Causos & Cousas

Resende-costenses empreendedores

18 de Abril de 2009, por Rosalvo Pinto 0

Adair Rezende e Maria Rezende, sua mãe.

Nas duas, talvez três, primeiras décadas do século passado, parece ter havido um fluxo maior de pessoas mudando-se para Resende Costa do que dela saindo. Além disso, inexistia o fenômeno do êxodo rural ou era apenas incipiente. Gradativamente, com o crescimento da cidade, começa a crescer o fluxo de êxodo rural e, paralelamente, o movimento de saída da cidade. Famílias, sobretudo homens, começam a sair em busca de outras alternativas de vida em centros maiores ou em regiões mais promissoras, ainda em fase de desbravamento. São João del-Rei, por exemplo, e o chamado ‘sertão mineiro’ eram polos de atração. Muitas famílias ou pessoas começaram a sair diretamente da zona rural para outras plagas.

Passados tantos anos, é interessante acompanhar o percurso desses muitos resende-costenses que, por necessidade, ou atraídos por melhores alternativas de vida, foram deixando a cidade. Nesse movimento de emigração era natural que predominassem os membros da família Resende.

O Jornal das Lajes, embora ainda timidamente, tem acompanhado alguns casos desse movimento de resende-costenses que, deixando a cidade, de diversas maneiras se projetaram em seus novos ‘habitat’. Valeria a pena investigar esse aspecto da nossa história. Afinal, os que saíram constituem o prolongamento de nossas famílias e de nossa cultura. E muitos deles se revelaram grandes empreendedores.

Nossos leitores certamente devem estranhar a presença, na folha de rosto do nosso jornal, da publicidade da Santa Cruz Acabamentos, de Belo Horizonte. Essa presença tem uma história antiga e curiosa.

Lá pela década de 30, mudou-se de Resende Costa para Igarapé o Sr. Domingos da Costa Resende, aqui nascido no dia 2 de janeiro de 1894, conforme certidão emitida pelo Cartório da Laurinha. Casou-se com Da. Maria Olívia, da vizinha cidade de Betim. Seus filhos acabaram se mudando para Belo Horizonte. Entre eles, a Sra. Maria Rezende de Souza, cujo filho vim a conhecer 6 anos atrás, em circunstância inesperada. Numa grande loja de Belo Horizonte, eu acabava de comprar cerâmicas de revestimento e piso e negociava com um dos vendedores a entrega do material em Resende Costa. De pé por ali, ouvindo falar o nome da cidade, o proprietário da loja me abordou para dizer, com certa ufania, que seu avô era nascido naquela cidade. A loja: Santa Cruz Acabamentos. O proprietário: o Sr. Adair Martins de Souza Rezende. O resto da história está estampado na folha de rosto deste jornal.

O Sr. Adair é neto do Sr. Domingos. Foi uma descoberta casual e agradável. Mais um descendente de Resende Costa brilhando por esse Brasil afora. Ele me dizia, na época, que tinha muita vontade de conhecer a cidade de seus antepassados, como de fato o fez tempos depois, trazendo consigo sua mãe, hoje com seus quase 80 anos. A ligação com o lugar de nossas raízes nos traz sempre um certo sentimento de orgulho quando vemos nossos descendentes progredindo em outras plagas.

Participando do nosso jornal, o Sr. Adair investe na sua ligação familiar e sentimental com Resende Costa e marca sua presença na terra de seus antepassados, além de tentar captar possíveis interessados em adquirir os artigos de sua empresa. Integrando o grupo dos nossos anunciantes, ele incentiva a continuidade do Jornal das Lajes, que recebe mensalmente em sua casa.

A Santa Cruz Acabamentos, para nossos leitores que não a conhecem, é hoje um dos maiores e mais dinâmicos empreendimentos comerciais de Belo Horizonte na área da construção civil. Trabalha exclusivamente com artigos de acabamento em cerâmica, louças e metais, com produtos que vão do popular aos tipos mais requintados. É um empreendimento que cresce a olhos vistos, gerando hoje 350 empregos diretos numa única e gigantesca loja. Os resende-costenses que por lá passam não deixam de admirar o empreendedorismo de um ‘Costa Resende’, sem dúvida, um legítimo ‘lagartixa’ que décadas atrás deixou nossas lajes em busca de outras paragens.

