Peripécias de um perna-de-pau
11 de Outubro de 2011, por Rosalvo Pinto 0
Depois de escrever sobre tanta gente, hoje escrevo sobre mim. Também sou filho de Deus. Afinal, no tempero de nosso caráter, todos temos uma pitadinha de narcisismo. Não faz mal, nem é pecado. Na mitologia grega, o belo jovem Narciso, com muita sede após uma caçada, debruçou-se sobre o espelho límpido das águas de uma fonte e se viu. Vendo a própria imagem, apaixonou-se pelo próprio reflexo. Cumprindo a profecia do velho adivinho Tirésias, ele morreu vendo-se. Procurado, encontraram apenas uma delicada flor amarela, cujo centro estava rodeado de pétalas brancas. Era a flor “narciso”. O narcisismo faz parte do nosso aparelho de autodefesa, uma característica básica das espécies, em sua strugle for life, a luta pela vida, conforme ensinou Darwin. Essa luta leva à competição entre as espécies e entre os membros de uma espécie. O esporte é uma das manifestações dessa competição. Quem não quer vencer, ser campeão de alguma coisa?
Mas volto ao meu narcisismo. Em matéria de esporte fui sempre um zero à esquerda. Nunca ganhei nada. Sempre fui a negação de qualquer esporte. Tentei quanto pude, mas nunca passei de um reles tapa-buraco.Desde menino, nas peladinhas com bolas de meia nas ruas de Resende Costa. Depois, já adulto, nos cursos de filosofia e teologia do seminário, esse era o meu drama: em qualquer pelada ou em torneios organizados, jamais fui o preferido, mas sempre o preterido. Trabalhando como professor e educador nos seminários e colégios salesianos, o máximo que ousei foi ser técnico de futebol, mas de meninos. E um técnico que sequer sabia como se chuta uma bola.
As peladas tinham uma forma simples e rápida de organização. Dois dos melhores jogadores assumiam a função de líderes. Tirava-se o par-ou-ímpar para ver qual deles começava a escolher os jogadores. Nesse momento começava minha tortura. Até me escondia de mim mesmo, já sabendo do desfecho da seleção. Um pra lá, outro pra cá e seguia-se a escolha, em grau de performance dos jogadores. O desfecho era previsto: eu era o último a ser escolhido. Humilde e resignadamente entrava em campo.
Às vezes tinha que ouvir o capitão do time me dizer: olha, você entra aí, mas nem precisa chutar a bola. Basta ficar por ali na intermediária, pra lá e pra cá, apenas atrapalhando os adversários. Ou então, de cara eu recebia outra ordem: você vai ser o “alfo”, alfo esquerdo! Mesmo sendo destro, ainda por cima me mandavam para o lado esquerdo. Não ia alterar em nada.
Alfo (half, meio, médio, no inglês) era a posição de meio de campo, à frente dos beques (back) e tendo, entre si, o centeralfo (centre half), uma das posições mais importantes. Lá na frente estavam, na direita e na esquerda, os dois “pontas” e os dois “meias” e no centro, o centefor (centre forward). Naturalmente os alfos tinham seu papel na equipe, mas, no processo de escolha, era para essa posição que eram empurrados os dois últimos escolhidos. Por serem os piores, nem defendiam e nem atacavam. Ficavam zanzando por ali, fazendo número, pois os demais não lhes passavam a bola: sabiam que iriam perdê-la. Ou tomada pelo adversário, ou chutada a esmo, para onde apontasse o dedão do pé, nas peladas descalço, ou, tempos depois, o bico do “kichute”. Consolo desses alfos: pelo menos assistiam à partida de dentro do campo. Preferivelmente sem tocar na bola, porque corriam o risco de serem xingados.
Ao cursar filosofia, no seminário salesiano, uma agravante. Por ser uma congregação religiosa mais conservadora e “fechada”, como se dizia, não era permitido tirar a batina para praticar esportes. Imaginem jogar futebol, basquete, voleibol envergando uma pesada batina preta, por cima da camisa e da calça comprida. Nadar, então, nem pensar. O máximo permitido era enfiar a mão pela abertura do bolso falso da batina, chegar até a barra e puxá-la para cima, travando-a no bolso falso. Se alfos como eu não jogavam nada, pior ainda embaraçados em uma batina!
No curso de teologia, em São Paulo, na década de 60, outra agravante. Entre os quase 100 estudantes de todo o Brasil, havia muitos craques de bola. Ainda se jogava de batina ou, modernizando-se um pouco, de guarda-pó. Para não prejudicar os craques, éramos divididos em três categorias, segundo o desempenho futebolístico de cada um: fifinha, fifa e fifona. Claro que eu era da fifinha, talvez o último entre os piores. Foi o golpe mortal. Depois disso dependurei as chuteiras e abandonei gloriosamente o futebol. Até semanas atrás, quando me chamaram para uma pelada, lá no povoado da Boa Vista. Para fazer número, acabei aceitando. Mas tinha que ser de goleiro. Pelo menos servi para buscar a bola no mato ou no fundo da rede.
(Agradeço à Eloísa Sari, minha sobrinha, a inspiração para este texto. Lá dos EEUU, onde está terminando seu doutorado, por e-mail ela também se queixava de que, “na escola e na universidade ela era sempre a última a ser escolhida pros times de esportes, que muitas vezes preferiam ter menos jogadores do que correr o risco de colocá-la no time”. Mal de muitos, consolo é!)
Mas volto ao meu narcisismo. Em matéria de esporte fui sempre um zero à esquerda. Nunca ganhei nada. Sempre fui a negação de qualquer esporte. Tentei quanto pude, mas nunca passei de um reles tapa-buraco.Desde menino, nas peladinhas com bolas de meia nas ruas de Resende Costa. Depois, já adulto, nos cursos de filosofia e teologia do seminário, esse era o meu drama: em qualquer pelada ou em torneios organizados, jamais fui o preferido, mas sempre o preterido. Trabalhando como professor e educador nos seminários e colégios salesianos, o máximo que ousei foi ser técnico de futebol, mas de meninos. E um técnico que sequer sabia como se chuta uma bola.
As peladas tinham uma forma simples e rápida de organização. Dois dos melhores jogadores assumiam a função de líderes. Tirava-se o par-ou-ímpar para ver qual deles começava a escolher os jogadores. Nesse momento começava minha tortura. Até me escondia de mim mesmo, já sabendo do desfecho da seleção. Um pra lá, outro pra cá e seguia-se a escolha, em grau de performance dos jogadores. O desfecho era previsto: eu era o último a ser escolhido. Humilde e resignadamente entrava em campo.
