegue entender como aquele piloto decolou naquele dia. Segundo o próprio piloto, era uma questão de honra, de vida ou de morte, sair dali com o avião. O terreno, além de curto, tinha obstáculos: touceiras, cupins, montes de terra de formigueiro etc. Ele pediu aos presentes ali que colocassem roupas brancas, sinalizando os obstáculos. Motor acelerado, ele saiu ziguezagueando pasto afora, contornando, aos trancos, os obstáculos. No último, o Renato pensou: agora ele fica, e até virou a cabeça para não ver o desastre. E não é que ele aprumou e subiu? Esse pouso forçado deve ter sido um acontecimento do século. Lembro-me sempre, entre as fotos de família, de uma foto desse avião pousado no meio do pasto da Fazenda das Lajes. Sinal de que meu pai esteve envolvido na história, ou, pelo menos, gostava de avião. E talvez tenha vindo daí o motivo inicial de minha paixão pela aviação.
Mas há outra ligação da cidade com a aviação. Quando eu entrei na escola (ou no Grupo, como se dizia), assumiu a turma do 1º. ano primário uma nova professora vinda de Belo Horizonte. Nem me lembro do nome de batismo dela, só me lembro de que era conhecida como Da. Tenga. Jovem, bonita e simpática, ela logo conquistou a turma e causou certo furor na escola, com interessantes inovações na arte da alfabetização. Causava até inveja nas outras turmas. Como tudo que é bom dura pouco, no meio do ano ela foi transferida para Belo Horizonte. Lembro-me da despedida, na última aula. E do aviso que ela deu: amanhã, quando passar por Resende Costa o avião da “ONTA”, vai ter uma surpresa para vocês. À noite, muitos alunos fomos até a Pensão do Osório (o casarão da atual Padaria) onde ela se hospedava. Todos os que foram voltaram com uma lembrancinha na mão. E fomos dormir na expectativa do dia seguinte. De manhã, os alunos da turma já estavam de plantão ali na Praça Dr. Costa Pinto, praça não calçada e com um pequeno barranco. Lá pelas nove da manhã, ouviu-se o ronco do avião. Excitação total, todos de olho no céu. Um barulhão e o aviãozinho passou em voo rasante. Quase roçando as rodas numa mangueira alta da horta do Sr. Totonho Gomes, soltou um objeto grande e sumiu no horizonte. E o pacotão de balas caiu numa das hortas ali do centro, para a alegria da meninada. Adeus, Da. Tenga!
Naquela época não havia ligação rodoviária entre São João del-Rei e Belo Horizonte e a ONTA, pequena empresa de aviação regional, ligava as duas cidades com um voo diário de ida e volta. Operava aeronaves monomotor com 2 tripulantes e 4 passageiros, que nós meninos gostávamos de apreciar sobrevoando a cidade diariamente. A empresa tinha outras linhas e chegou a ter de 10 a 12 aeronaves que, com o tempo, foram caindo, um a um, levando ao fim de suas atividades. O povo, sempre gozador, chegou a criar um trocadilho meio jocoso e tétrico para sua sigla, ONTA, do qual infelizmente não consigo me lembrar. Algo como o trem de São João del-Rei, da antiga RMV (Rede Mineira de Viação), que o povo traduzia em “Ruim, Mas Vai” ou “Rincha, Mula Veia”. .
Dialogando com a história do pouso forçado em Resende Costa, lembro-me de outro caso interessante. Lá no sul de Minas, salvo engano em Santa Rita do Jacutinga, contava-se um caso semelhante. Lá também ocorreu um pouso forçado, em um lugar ainda mais complicado do que o pastinho da história do Morethson. O piloto estava desesperado, não sabia o que fazer. Não tinha nem como correr alguns poucos metros para tentar levantar voo. Aí entrou em cena um dos roceiros que estavam por ali. Já de facão na mão, chamou o rapaz e disse: tenho uma idéia. A gente amarra uma corda no rabo do avião e a outra ponta naquela árvore ali. O senhor liga o motor na força total. Quando ele estiver querendo aprumar, doido pra voar, eu corto a corda. O piloto resolveu topar. Amarraram o avião. Acelerado ao máximo, o avião empinou o bico, fazendo força e balançando, como que querendo voar a todo custo. Uma facãozada certeira do roceiro e ele subiu e sumiu. Acredite quem quiser ...