Becos e outras reminiscências ...

15 de Marco de 2009, por Rosalvo Pinto 0

Manhã de carnaval de 2009. Percorro a Av. Gonçalves Pinto, a Marquês de Sapucaí de Resende Costa. Toda enfeitada para o carnaval. Largas faixas de pano entrecruzadas, formando um caramanchão de cores. Postes ornamentados multicolormente. Muita agitação, muitos carros e muita gente. Muitas caras desconhecidas. Viro à direita para subir o ... “Beco do Barbusinha”, é o nome que vem à minha já cansada memória. Paro e olho para cima: o piso de bloquete, as casas tão mudadas. O sobrado do Sô Barbusinha e a casa do Iraci do Sobico e Dona Olga ainda conservam um pouco do aspecto de muitos anos atrás. Nos meus tempos de menino o beco era calçado com pedras grandes. Era por ele que os carros de boi, vindos do “largo” de trás da Matriz (hoje a praça Mendes de Resende), desciam para ter acesso à avenida, já calçada de paralelepípedos. Traziam milho, lenha, material de construção. Nas Semanas Santas, traziam uma verdadeira mudança das fazendas, mais as latas com mantimentos e biscoitos. Do lado direito, onde hoje está a casa do Zé Barbeiro, havia somente um portão de madeira, por onde entravam e saíam cavalos e éguas do Nico Cassiano e do Nico de Souza. Logo acima do sobrado do Sô Barbusinha ficava a casa do Zé do Nico. Mais acima, chegando ao fim do beco, a do Sô Geraldo Chaves.

Olhar aquele beco me deu uma sensação estranha e dolorosa. Um misto de saudade e de tristeza pelos pedaços de minha vida que passaram por ali e não voltam mais. Eu me vi menino, dos 6 aos 10 anos. Calça curta com suspensório de pano, pés no chão, cabeça raspada com topetinho na frente, subindo e descendo o beco. Para levar os animais dos dois Nicos ao pastinho do “Pau de Canela” (onde hoje moram o Elmo do Lorinha e o Marquinhos Alves), a troco de uma moeda de um mil réis. Tantas vezes subia para a igreja, para o catecismo, para o serviço de coroinha ou para brincar no “largo”. Os quatro largos eram o nosso habitat preferido: os dois da Matriz, o do Rosário e o larguinho do centro, ao lado da avenida. Era nos largos que a gente brincava, de tudo e, despistadamente, falava das meninas, nossas primeiras paixões. Por segundos, aquele beco me sinalizou o mistério da finitude da vida. Aquilo era o cenário de quase sessenta anos atrás. Subi e desci, imerso nos meus sonhos e medos.

Volto do beco dos meus devaneios e entro na avenida. Ah, a avenida. Ela sempre foi gostosamente assim chamada. Era e ainda é a avenida de todos nós. Viro à esquerda e sigo em direção à esquina de outro beco. Aquele era tão beco que nem nome tinha. Hoje ficou importante e passou a ser “Rua Pedro Alves”, que mais parece uma pista de corrida de carros que sobem e descem sem parar. A entrada do beco era apertadinha, mal podia passar um carro de boi. Começava com um pouco mais de três metros calçados de pedras “pé-de-moleque”. Depois continuava numa espécie de barranquinho raso, no centro, formado pelas enxurradas que desciam abundantes e encachoeiradas. Ali a gente gostava de brincar com a chuva, fazendo pequenas barragens ou colocando barquinhos de papel nas enxurradas. Na nossa percepção de menino, naqueles tempos as chuvas eram mais fortes e abundantes e os raios e trovões mais aterrorizadores. Na escuridão das noites de tempestade, minha mãe queimava ramos secos da Procissão de Ramos e a gente, a cada trovoada e tremendo de medo, implorava: “São Jerônimo e Santa Bárbara!”. Tempos depois, foi preciso meu pai vender um pedaço da velha casa para a Prefeitura abrir a rua. Depois, foi-se também a casa de minha infância e meninice. Na esquina, à esquerda de quem desce, ainda imponente e desafiando os tempos, está o casarão do Sô Zé Lara e da Dona Vera Cruz Resende. Abaixo, noutro casarão que não existe mais, morava o solteirão dentista e seresteiro, o inesquecível Antônio Resende. A horta dessas casas descia até quase o final do beco, até a casa do Tião do Chora e da Adélia, pais do Galo. À direita, nossa velha casa se prolongava num comprido muro de pedra, coberto de saborosas, que se estendia até onde começava a última casa do beco, a do Padrinho Joãozinho do João Franquilim, conhecido também como “Joãozinho sapateiro” ou “Joãozinho dos oclos”. De cima, imaginando o antigo beco, eu tinha a sensação de ainda ver o Tião do Chora, de olhos verdes e penetrantes, sempre acotovelado na janela e espiando o tempo passar.