Às vezes tinha que ouvir o capitão do time me dizer: olha, você entra aí, mas nem precisa chutar a bola. Basta ficar por ali na intermediária, pra lá e pra cá, apenas atrapalhando os adversários. Ou então, de cara eu recebia outra ordem: você vai ser o “alfo”, alfo esquerdo! Mesmo sendo destro, ainda por cima me mandavam para o lado esquerdo. Não ia alterar em nada.
Alfo (half, meio, médio, no inglês) era a posição de meio de campo, à frente dos beques (back) e tendo, entre si, o centeralfo (centre half), uma das posições mais importantes. Lá na frente estavam, na direita e na esquerda, os dois “pontas” e os dois “meias” e no centro, o centefor (centre forward). Naturalmente os alfos tinham seu papel na equipe, mas, no processo de escolha, era para essa posição que eram empurrados os dois últimos escolhidos. Por serem os piores, nem defendiam e nem atacavam. Ficavam zanzando por ali, fazendo número, pois os demais não lhes passavam a bola: sabiam que iriam perdê-la. Ou tomada pelo adversário, ou chutada a esmo, para onde apontasse o dedão do pé, nas peladas descalço, ou, tempos depois, o bico do “kichute”. Consolo desses alfos: pelo menos assistiam à partida de dentro do campo. Preferivelmente sem tocar na bola, porque corriam o risco de serem xingados.
Ao cursar filosofia, no seminário salesiano, uma agravante. Por ser uma congregação religiosa mais conservadora e “fechada”, como se dizia, não era permitido tirar a batina para praticar esportes. Imaginem jogar futebol, basquete, voleibol envergando uma pesada batina preta, por cima da camisa e da calça comprida. Nadar, então, nem pensar. O máximo permitido era enfiar a mão pela abertura do bolso falso da batina, chegar até a barra e puxá-la para cima, travando-a no bolso falso. Se alfos como eu não jogavam nada, pior ainda embaraçados em uma batina!
No curso de teologia, em São Paulo, na década de 60, outra agravante. Entre os quase 100 estudantes de todo o Brasil, havia muitos craques de bola. Ainda se jogava de batina ou, modernizando-se um pouco, de guarda-pó. Para não prejudicar os craques, éramos divididos em três categorias, segundo o desempenho futebolístico de cada um: fifinha, fifa e fifona. Claro que eu era da fifinha, talvez o último entre os piores. Foi o golpe mortal. Depois disso dependurei as chuteiras e abandonei gloriosamente o futebol. Até semanas atrás, quando me chamaram para uma pelada, lá no povoado da Boa Vista. Para fazer número, acabei aceitando. Mas tinha que ser de goleiro. Pelo menos servi para buscar a bola no mato ou no fundo da rede.
(Agradeço à Eloísa Sari, minha sobrinha, a inspiração para este texto. Lá dos EEUU, onde está terminando seu doutorado, por e-mail ela também se queixava de que, “na escola e na universidade ela era sempre a última a ser escolhida pros times de esportes, que muitas vezes preferiam ter menos jogadores do que correr o risco de colocá-la no time”. Mal de muitos, consolo é!)
O dia em que a tecnologia agrícola chegou a Resende Costa
13 de Setembro de 2011, por Rosalvo Pinto 0
Corria o ano de 1967. Fazendeiros e pequenos agricultores, inclusive os sofridos meeiros, foram surpreendidos com o boato: chegou uma máquina de plantar arroz na cidade. Para uma época em que ainda se sofria para plantar esse cereal, em pequenas vargens, a novidade não podia ser mais alvissareira.
Vale lembrar um pouco da história da economia rural de Resende Costa. Até meados do século passado, a elite econômica da cidade era integrada pelos maiores fazendeiros de então. Predominavam ainda os latifúndios, ao lado de pequenos produtores rurais que praticavam uma agricultura de sobrevivência e de um grande número de meeiros, que faziam da “roça” um complemento necessário aos seus minguados ganhos, de autônomos ou de assalariados. Sempre andando a pé, ferramentas às costas, o embornal com o caldeirãozinho da boia, tocavam suas roças pelas madrugadas, pelos fins de tarde e de semana.
Pois bem, foram esses últimos os primeiros a ver a miraculosa máquina. Aí entrou em cena o sô Otacílio do Beramuro (antigo bairro do Beira-muro), pai do Jorge Sapateiro. Ele imaginou que essa máquina poderia ser uma ajuda para os laboriosos meeiros. Sô Otacílio, além de tropeiro viajante e negociante, tocava também sua roça. Lá no Potreiro, onde muitos meeiros também labutavam.
Sô Otacílio reuniu seus vizinhos para conhecer a tal da máquina. Lá estavam o Góes (meu pai) e seus irmãos, o Geraldo Porteiro e o Alfredo Carcereiro, o Chico Teodoro (pai do João da Dodora), o Zé Procópio (da sá Olinda do Beramuro), o Heitor da Sá Albertina, o Titide do Mané Cassiano, o compadre Benedito Silva, o Antônio Ribeiro (conhecido como Antônio Empenho) e um menino de 11 anos, que espiava, curioso, aquela reunião de meeiros. Pairava um clima de expectativa.
Finalmente chegou sô Otacílio com os dois rapazes da esperada máquina. Sem dar muita bola aos presentes, meio exibidos e um tanto metidos, logo botaram em funcionamento a estranha ferramenta. Barulhenta, ela lembrava as matracas da Semana Santa. E, de fato, esse era o nome dela: “matraca”, ou “saraquá”. Ela ia e vinha fazendo as “leras” (leiras, sulcos), retinhas, abrindo as covas, jogando o adubo e soltando os grãozinhos de arroz, tudo ao mesmo tempo. Em duas horas estava plantado o arroz da roça do sô Otacílio, que gastaria um ou dois dias para fazer o mesmo.
Talvez tenha sido a primeira invenção mecanizada na agricultura de Resende Costa. Boquiabertos diante daquela prodigiosa matraca, comentavam entre si: “Gente, como é possível uma coisa dessas?!” Meio de longe, braços cruzados, o seu Góes emendava: “eh! É uma máquina importante!”
Pois é, ali naquele miolo do Potreiro, onde cada um tinha sua pequena gleba, aqueles meeiros complementavam o sustento de suas famílias numerosas. E que complemento!: além do arroz, do feijão e do milho, que não podiam faltar, vinha um rosário de deliciosos produtos, a maioria deles espalhados entre o três, como as abóboras, abobrinhas, abóboras d’água, morangas e mugangos, dos quais saia a saborosa cambuquira, os pepinos, o quiabo. Das grotas vinha a samambaia e dos brejos o muxoco. A serraia era nativa: para completar o caldeirão do almoço, os meeiros levavam a gordura para afogá-la na roça. No tempo certo vinha o milho verde, do mingau e da pamonha. Tudo isso era levado para a vila, onde estavam os pés de chuchu e de ora-pro-nobis alastrado pelos muros de pedra, a taioba, os umbigos de banana (que a gente falava “imbigo”), as galinhas e os frangos nos galinheiros e, o que nunca faltava, o porquinho no chiqueiro. Imagine-se a gostosura disso tudo!