Não vou repetir a história do paulistinha, pois muita gente já se deliciou com ela na edição passada. Conversando com o Renato sobre esse assunto, ele me dizia, completando o que disse na entrevista, que até hoje não consegue entender como aquele piloto decolou naquele dia. Segundo o próprio piloto, era uma questão de honra, de vida ou de morte, sair dali com o avião. O terreno, além de curto, tinha obstáculos: touceiras, cupins, montes de terra de formigueiro etc. Ele pediu aos presentes ali que colocassem roupas brancas, sinalizando os obstáculos. Motor acelerado, ele saiu ziguezagueando pasto afora, contornando, aos trancos, os obstáculos. No último, o Renato pensou: agora ele fica, e até virou a cabeça para não ver o desastre. E não é que ele aprumou e subiu? Esse pouso forçado deve ter sido um acontecimento do século. Lembro-me sempre, entre as fotos de família, de uma foto desse avião pousado no meio do pasto da Fazenda das Lajes. Sinal de que meu pai esteve envolvido na história, ou, pelo menos, gostava de avião. E talvez tenha vindo daí o motivo inicial de minha paixão pela aviação.
Mas há outra ligação da cidade com a aviação. Quando eu entrei na escola (ou no Grupo, como se dizia), assumiu a turma do 1º. ano primário uma nova professora vinda de Belo Horizonte. Nem me lembro do nome de batismo dela, só me lembro de que era conhecida como Da. Tenga. Jovem, bonita e simpática, ela logo conquistou a turma e causou certo furor na escola, com interessantes inovações na arte da alfabetização. Causava até inveja nas outras turmas. Como tudo que é bom dura pouco, no meio do ano ela foi transferida para Belo Horizonte. Lembro-me da despedida, na última aula. E do aviso que ela deu: amanhã, quando passar por Resende Costa o avião da “ONTA”, vai ter uma surpresa para vocês. À noite, muitos alunos fomos até a Pensão do Osório (o casarão da atual Padaria) onde ela se hospedava. Todos os que foram voltaram com uma lembrancinha na mão. E fomos dormir na expectativa do dia seguinte. De manhã, os alunos da turma já estavam de plantão ali na Praça Dr. Costa Pinto, praça não calçada e com um pequeno barranco. Lá pelas nove da manhã, ouviu-se o ronco do avião. Excitação total, todos de olho no céu. Um barulhão e o aviãozinho passou em voo rasante. Quase roçando as rodas numa mangueira alta da horta do Sr. Totonho Gomes, soltou um objeto grande e sumiu no horizonte. E o pacotão de balas caiu numa das hortas ali do centro, para a alegria da meninada. Adeus, Da. Tenga!
Naquela época não havia ligação rodoviária entre São João del-Rei e Belo Horizonte e a ONTA, pequena empresa de aviação regional, ligava as duas cidades com um voo diário de ida e volta. Operava aeronaves monomotor com 2 tripulantes e 4 passageiros, que nós meninos gostávamos de apreciar sobrevoando a cidade diariamente. A empresa tinha outras linhas e chegou a ter de 10 a 12 aeronaves que, com o tempo, foram caindo, um a um, levando ao fim de suas atividades. O povo, sempre gozador, chegou a criar um trocadilho meio jocoso e tétrico para sua sigla, ONTA, do qual infelizmente não consigo me lembrar. Algo como o trem de São João del-Rei, da antiga RMV (Rede Mineira de Viação), que o povo traduzia em “Ruim, Mas Vai” ou “Rincha, Mula Veia”. .
Dialogando com a história do pouso forçado em Resende Costa, lembro-me de outro caso interessante. Lá no sul de Minas, salvo engano em Santa Rita do Jacutinga, contava-se um caso semelhante. Lá também ocorreu um pouso forçado, em um lugar ainda mais complicado do que o pastinho da história do Morethson. O piloto estava desesperado, não sabia o que fazer. Não tinha nem como correr alguns poucos metros para tentar levantar voo. Aí entrou em cena um dos roceiros que estavam por ali. Já de facão na mão, chamou o rapaz e disse: tenho uma idéia. A gente amarra uma corda no rabo do avião e a outra ponta naquela árvore ali. O senhor liga o motor na força total. Quando ele estiver querendo aprumar, doido pra voar, eu corto a corda. O piloto resolveu topar. Amarraram o avião. Acelerado ao máximo, o avião empinou o bico, fazendo força e balançando, como que querendo voar a todo custo. Uma facãozada certeira do roceiro e ele subiu e sumiu. Acredite quem quiser ...