Como diz um dos meus poetas preferidos, o Manoel de Barros, “o olho vê, a lembrança revê e a imaginação transvê...” Depois de olhar os becos, o de cima e o de baixo, lembrar e imaginar tanta coisa, a gente entra num beco, perigoso e sem saída: o beco da vida. A cidade cresceu, os becos viraram ruas. E a gente se angustia na travessia desse beco, que vai irremediavelmente se afunilando.

Vandalismo, desrespeito, malandragem e outras mazelas

07 de Fevereiro de 2009, por Rosalvo Pinto 2

Vandalismo em placa indicativa de trânsito

Há dias vinha rascunhando este texto quando, no dia 28 de janeiro passado, dei de cara com um artigo do Fernando Brant, no Estado de Minas, com o título de “As mãos atadas de um cidadão”. Até parecia que ele queria se comunicar comigo para compartilhar um mesmo sentimento de tristeza. Vou dialogar com ele, desviando o meu olhar de Belo Horizonte para minha terra. Aliás, de há muito venho tentando fugir do espetáculo de desrespeito ao cidadão da cidade onde moro, Belo Horizonte, para me refugiar em nossa cidade, em busca de uma vida mais tranquila, respeitosa. Mas de tempos pra cá, ao ouvir meus amigos de nossa cidade se queixarem do que acontece por aí, acho que devo continuar procurando outro lugar...

Vandalismo, desrespeito, malandragem, roubos, crimes e outras mazelas são consequências imediatas e visíveis de falta de educação. E se revelam nas pequenas coisas do dia-a-dia, na falta de cidadania de nossa geração, de jovens e de adultos. Coisas pequenas, mas que denotam falta de respeito para com as pessoas com quem convivemos. É uma garrafa quebrada e jogada na rua, no fim de noite. São os sons barulhentos de carros, buzinas, bares, bailes e gritos que incomodam o sono dos que querem (e precisam) dormir. É uma lata de cerveja jogada nas ruas, estradas e nos lotes vagos. É uma árvore quebrada ou arrancada na rua. É o lixo e o entulho na beira das estradas. É a pichação de paredes e equipamentos públicos. É o absurdo de escrever “Zeiro” e pintar uma raposa numa placa indicativa de trânsito: tipo de mazela que, triste reconhecer, já chegou até em nossa cidade. Vejam a foto. “De que serve as pessoas frequentarem escolas e se diplomarem, se a rua é para elas lata de lixo e as regras de trânsito e de convivência não merecem o respeito de suas majestades?”, pergunta revoltado e decepcionado o Fernando Brant no seu artigo. Parece que ele está vendo os carros cruzando com velocidade exagerada as ruas de nossa ex-pacata cidade, como se ela fosse Mônaco em dia de fórmula 1. E ele continua: “A falta de educação e cultura é a saúva do Brasil, a formiga que tudo come e nos impede de ser um país mais decente”.