Além das roças, rolavam no Potreiro as estórias e as assombrações. O Tio Geraldo gostava de plantar no “Rapa-goela”. Quem ia do Potreiro para o Rio do Vau, tinha que passar por uma cava escura, cheia de mato. Dava sempre um friozinho de medo. Diziam que lá se ouvia um barulho estranho e amedrontador, como se alguém estivesse rapando ou raspando a goela.
O menino de 11 anos que presenciou e testemunhou a cena histórica do primeiro implemento agrícola moderno de Resende Costa, a famosa “matraca”, chama-se Marcos José Ferreira, o Marquinho do Rancho Novo, filho do Zé Ferreira do Morro de Pedra e neto do sô Otacílio do Beramuro. A ele agradeço a sugestão do texto e as informações para sua escrita, vindas lá dos fundos do Potreiro de sua boa memória. No texto entrou também a colher de pau do meu irmão, o João Cariá. Mas o texto eu o dedico ao Góes (Antônio Pinto de Góes e Lara), meu pai, homem que nunca pôde ter um palmo de terra, mas em todos os anos, até sua morte em 1978, plantava sua rocinha. Era o incansável meeiro do Potreiro, do Vau, da Floresta ou do Quebra-cuié. Como dizia um seu ex-colega dos tempos de exército, o soldado Zacarias Guimarães: “O soldado Lara era baixinho, mas... eta Larinha danado, sô!”.
Vale lembrar um pouco da história da economia rural de Resende Costa. Até meados do século passado, a elite econômica da cidade era integrada pelos maiores fazendeiros de então. Predominavam ainda os latifúndios, ao lado de pequenos produtores rurais que praticavam uma agricultura de sobrevivência e de um grande número de meeiros, que faziam da “roça” um complemento necessário aos seus minguados ganhos, de autônomos ou de assalariados. Sempre andando a pé, ferramentas às costas, o embornal com o caldeirãozinho da boia, tocavam suas roças pelas madrugadas, pelos fins de tarde e de semana.
Pois bem, foram esses últimos os primeiros a ver a miraculosa máquina. Aí entrou em cena o sô Otacílio do Beramuro (antigo bairro do Beira-muro), pai do Jorge Sapateiro. Ele imaginou que essa máquina poderia ser uma ajuda para os laboriosos meeiros. Sô Otacílio, além de tropeiro viajante e negociante, tocava também sua roça. Lá no Potreiro, onde muitos meeiros também labutavam.
Sô Otacílio reuniu seus vizinhos para conhecer a tal da máquina. Lá estavam o Góes (meu pai) e seus irmãos, o Geraldo Porteiro e o Alfredo Carcereiro, o Chico Teodoro (pai do João da Dodora), o Zé Procópio (da sá Olinda do Beramuro), o Heitor da Sá Albertina, o Titide do Mané Cassiano, o compadre Benedito Silva, o Antônio Ribeiro (conhecido como Antônio Empenho) e um menino de 11 anos, que espiava, curioso, aquela reunião de meeiros. Pairava um clima de expectativa.
Finalmente chegou sô Otacílio com os dois rapazes da esperada máquina. Sem dar muita bola aos presentes, meio exibidos e um tanto metidos, logo botaram em funcionamento a estranha ferramenta. Barulhenta, ela lembrava as matracas da Semana Santa. E, de fato, esse era o nome dela: “matraca”, ou “saraquá”. Ela ia e vinha fazendo as “leras” (leiras, sulcos), retinhas, abrindo as covas, jogando o adubo e soltando os grãozinhos de arroz, tudo ao mesmo tempo. Em duas horas estava plantado o arroz da roça do sô Otacílio, que gastaria um ou dois dias para fazer o mesmo.
Talvez tenha sido a primeira invenção mecanizada na agricultura de Resende Costa. Boquiabertos diante daquela prodigiosa matraca, comentavam entre si: “Gente, como é possível uma coisa dessas?!” Meio de longe, braços cruzados, o seu Góes emendava: “eh! É uma máquina importante!”
Pois é, ali naquele miolo do Potreiro, onde cada um tinha sua pequena gleba, aqueles meeiros complementavam o sustento de suas famílias numerosas. E que complemento!: além do arroz, do feijão e do milho, que não podiam faltar, vinha um rosário de deliciosos produtos, a maioria deles espalhados entre o três, como as abóboras, abobrinhas, abóboras d’água, morangas e mugangos, dos quais saia a saborosa cambuquira, os pepinos, o quiabo. Das grotas vinha a samambaia e dos brejos o muxoco. A serraia era nativa: para completar o caldeirão do almoço, os meeiros levavam a gordura para afogá-la na roça. No tempo certo vinha o milho verde, do mingau e da pamonha. Tudo isso era levado para a vila, onde estavam os pés de chuchu e de ora-pro-nobis alastrado pelos muros de pedra, a taioba, os umbigos de banana (que a gente falava “imbigo”), as galinhas e os frangos nos galinheiros e, o que nunca faltava, o porquinho no chiqueiro. Imagine-se a gostosura disso tudo!
Além das roças, rolavam no Potreiro as estórias e as assombrações. O Tio Geraldo gostava de plantar no “Rapa-goela”. Quem ia do Potreiro para o Rio do Vau, tinha que passar por uma cava escura, cheia de mato. Dava sempre um friozinho de medo. Diziam que lá se ouvia um barulho estranho e amedrontador, como se alguém estivesse rapando ou raspando a goela.
O menino de 11 anos que presenciou e testemunhou a cena histórica do primeiro implemento agrícola moderno de Resende Costa, a famosa “matraca”, chama-se Marcos José Ferreira, o Marquinho do Rancho Novo, filho do Zé Ferreira do Morro de Pedra e neto do sô Otacílio do Beramuro. A ele agradeço a sugestão do texto e as informações para sua escrita, vindas lá dos fundos do Potreiro de sua boa memória. No texto entrou também a colher de pau do meu irmão, o João Cariá. Mas o texto eu o dedico ao Góes (Antônio Pinto de Góes e Lara), meu pai, homem que nunca pôde ter um palmo de terra, mas em todos os anos, até sua morte em 1978, plantava sua rocinha. Era o incansável meeiro do Potreiro, do Vau, da Floresta ou do Quebra-cuié. Como dizia um seu ex-colega dos tempos de exército, o soldado Zacarias Guimarães: “O soldado Lara era baixinho, mas... eta Larinha danado, sô!”.
“Casos e causos do Vovô Totonho”
17 de Agosto de 2011, por Rosalvo Pinto 0
Li, agradeço e agora dialogo com senhor Alair Coêlho de Resende. Agradeço-lhe o presente e o prazer que me deu a leitura do seu “Casos e Causos do Vovô Totonho da Chapada”. Veio de longe, impresso lá em Palmas (Tocantins). O local da edição já inspira e sugere “palmas” pelo seu trabalho.
Há dias queria escrever ou telefonar-lhe. Preferi compartilhar aqui com meus leitores a beleza do livro. Teria muito a comentar sobre ele, mas o espaço do meu “causos e cousas” não me permite.
Começo pela capa. Bonita e inspiradora. Não há como pensar Resende Costa sem que emerja da memória a silhueta da imponente e altaneira Matriz de Nossa Senhora da Penha de França. Independente de quaisquer sentimentos religiosos. Como todo leitor tem o direito de entender e interpretar textos e imagens como quiser, eu vi assentado naquela meia poltrona vazia a figura simpática, serena e sisuda do Totonho da Chapada. Pernas cruzadas, um pito entre os dedos (acertei?), contando aos filhos o causo do “Duende do Açude”. Mas minha imaginação foi ainda mais audaz: cheguei a ver uma enxada naquele cenário. Tal como meu saudoso pai, o “cumpadre Góes”, também o “cumpadre Totonho” passou pela vida carregando uma enxada. Ambos, vizinhos e cumpadres, ligados pela amizade, pelo cultivo da terra e pelo cuidado com as estradas do município.
Entro no livro. O capítulo 1 liga o antigo Arraial da Lage ao movimento da Inconfidência e ao futuro nome da cidade. O 2 apresenta a cidade no século passado. Aí entra em cena a fantástica memória do autor, recuperando fatos e nomes. Já se fala na Banda de Música Santa Cecília, no teatro e no grêmio literário. Este, acredite-se, recebeu como doação do Cel. João Evangelista de Souza Maia o lote ali nos Quatro Cantos, no qual se construiu um moderno bangalô que ficou conhecido, até hoje, como “Grêmio. Alair ressalta a figura folclórica do “Sô Afonso ferreiro”, que chegou a construir um caminhãozinho apelidado de “Pipoca”, que era dirigido pelo Antero, irmão do Zé Pedro Gancho.
Os capítulos 3, 4 e 5 tratam da participação dos resende-costenses nas guerras, desde a Guerra do Paraguai, passando pela campanha de Canudos e terminando com as duas grandes guerras. Esses capítulos envolvem antepassados queridos e informações curiosas.
O capítulo 6 trata da vida cultural de Resende Costa, começando pela educação, passando pelas produções literárias e tentativas de se criar uma imprensa e culminando com uma fantástica recuperação do movimento teatral. Aqui o autor deu asas à sua memória e à sua saudade: também pudera, ele fez parte daquele, segundo ele, “momento sublime da cultura de Resende Costa”, do qual “jamais nos esqueceremos”. Dele fizeram parte sua primeira esposa, a Socorro do Sô Bico e sua irmã, a Maria da Penha Resende. Nesse capítulo delirei-me com a precisa narrativa da passagem por Resende Costa de um grupo de russos, chamados “Cossacos”, que encantou a população com seus malabarismos e com suas músicas e instrumentos russos. Eu nascia naquele ano (1942), mas como menino ouvi muito falar desse evento.
Outra boa contribuição para a recuperação da memória da cidade está no capítulo 7, no qual o Alair recupera a história do esporte.
O capítulo 8 é dedicado pelo autor à descrição de sua vida familiar: avós, pais, irmãos, suas duas esposas, Socorro Freitas (falecida em 1985) e, posteriormente, Maria Olga Resende Coelho. Entretanto, seus filhos (do primeiro casamento) e netos merecem um destaque especial. Aliás, mais que destaque, eu diria que em todo o livro perpassa e extravasa um grande amor do autor à sua família. No entanto, é às esposas e aos filhos (“... que amamos com toda força de nosso amor”), netos e noras que ele dedica sua obra.
Do capítulo 9 ao 15, o autor reconta os casos “que Vovô Totonho contava”. A menção ao “vovô” reafirma que os “casos e causos” foram escritos para seus filhos e netos. Esses contos foram ouvidos pelo autor no tempo da bucólica Resende Costa de antigamente: “Era, portanto, à luz de lamparinas a querosene ou lampião que nós ficávamos ‘na hora do café da noite’, ouvindo as estórias que Vovô Totonho contava, com artística habilidade e é destas estórias que nos ocuparemos a seguir”. Os contos: Galamonha, Cada qual como fez-fez, O menino Jesus e o palhaço, A engenhoca de fazer sal, O duende do Açude, No jardim da vovó Abigail tinha uma fada”. Esses títulos me deram a sensação de estar lendo o nosso Guimarães Rosa. No último conto o narrador vovô Totonho cede sua vez para a Vovó Abigail. E desfaz-se, ao final, o mistério das fadas. Deixo o desfecho para a curiosidade dos leitores.
Congratulações ao Alair, pela excelente contribuição para a história de nossa Resende Costa. Uma homenagem de amor à figura de um grande resende-costense, vindo lá da região da Chapada para Resende Costa e posteriormente para São João del-Rei, onde veio a falecer. O Guimarães Rosa bem poderia escrever sobre o seu túmulo: “Quando eu morrer – que me enterrem – na beira do Chapadão – contente com minha terra – cansado de tanta guerra – crescido de coração!”
Há dias queria escrever ou telefonar-lhe. Preferi compartilhar aqui com meus leitores a beleza do livro. Teria muito a comentar sobre ele, mas o espaço do meu “causos e cousas” não me permite.
Começo pela capa. Bonita e inspiradora. Não há como pensar Resende Costa sem que emerja da memória a silhueta da imponente e altaneira Matriz de Nossa Senhora da Penha de França. Independente de quaisquer sentimentos religiosos. Como todo leitor tem o direito de entender e interpretar textos e imagens como quiser, eu vi assentado naquela meia poltrona vazia a figura simpática, serena e sisuda do Totonho da Chapada. Pernas cruzadas, um pito entre os dedos (acertei?), contando aos filhos o causo do “Duende do Açude”. Mas minha imaginação foi ainda mais audaz: cheguei a ver uma enxada naquele cenário. Tal como meu saudoso pai, o “cumpadre Góes”, também o “cumpadre Totonho” passou pela vida carregando uma enxada. Ambos, vizinhos e cumpadres, ligados pela amizade, pelo cultivo da terra e pelo cuidado com as estradas do município.