Doloroso o título (e o teor) deste texto, não? Pois é, mas é o retrato-resumo do nosso país. E o pior, começa a se aplicar também a nossa cidade. Pessimismo, dirão alguns. Realismo, insisto eu. Basta olhar nossas cidades, as manchetes dos (tele)jornais, nosso trânsito, nossos políticos, nossas rodovias, a incorrigível e deslavada corrupção. É o que vemos e ouvimos dia e noite. Infelizmente, por uma série de fatores sócio-históricos, nos transformamos numa sociedade da malandragem. Chegamos ao cúmulo de cultuar o malandro como se fosse um valor cultural e um herói nacional.

Como cidadão, como enfrentar essa situação? Numa atitude de covarde escapismo, fugindo para lugares onde ainda existe um mínimo de respeito pela cidadania, no exterior ou em algumas cidades do interior do nosso país. Outra atitude, essa de consciente cidadania, é tentar contribuir para resolver o problema. Impossível? Não. Difícil? Sim, mas vale tentar. Afinal, trata-se um problema de educação. Muito mais educação dada pela família, do que a esperada educação dada pela escola. Não adianta colocar todas as crianças e jovens brasileiros na escola, por melhor que ela seja. Isso é até o mais fácil de se fazer, basta vontade política de nossos governantes. Mas a escola não faz milagres. Ela apenas contribui para refinar e consolidar a educação recebida em casa e, ao mesmo tempo, transmitir conhecimentos e saberes necessários ao desenvolvimento das pessoas. O problema crucial é que nossas escolas estão cheias de crianças e adolescentes que, além de serem impermeáveis às ações educativas, ainda comprometem o trabalho educativo e corrompem os educandos que já trazem uma boa formação familiar.

Enquanto não eliminarmos a saúva destruidora do desrespeito e da falta de educação, continuaremos patinando em nossas mazelas. Mas antes, seria fundamental fazer uma reforma radical em nossa Constituição. Dos seus duzentos e tantos artigos deveríamos, seguindo a sábia sugestão de nosso ilustre historiador, Capistrano de Abreu, reduzi-la a apenas dois:

“Artigo primeiro: Todo brasileiro deve ter vergonha na cara.
Artigo segundo: Revogam-se as disposições em contrário”.

Roque da Corina, o seresteiro das Lajes

11 de Janeiro de 2009, por Rosalvo Pinto 2

Na madrugada de sexta-feira, 5 de dezembro de 2008, Resende Costa perdeu aquele que foi, talvez, ou sem talvez, o seu maior seresteiro. Aos 83 anos, juntou sua voz, seu violão, uma foto das ruas de nossa cidade, algumas velhas fantasias de carnaval, uma gamela de estimação, uma garrafa da boa e ... partiu pra sempre. Com certeza pro céu. Foi ao encontro dos seus grandes e inseparáveis amigos: Vicente Celestino, Altemar Dutra, Nelson Gonçalves, Orlando Silva, Lindomar Castilho. E tantos outros.

O Roque Gularte de Andrade nasceu no dia 5 de março de 1925, filho de Francisco Gularte de Andrade e Corina Belo. Tal como está lá na sua certidão de nascimento, testemunhada pelo Alberto Salomão e pelo Miguel Alderico Roman, o Alderico, irmão do Sebastião Nagib e do Nagibinho. Perdeu o pai e, por viver muito tempo com sua mãe, passou a ser o ‘‘Roque da Corina’‘. Depois de perder a mãe, viveu muitos anos sozinho. Dizem que foi um solteirão inveterado. Não foi. Na verdade ele foi casado com três mulheres, melhor, três amantes: a música, a rua, e a pinga. Foi sempre fiel a elas e nunca delas se separou.

Cabelos compridos, muitas vezes amarelados e desgrenhados, roupas coloridas, bermuda, sapatos sem meias. Gostava de se enfeitar com colares e muitos anéis, de preferência de prata. Suas duas profissões: pedreiro e seresteiro. Além disso, vivia fazendo gamelas de madeira, de tamanhos variados. Era sua especialidade como artesão. Com elas ganhava uns trocados a mais para o cigarro e a cachaça.