Entro no livro. O capítulo 1 liga o antigo Arraial da Lage ao movimento da Inconfidência e ao futuro nome da cidade. O 2 apresenta a cidade no século passado. Aí entra em cena a fantástica memória do autor, recuperando fatos e nomes. Já se fala na Banda de Música Santa Cecília, no teatro e no grêmio literário. Este, acredite-se, recebeu como doação do Cel. João Evangelista de Souza Maia o lote ali nos Quatro Cantos, no qual se construiu um moderno bangalô que ficou conhecido, até hoje, como “Grêmio. Alair ressalta a figura folclórica do “Sô Afonso ferreiro”, que chegou a construir um caminhãozinho apelidado de “Pipoca”, que era dirigido pelo Antero, irmão do Zé Pedro Gancho.
Os capítulos 3, 4 e 5 tratam da participação dos resende-costenses nas guerras, desde a Guerra do Paraguai, passando pela campanha de Canudos e terminando com as duas grandes guerras. Esses capítulos envolvem antepassados queridos e informações curiosas.
O capítulo 6 trata da vida cultural de Resende Costa, começando pela educação, passando pelas produções literárias e tentativas de se criar uma imprensa e culminando com uma fantástica recuperação do movimento teatral. Aqui o autor deu asas à sua memória e à sua saudade: também pudera, ele fez parte daquele, segundo ele, “momento sublime da cultura de Resende Costa”, do qual “jamais nos esqueceremos”. Dele fizeram parte sua primeira esposa, a Socorro do Sô Bico e sua irmã, a Maria da Penha Resende. Nesse capítulo delirei-me com a precisa narrativa da passagem por Resende Costa de um grupo de russos, chamados “Cossacos”, que encantou a população com seus malabarismos e com suas músicas e instrumentos russos. Eu nascia naquele ano (1942), mas como menino ouvi muito falar desse evento.
Outra boa contribuição para a recuperação da memória da cidade está no capítulo 7, no qual o Alair recupera a história do esporte.
O capítulo 8 é dedicado pelo autor à descrição de sua vida familiar: avós, pais, irmãos, suas duas esposas, Socorro Freitas (falecida em 1985) e, posteriormente, Maria Olga Resende Coelho. Entretanto, seus filhos (do primeiro casamento) e netos merecem um destaque especial. Aliás, mais que destaque, eu diria que em todo o livro perpassa e extravasa um grande amor do autor à sua família. No entanto, é às esposas e aos filhos (“... que amamos com toda força de nosso amor”), netos e noras que ele dedica sua obra.
Do capítulo 9 ao 15, o autor reconta os casos “que Vovô Totonho contava”. A menção ao “vovô” reafirma que os “casos e causos” foram escritos para seus filhos e netos. Esses contos foram ouvidos pelo autor no tempo da bucólica Resende Costa de antigamente: “Era, portanto, à luz de lamparinas a querosene ou lampião que nós ficávamos ‘na hora do café da noite’, ouvindo as estórias que Vovô Totonho contava, com artística habilidade e é destas estórias que nos ocuparemos a seguir”. Os contos: Galamonha, Cada qual como fez-fez, O menino Jesus e o palhaço, A engenhoca de fazer sal, O duende do Açude, No jardim da vovó Abigail tinha uma fada”. Esses títulos me deram a sensação de estar lendo o nosso Guimarães Rosa. No último conto o narrador vovô Totonho cede sua vez para a Vovó Abigail. E desfaz-se, ao final, o mistério das fadas. Deixo o desfecho para a curiosidade dos leitores.
Congratulações ao Alair, pela excelente contribuição para a história de nossa Resende Costa. Uma homenagem de amor à figura de um grande resende-costense, vindo lá da região da Chapada para Resende Costa e posteriormente para São João del-Rei, onde veio a falecer. O Guimarães Rosa bem poderia escrever sobre o seu túmulo: “Quando eu morrer – que me enterrem – na beira do Chapadão – contente com minha terra – cansado de tanta guerra – crescido de coração!”
O último voo
12 de Julho de 2011, por Rosalvo Pinto 0
Hoje estou voando longe de Resende Costa. Um outro voo me obriga a fazer isso.
Abrindo o site do Centro de Estudos Aeronáuticos (CEA), do Departamento de Engenharia Mecânica da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), fiquei ciente do falecimento do professor Cláudio Barros. Vou lendo os títulos das muitas mensagens de professores, alunos e amigos referentes ao evento: “Cláudio, mais que um engenheiro, um conselheiro”; “O amigo do CEA”; “Derradeiro voo do nosso querido Cláudio Pinto Barros”; “Cláudio, simplesmente Cláudio”; “Adeus ao nosso querido Cláudio Barros”; “Adeus a um pequeno grande homem: Cláudio Barros”; “Cláudio Barros: um homem a ser lembrado para sempre” e seguem-se outros comentários.
Na verdade, devo confessar que o título do meu texto foi, de certa forma, plagiado de alguma das mensagens. Não importa: não haveria um título mais emblemático do que esse. As mensagens estão entremeadas com fotos dos “filhos” e “netos” do Cláudio: o CEA-205 CB-9 Curumim, um dos caçulas (o CB é de “Cláudio Barros”), o CEA-308, quatro vezes recordista internacional de velocidade em sua categoria, o CB-10 ACS100 Sora; o CEA 309 Mehari, entre tantos outros aviões nascidos na prancheta do engenheiro Cláudio Barros e de seus alunos.
Na sexta, dia primeiro, assim de repente, o professor Cláudio Pinto Barros, aos 73 anos, fez seu último voo. Decolou silencioso de BH com destino à eternidade. Bateu seu último recorde, o de altitude. Levou consigo inúmeros projetos, importantes prêmios. Quase 50 anos de dedicação à aeronáutica, à criação e direção do CEA e, sobretudo, aos seus centenas de alunos, hoje espalhados pelo Brasil, dedicando-se à arte e à técnica da aeronáutica.
O CEA, árdua e corajosamente fundado pelo Cláudio 48 anos atrás, foi o primeiro no Brasil a oferecer o curso de engenharia aeronáutica, afora o curso do CTA/ITA, em São José dos Campos. Para criar o curso teve que lutar tenazmente contra a oposição dos militares da Aeronáutica, que não admitiam a existência de outro curso além do ITA. Se hoje temos no Brasil o terceiro maior fabricante mundial de jatos comerciais, a Embraer, é também porque ali estão o espírito e a contribuição do Cláudio Barros. Muitos de seus alunos estão na empresa de São José dos Campos, inclusive em postos relevantes. Tempos atrás esses seus alunos se reuniram na empresa para prestar uma homenagem ao seu ilustre mestre.