Sua grande festa era o carnaval. Folião incansável, passava os quatro dias e noites na rua, com as fantasias mais estrambóticas, uma marmota. Quando, no final da madrugada, a cidade se recolhia, o Roque continuava cantando sozinho. Quando a cidade começava a acordar para o novo dia, a gente ouvia o vozeirão dele, sentado no banco da pracinha, relembrando o Vicente Celestino:

‘‘Acorda, patativa, e vem cantar - Relembra as madrugadas que lá vão
E faz de tua janela o meu altar - Escuta minha eterna canção’‘

Na década de 80 ficaram famosos os shows de calouros do Jota Resende. O antigo Salão Paroquial ficava lotado. Na primeira fileira postavam-se, importantes e sisudos, os membros do júri. A platéia delirava. Seu animador ficou tão ligado ao seu programa que ainda hoje ele se autodenomina de ‘‘O terrível Ratinho dos Anos 80’‘! Pois bem, uma das figuras imperdíveis desses shows era exatamente o Roque da Corina, com seu violão, sua sanfona e sua voz de seresteiro inveterado.

Até um ano antes de morrer ele morava, a rigor, na rua. Ele e seu violão. Passou os últimos oito meses de sua vida no Asilo São Camilo de Lélis. Sempre ele e seu violão. E enquanto teve forças, pegava o violão (que bonito!) e cantava para seus companheiros. Quando o levaram se esqueceram de colocar junto seu violão. Uma pena! Mas o certo é que lá em cima não vai faltar um violão para ele, feliz para sempre, na companhia dos seus ídolos. Tive o prazer de ver e pegar em seu último violão. Bonito e reluzente. Talvez tenha sido melhor que ele ficasse mesmo por aqui. Bem guardado até a construção do sonhado ‘‘Museu de Resende Costa’‘, onde ele terá certamente um lugar de destaque e de honra. Juntamente com seu velho bandolim, lá num canto, destinado ao ‘‘Seresteiro de Resende Costa’‘.

Mas a verdade é que ele não morreu. Mudou de rua. A uma hora dessas, ele deve estar numa rua sem fim, enfeitada de adereços e fantasias de carnaval, noite eterna de lua cheia, violão a tiracolo. Daqui, ainda é possível ouvi-lo soltando sua voz, cheia de saudades: ‘‘Acorda, Resende Costa, e vem cantar – Escuta a minha eterna canção’‘.

(Para a elaboração deste texto-homenagem ao Roque, contei com a simpática colaboração de sua sobrinha, a Sra. Elza Goulart de Andrade, bem como com a contribuição do pessoal do Depósito: a Marilene, o Hélio e o Marquinhos. Agradeço a todos).

Ser de direita, ser de esquerda

07 de Dezembro de 2008, por Rosalvo Pinto 0

Parodiando Shakespeare, ‘ser de direita, ser de esquerda, eis a questão’. Questão que há anos muito me intriga. Afinal, o que significa realmente ser de direita ou ser de esquerda? Questão complicada. Para tratar dela, no mínimo um livro. No espaço limitado deste texto rabisco apenas algumas considerações.

Começo por uma pitada de história. Até onde eu consigo saber, quem primeiro falou em direita e esquerda pode ter sido a Bíblia. Mais precisamente, o evangelista Mateus, ao descrever a cena do juízo final. ‘... (Jesus) sentar-se-á no seu trono de glória e reunir-se-ão em sua presença todas as nações e ele separará uns dos outros (...) e porá as ovelhas à sua direita e os cabritos à sua esquerda’ (25, 31-33). Observe-se que o evangelho já diz que os ‘bons’ (as ovelhas) ficam à direita e os ‘maus’ (os cabritos), à esquerda. Muitos séculos depois, lá por 1789, ao final vitorioso da Revolução Francesa, houve uma grande assembléia para se discutirem os rumos do movimento. À direita estavam os conservadores, a burguesia, o clero, a elite, enfim; à esquerda, a turma do Robespièrre e cia., os que queriam mudanças mais profundas, os mais pobres, o povão. Teria sido daí que se começou a falar em direita, para se referir à elite, tendencialmente conservadora, e esquerda, para os adeptos de mudanças sociais mais radicais, tendencialmente menos privilegiados. Curiosamente, a direita costuma sempre ser citada antes da esquerda. Até no título deste texto, lá em cima. E os canhotos costumam ser discriminados, por vezes forçados pela família e pela escola a passar para a direita, ou seja, a virar destros.