Sempre fui um apaixonado pela aeronáutica. O sonho que não pude realizar, realizou-o o meu filho Renato, engenheiro aeronáutico, atualmente há 13 anos na Embraer. Foi aluno e admirador do Cláudio. Posso dizer, com uma pontinha de orgulho, que também eu o fui. Quando cursava a disciplina “Projeto de aeronaves”, o Renato pediu ao Cláudio autorização para eu participar das aulas como ouvinte. Muito antes disso eu já havia conhecido e admirado o “Curumim” em uma exposição da UFMG e me intrigava saber que aqui em BH se podia construir um avião como aquele.
Nas “Bienais Brasileiras de Design/categoria aeronaves” de 87 e 92, o CEA arrebatou os primeiros lugares, com os aviões CB-7 Vésper e CB-9 Curumim, respectivamente, desbancando, inclusive, outros projetos apresentados pela concorrente Embraer.
Como disse o Renato em sua mensagem no site, “perdeu também o Brasil um homem de visão e espírito empreendedor e que teve a coragem de fazer o que era preciso e a sabedoria pra fazê-lo. Seus feitos, comparáveis aos de outros como Casimiro Montenegro [fundador do CTA/ITA], são a garantia de que seu legado sobreviverá por muitas e gerações”.
Nosso Jornal das Lajes nunca acolheu em suas páginas uma matéria específica sobre aeronáutica. Talvez, as peripécias do nosso conterrâneo, o Renato Morethson, outro apaixonado pelos aviões na década de 40, com seu “Paulistinha” e seus voos rasantes sobre Resende Costa, jogando propagandas e jornais. Por isso, seja este texto também uma derradeira homenagem ao grande professor, ousado, visionário e benemérito. Neste país das contradições e da inversão de valores gastam-se somas fabulosas, horas de televisão, páginas inteiras de jornais e salários astronômicos para a badalação e a babação com jogadores de futebol ou com duplas de cantores de música pseudo-sertaneja. Cientistas, pesquisadores e gênios da envergadura de um Cláudio Barros são mal remunerados, despercebidos e ficam esquecidos. Um dos principais diários de BH dedicou uma página inteira, colorida, a uma cantora de música popular e não dedicou sequer uma linha à memória do ilustre professor Cláudio.
O engenheiro Paulo Iscold, seu aluno, que o sucedeu na direção do CEA, assim dele se despede em sua mensagem do site do CEA:
“Cláudio, vá com Deus, suba com asas como águia, porque você sempre esperou no Senhor! O CEA hoje chora a sua ida, mas vamos continuar tocando isto aqui e honrando seu nome! Voaremos cada vez mais alto, cada vez mais longe e cada vez mais veloz. Eu farei o possível para manter a chama e a alegria do, como você sempre dizia, melhor lugar do mundo!”
(Para os leitores que se interessarem em conhecer o CEA e seus projetos, bem como os textos sobre o professor Barros, basta acessar o site http://www.demec.ufmg.br/Cea/principal.html)
Abrindo o site do Centro de Estudos Aeronáuticos (CEA), do Departamento de Engenharia Mecânica da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), fiquei ciente do falecimento do professor Cláudio Barros. Vou lendo os títulos das muitas mensagens de professores, alunos e amigos referentes ao evento: “Cláudio, mais que um engenheiro, um conselheiro”; “O amigo do CEA”; “Derradeiro voo do nosso querido Cláudio Pinto Barros”; “Cláudio, simplesmente Cláudio”; “Adeus ao nosso querido Cláudio Barros”; “Adeus a um pequeno grande homem: Cláudio Barros”; “Cláudio Barros: um homem a ser lembrado para sempre” e seguem-se outros comentários.
Na verdade, devo confessar que o título do meu texto foi, de certa forma, plagiado de alguma das mensagens. Não importa: não haveria um título mais emblemático do que esse. As mensagens estão entremeadas com fotos dos “filhos” e “netos” do Cláudio: o CEA-205 CB-9 Curumim, um dos caçulas (o CB é de “Cláudio Barros”), o CEA-308, quatro vezes recordista internacional de velocidade em sua categoria, o CB-10 ACS100 Sora; o CEA 309 Mehari, entre tantos outros aviões nascidos na prancheta do engenheiro Cláudio Barros e de seus alunos.
Na sexta, dia primeiro, assim de repente, o professor Cláudio Pinto Barros, aos 73 anos, fez seu último voo. Decolou silencioso de BH com destino à eternidade. Bateu seu último recorde, o de altitude. Levou consigo inúmeros projetos, importantes prêmios. Quase 50 anos de dedicação à aeronáutica, à criação e direção do CEA e, sobretudo, aos seus centenas de alunos, hoje espalhados pelo Brasil, dedicando-se à arte e à técnica da aeronáutica.
O CEA, árdua e corajosamente fundado pelo Cláudio 48 anos atrás, foi o primeiro no Brasil a oferecer o curso de engenharia aeronáutica, afora o curso do CTA/ITA, em São José dos Campos. Para criar o curso teve que lutar tenazmente contra a oposição dos militares da Aeronáutica, que não admitiam a existência de outro curso além do ITA. Se hoje temos no Brasil o terceiro maior fabricante mundial de jatos comerciais, a Embraer, é também porque ali estão o espírito e a contribuição do Cláudio Barros. Muitos de seus alunos estão na empresa de São José dos Campos, inclusive em postos relevantes. Tempos atrás esses seus alunos se reuniram na empresa para prestar uma homenagem ao seu ilustre mestre.
Sempre fui um apaixonado pela aeronáutica. O sonho que não pude realizar, realizou-o o meu filho Renato, engenheiro aeronáutico, atualmente há 13 anos na Embraer. Foi aluno e admirador do Cláudio. Posso dizer, com uma pontinha de orgulho, que também eu o fui. Quando cursava a disciplina “Projeto de aeronaves”, o Renato pediu ao Cláudio autorização para eu participar das aulas como ouvinte. Muito antes disso eu já havia conhecido e admirado o “Curumim” em uma exposição da UFMG e me intrigava saber que aqui em BH se podia construir um avião como aquele.
Nas “Bienais Brasileiras de Design/categoria aeronaves” de 87 e 92, o CEA arrebatou os primeiros lugares, com os aviões CB-7 Vésper e CB-9 Curumim, respectivamente, desbancando, inclusive, outros projetos apresentados pela concorrente Embraer.
Como disse o Renato em sua mensagem no site, “perdeu também o Brasil um homem de visão e espírito empreendedor e que teve a coragem de fazer o que era preciso e a sabedoria pra fazê-lo. Seus feitos, comparáveis aos de outros como Casimiro Montenegro [fundador do CTA/ITA], são a garantia de que seu legado sobreviverá por muitas e gerações”.