Quem mais costuma usar o par ‘direita x esquerda’ são os intelectuais (geralmente os analistas sociais) e os políticos. Os primeiros, na elaboração de seus estudos e pesquisas. Com os segundos, os políticos, a coisa fica um pouco mais complicada: alguns gostam de se dizer ‘de esquerda’, mesmo quando claramente não o são e aqueles que parecem ser ‘de direita’ têm horror a serem assim chamados. Isso acontece na política de países com grandes diferenças de classes sociais, como o nosso. E o motivo é óbvio: o político está sempre de olho nos votos que podem, em sua maioria, vir das classes menos privilegiadas, que são maioria esmagadora entre nós. Digo ‘podem’, porque nem sempre isso acontece. O problema crucial está nos nossos partidos políticos que podem, por exemplo, ter uma suposta ideologia de esquerda e ter em seus quadros políticos interesseiros, de notório perfil de direita. Estão ali apenas para atender aos seus interesses individuais. E vice e versa, mas em menor escala, políticos filiados a partidos considerados de direita podem não ter, às vezes, um perfil de pessoas de direita.

Aprofundo um pouco mais essa questão. Quanto ao ‘ser de direita’ não há muito a se discutir: os que lá estão ‘são’ e, sobretudo, ‘agem’ como de direita. Ser de esquerda, por outro lado, significa ter uma clara ideologia de esquerda, ou seja, uma ideologia que defenda mudanças no quadro socialmente injusto de uma sociedade. Mas ‘dizer’ e ‘defender’ em si nada resolve. O fundamental, para quem se diz de esquerda, é ‘ser’ e, conseqüentemente, ‘agir’, ‘fazer’. E isso significa compartilhar e efetivamente dividir o que você possui com os outros seres humanos, sobretudo aqueles que vivem ao seu redor. Significa, se você for patrão, pagar salários condignos aos seus empregados, lembrando-se de que salário mínimo não é salário condigno. Significa não discriminar os que têm menos que você, não esbanjar e desperdiçar bens e riquezas, enquanto outros, ao seu lado, vivem na miséria. Quem pensa (e diz) que é de esquerda e não age como tal, é como aqueles que se dizem católicos, por exemplo, mas não seguem os preceitos, as normas, os sacramentos e os ritos do catolicismo. Tal como o ensinava o apóstolo Tiago: ‘Assim também a fé, se não tem obras, por si é morta (2, 17).

Ironicamente, os jornais do mundo inteiro publicaram por esses dias uma curiosa (e preocupante) entrevista com o Abdullah Muntazir, líder do grupo terrorista paquistanês Jama’t-ud-Da’wah. Suposto responsável pela chacina de 195 seres humanos inocentes em Mumbai, na Índia, ele dizia que ‘é preciso melhorar não apenas a crença do indivíduo, mas também suas ações e atitudes. Somente assim um indivíduo pode se tornar um verdadeiro cidadão bom’. Ele confirma o que venho dizendo acima, ou seja, não bastar crer em alguma coisa, o importante é agir segundo essa crença. Mas Muntazir se esquece de que não é pelo uso da violência contra inocentes que se vão resgatar os seres humanos.

Emerson, famoso filósofo americano, ensinava que é inútil dizermos o que não somos, pois a verdade do que somos está o tempo todo trovejando diante de nós, de tal modo que os outros não podem escutar o que nós tentamos dizer ser o contrário. É isso aí, concluo: o de direita diz que não o é e o de esquerda pensa e diz que é, sem o ser. E termino com o mesmo Emerson: o dizer é inócuo sem o agir.