Nosso Jornal das Lajes nunca acolheu em suas páginas uma matéria específica sobre aeronáutica. Talvez, as peripécias do nosso conterrâneo, o Renato Morethson, outro apaixonado pelos aviões na década de 40, com seu “Paulistinha” e seus voos rasantes sobre Resende Costa, jogando propagandas e jornais. Por isso, seja este texto também uma derradeira homenagem ao grande professor, ousado, visionário e benemérito. Neste país das contradições e da inversão de valores gastam-se somas fabulosas, horas de televisão, páginas inteiras de jornais e salários astronômicos para a badalação e a babação com jogadores de futebol ou com duplas de cantores de música pseudo-sertaneja. Cientistas, pesquisadores e gênios da envergadura de um Cláudio Barros são mal remunerados, despercebidos e ficam esquecidos. Um dos principais diários de BH dedicou uma página inteira, colorida, a uma cantora de música popular e não dedicou sequer uma linha à memória do ilustre professor Cláudio.
O engenheiro Paulo Iscold, seu aluno, que o sucedeu na direção do CEA, assim dele se despede em sua mensagem do site do CEA:
“Cláudio, vá com Deus, suba com asas como águia, porque você sempre esperou no Senhor! O CEA hoje chora a sua ida, mas vamos continuar tocando isto aqui e honrando seu nome! Voaremos cada vez mais alto, cada vez mais longe e cada vez mais veloz. Eu farei o possível para manter a chama e a alegria do, como você sempre dizia, melhor lugar do mundo!”
(Para os leitores que se interessarem em conhecer o CEA e seus projetos, bem como os textos sobre o professor Barros, basta acessar o site http://www.demec.ufmg.br/Cea/principal.html)
O debate em torno do “nós pega os peixe” e “os livro ilustrado”
16 de Junho de 2011, por Rosalvo Pinto 0
Desde 15 de maio passado, estabeleceu-se no país um acalorado debate entre imprensa, Ministério da Educação (MEC) e estudiosos da linguagem. Debate motivado por alguns periódicos que, à busca de sensacionalismos e descartando a ciência e a verdade, passaram a criticar um dos livros didáticos recomendados pelo MEC.
O fato que gerou essa celeuma toda, a partir do dia 11 de maio passado, foi a descoberta, no livro “Por uma Vida Melhor”, de um trecho que trata do tema “variação linguística”. Esse livro, destinado ao ensino do português, foi um dos recomendados pelo MEC para o programa Educação de Jovens e Adultos (EJA). É bom frisar, de entrada, que a coleção à qual pertence o livro é destinada não a crianças do ensino fundamental, mas a jovens e adultos.
O nosso “grande jornal dos mineiros”, por exemplo, entrou nessa . E volta à carga, agora, na recente edição do dia seis deste mês, trazendo uma página inteira (p. 8) com o título garrafal de “Insegurança na sala de aula”, acompanhado do lide (resumo da notícia) “Polêmica sobre livro de português que considera corretas frases em desacordo com as normas cultas gera desconfiança de alunos quanto à qualidade do material didático”.
Esse resumo já incorre, de cara, em um erro grotesco e tendencioso, ao afirmar que um livro de português considera corretas frases em desacordo com as normas cultas. É de se suspeitar que o repórter que assina a matéria nem sequer tenha ido ao livro para averiguar de que se trata. Se tivesse ido, talvez ele não escrevesse o que escreveu.
O capítulo do livro onde está o problema, sob o título de “Escrever é diferente de falar” tem 17 páginas e, provavelmente, nenhum dos críticos o terá lido. A maior parte do capítulo se ocupa de mostrar que não se pode escrever um texto formal usando a linguagem falada do dia-a-dia. Nessa parte, ensina que é preciso respeitar a concordância e outras regras da variedade culta. O próprio trecho onde estão as frases alardeadas, que ocupa meia página, afirma que se pode falar “os livro” e “nós pega os peixe” em situações específicas, alertando que, se o aluno usar essas formas em contextos formais, sofrerá preconceito linguístico. O escândalo é que a imprensa descontextualizou a frase e condenou, por ela, o livro e o MEC.
Nesse debate nacional evidenciaram-se duas instituições: a Rede Globo e a Editora Abril. Evidenciaram-se pelo festival de besteiras. Claro, para ambas a jogada é meramente financeira, puramente comercial. Lobos travestidos de cordeiros. O ataque da revista VEJA (edição 2219, 1º. de junho), começou na edição 2218, de 25 de maio, avassalador: na “Carta ao leitor” (o editorial, porta-voz da Editora Abril), seguindo-se o artigo da Lya Luft (p.26), outra que deve ter ouvido o galo cantar, mas não sabe onde e, por fim, a desastrada reportagem de Renata Betti e Roberta de Abreu Lima, essa chegando a ser desrespeitosa, para não dizer “escrachada”. Não satisfeita, a VEJA voltou, na edição seguinte (2219), com uma entrevista com o professor Evanildo Bechara, 83, um dos imortais da Academia Brasileira de Letras (Páginas Amarelas). Dá pena ler o que o “renomado” professor falou na entrevista. Nem vale a pena comentar. É bom que o leitor saiba que a Editora Abril é, hoje, dona de uma das maiores editoras de livros didáticos no Brasil, a Editora Ática. Não é preciso dizer mais nada.
Instituições e estudiosos da linguagem de renome vieram de pronto contestar a veracidade das afirmações da imprensa de que o livro está ensinando “a língua errada” e deixando de ensinar a “língua correta”, entre muitos, a Associação Brasileira de Linguística (ABRALIN).
Apenas um grande argumento põe por terra as afirmações incorretas veiculadas pela imprensa: não existe, em nenhum recanto do planeta, “língua certa” e “língua errada”. Todas as línguas nele existentes prestam-se, com perfeição, para a expressão das necessidades de seus falantes. O que existe nas sociedades humanas são variações, normalmente criadas em função de diferenças de classes sociais e, em algumas dessas sociedades, consideradas mais desenvolvidas, uma variação especial, normalmente imposta pelas classes dominantes, chamada, entre outros nomes, de “norma culta”.
A esse argumento acrescenta-se outro, igualmente fundamental: todas as línguas humanas evoluem com o tempo e estão em constante mutação. Muitos dos fatos hoje impropriamente chamados de “erros” em quaisquer línguas, poderão, posteriormente, ser considerados como formas da norma culta dessas línguas.
Assim, do ponto de vista simplesmente científico, não tem sentido algum dizer que um fulano, ou um grupo ou um povo de determinada região falam (ou escrevem) errado. É sabido que toda criança, ao entrar na escola, já sabe falar o português. Entretanto, em nossa sociedade cruel e injustamente dividida em classes, para que essa criança possa progredir na vida, conseguir empregos, enfim, tornar-se uma cidadã, é necessário que ela aprenda também uma outra variante da língua, a tal da “língua culta”. Se assim não o fizer, ela corre o risco de ser preterida ao procurar um emprego, de não poder ter acesso a muitos bens culturais e mesmo de ser discriminada em muitas situações de sua vida.
“Não vejo problema em discutirmos todas as formas de falar nas escolas, por meio dos livros. Com erros de português, sotaque ou qualquer tipo de diferença acho importante termos acesso aos tipos diferentes. São as maneiras que usamos no dia a dia e não há por que ficarmos presos aos detalhes da norma culta”. Assim se expressou o senhor José Geraldo de Paula, 48, na entrevista ao repórter do Estado de Minas. Ainda bem. Uma peninha que ele talvez ainda esteja influenciado pela expressão “erros de português”, de tão arraigada que ela está entre nós. Mas, ao fim e ao cabo, ele acertou na mosca. Parabéns!
O fato que gerou essa celeuma toda, a partir do dia 11 de maio passado, foi a descoberta, no livro “Por uma Vida Melhor”, de um trecho que trata do tema “variação linguística”. Esse livro, destinado ao ensino do português, foi um dos recomendados pelo MEC para o programa Educação de Jovens e Adultos (EJA). É bom frisar, de entrada, que a coleção à qual pertence o livro é destinada não a crianças do ensino fundamental, mas a jovens e adultos.
O nosso “grande jornal dos mineiros”, por exemplo, entrou nessa . E volta à carga, agora, na recente edição do dia seis deste mês, trazendo uma página inteira (p. 8) com o título garrafal de “Insegurança na sala de aula”, acompanhado do lide (resumo da notícia) “Polêmica sobre livro de português que considera corretas frases em desacordo com as normas cultas gera desconfiança de alunos quanto à qualidade do material didático”.
Esse resumo já incorre, de cara, em um erro grotesco e tendencioso, ao afirmar que um livro de português considera corretas frases em desacordo com as normas cultas. É de se suspeitar que o repórter que assina a matéria nem sequer tenha ido ao livro para averiguar de que se trata. Se tivesse ido, talvez ele não escrevesse o que escreveu.
O capítulo do livro onde está o problema, sob o título de “Escrever é diferente de falar” tem 17 páginas e, provavelmente, nenhum dos críticos o terá lido. A maior parte do capítulo se ocupa de mostrar que não se pode escrever um texto formal usando a linguagem falada do dia-a-dia. Nessa parte, ensina que é preciso respeitar a concordância e outras regras da variedade culta. O próprio trecho onde estão as frases alardeadas, que ocupa meia página, afirma que se pode falar “os livro” e “nós pega os peixe” em situações específicas, alertando que, se o aluno usar essas formas em contextos formais, sofrerá preconceito linguístico. O escândalo é que a imprensa descontextualizou a frase e condenou, por ela, o livro e o MEC.
Nesse debate nacional evidenciaram-se duas instituições: a Rede Globo e a Editora Abril. Evidenciaram-se pelo festival de besteiras. Claro, para ambas a jogada é meramente financeira, puramente comercial. Lobos travestidos de cordeiros. O ataque da revista VEJA (edição 2219, 1º. de junho), começou na edição 2218, de 25 de maio, avassalador: na “Carta ao leitor” (o editorial, porta-voz da Editora Abril), seguindo-se o artigo da Lya Luft (p.26), outra que deve ter ouvido o galo cantar, mas não sabe onde e, por fim, a desastrada reportagem de Renata Betti e Roberta de Abreu Lima, essa chegando a ser desrespeitosa, para não dizer “escrachada”. Não satisfeita, a VEJA voltou, na edição seguinte (2219), com uma entrevista com o professor Evanildo Bechara, 83, um dos imortais da Academia Brasileira de Letras (Páginas Amarelas). Dá pena ler o que o “renomado” professor falou na entrevista. Nem vale a pena comentar. É bom que o leitor saiba que a Editora Abril é, hoje, dona de uma das maiores editoras de livros didáticos no Brasil, a Editora Ática. Não é preciso dizer mais nada.
Instituições e estudiosos da linguagem de renome vieram de pronto contestar a veracidade das afirmações da imprensa de que o livro está ensinando “a língua errada” e deixando de ensinar a “língua correta”, entre muitos, a Associação Brasileira de Linguística (ABRALIN).
Apenas um grande argumento põe por terra as afirmações incorretas veiculadas pela imprensa: não existe, em nenhum recanto do planeta, “língua certa” e “língua errada”. Todas as línguas nele existentes prestam-se, com perfeição, para a expressão das necessidades de seus falantes. O que existe nas sociedades humanas são variações, normalmente criadas em função de diferenças de classes sociais e, em algumas dessas sociedades, consideradas mais desenvolvidas, uma variação especial, normalmente imposta pelas classes dominantes, chamada, entre outros nomes, de “norma culta”.
A esse argumento acrescenta-se outro, igualmente fundamental: todas as línguas humanas evoluem com o tempo e estão em constante mutação. Muitos dos fatos hoje impropriamente chamados de “erros” em quaisquer línguas, poderão, posteriormente, ser considerados como formas da norma culta dessas línguas.
Assim, do ponto de vista simplesmente científico, não tem sentido algum dizer que um fulano, ou um grupo ou um povo de determinada região falam (ou escrevem) errado. É sabido que toda criança, ao entrar na escola, já sabe falar o português. Entretanto, em nossa sociedade cruel e injustamente dividida em classes, para que essa criança possa progredir na vida, conseguir empregos, enfim, tornar-se uma cidadã, é necessário que ela aprenda também uma outra variante da língua, a tal da “língua culta”. Se assim não o fizer, ela corre o risco de ser preterida ao procurar um emprego, de não poder ter acesso a muitos bens culturais e mesmo de ser discriminada em muitas situações de sua vida.
“Não vejo problema em discutirmos todas as formas de falar nas escolas, por meio dos livros. Com erros de português, sotaque ou qualquer tipo de diferença acho importante termos acesso aos tipos diferentes. São as maneiras que usamos no dia a dia e não há por que ficarmos presos aos detalhes da norma culta”. Assim se expressou o senhor José Geraldo de Paula, 48, na entrevista ao repórter do Estado de Minas. Ainda bem. Uma peninha que ele talvez ainda esteja influenciado pela expressão “erros de português”, de tão arraigada que ela está entre nós. Mas, ao fim e ao cabo, ele acertou na mosca. Parabéns!