Causos & Cousas

Livromania

13 de Agosto de 2012, por Rosalvo Pinto 0

Entre todas as coisas ou objetos existentes neste vasto mundo de Deus, não há dúvidas de que sobressai o “livro”. O advento da “escrita”, muitos séculos atrás, propiciou ao homem a possibilidade de transmitir a seus semelhantes suas ideias, seus pensamentos e seus sentimentos em um conjunto sistemático e organizado, através de variados suportes.

Desde as inscrições rupestres em pedras nas várias culturas, passando pelos papiros, pelo papel e, hoje, pelos recursos eletrônicos, o objeto “livro” desempenhou um papel fundamental na vida dos seres humanos. Por muitos séculos a difusão do livro foi feita através de artefatos manuscritos. A invenção do alemão João Gutenberg (1398/1468) provocou a chamada “revolução da imprensa”, pois possibilitou a impressão e a difusão rápida dos livros. Embora o século 20 tenha trazido um grande desenvolvimento tecnológico para a produção do livro, a rigor pode-se dizer que ainda estamos usufruindo da genialidade de Gutenberg.

Vivemos ainda na era do livro. Muitas pessoas amam os livros. Outras precisam deles para seu trabalho e para sua sobrevivência. Há até aquelas que os usam para enfeitar as estantes de suas salas, chegando ao cúmulo de comprar livros “por metro”. Mas o livro ainda está forte e firme, embora se diga que, com a assombrosa evolução da era eletrônico-digital, o livro venha a desaparecer. Eu não acredito. E estou entre aquelas pessoas que amam os livros. Precisei e ainda preciso deles por razões pessoais e profissionais. 

Por estes dias estou mergulhado nos meus livros, tirando poeira, organizando e tentando classificá-los. Pego um, olho outro, abro alguns. Com muito carinho. Afinal, eles foram, desde minha infância, os maiores, melhores e mais fiéis amigos. Muitos deles me acompanham desde que abracei a carreira de professor. Em 1979, eles sofreram com as enchentes de Governador Valadares. Ficaram amarelos, com marcas de barro, desfigurados, mas não me abandonaram. Entre eles está a minha coleção com todas as obras do Guimarães Rosa. E de muitos mestres no ensino da linguística e da língua portuguesa.

Por outro lado, por vezes me vem à cabeça a terrível advertência de Santo Tomás de Aquino: timeo hominem unius libri: tenho medo de um homem de um livro só. Curioso, logo ele, que escreveu tantos e volumosos livros! Eu diria também, plagiando o famoso “doutor da Igreja”: tenho medo de um homem que não tem nenhum livro em sua casa.

De repente, dou de cara com um livrinho, humilde, escondido, apertado entre dois livros tijolais. Pequenino como esses livrinhos de reza, 52 páginas com espaço duplo e, ainda por cima, escrito em grego na página da esquerda e, na da direita, a tradução portuguesa. Logo, o livrinho tem apenas 25 páginas. Seu título: “Carta sobre a felicidade”. Seu autor: um grego antigo (341 a.C), nascido na ilha de Samos. Pouco conhecido, se comparado aos demais famosos filósofos gregos, ainda tem um nome que parece indicar que ele era pouco conhecido: Epicuro. Folheio o amigo rapidamente, pescando frases esparsas. Que beleza! Parece que está escrevendo uma carta para mim nos dias de hoje. Aliás, esse livro resume-se a uma carta dele dirigida a um de seus discípulos. Digo para mim mesmo: como posso ter coragem de doá-lo ou jogá-lo fora? Cubro-o com carinho e o recoloco na estante. E continuo a minha peleja.

Os livros são verdadeiros amigos porque, mudos e generosos, nos educam, ensinam, aconselham, respeitam e até nos repreendem. E não nos cobram nada. Isso é que é ser amigo. Estão sempre lá imóveis, em pé, apertadinhos, por vezes poeirentos, sempre disponíveis para entrar em ação. Fico imaginando como eles ficam felizes em serem convocados.

Coisa curiosa: tal como acontece conosco, aliás, com tudo que existe no universo, também os livros ficam velhos. Tal como nós, velhos física e mentalmente. Consumidos, amarelados, enfraquecidos no seu corpo, desatualizados e confusos em suas ideias. Mas podem viver muito mais que nós. Podem se tornar imortais. Aí me vem a angústia: livro-me deles? Não tenho coragem. Não quero abandonar quem sempre me foi fiel.

Manejando um por um dos meus livros, fico pensando qual será o destino deles quando eu deles me despedir. Meus herdeiros poderão doá-los a uma biblioteca, vendê-los para um “sebo” (lojas que comerciam livros usados e antigos), ou mesmo jogá-los fora. Mas serão sempre os meus livros e vou ficar com saudades deles.

Quem coleciona muito livro tem uma dor de cabeça adicional: emprestar. Há os que não querem gastar e recorrem a você pedindo algum livro emprestado. Às vezes, também, você fica tão entusiasmado com um livro que o passa a alguém, a amigos ou alunos. Tome cuidado: eles podem não se interessar pela leitura e, pior, não o devolvem. Lembro-me de estar certa vez numa rodinha de bate-papo com o saudoso Ulysses Guimarães. Lá pelo quarto whisky ele soltou essa: “Quem empresta livro ou disco é burro, mas, mais burro ainda é quem devolve”.

Dona Terezinha: mãe, musicista e professora

12 de Julho de 2012, por Rosalvo Pinto 0

No dia 17 de maio, deixou-nos, serenamente, a nossa conterrânea Terezinha Macedo Lara Melo, conhecida como “dona Terezinha do Quinzinho”. Além de forma respeitosa de tratamento, o “dona” é, sobretudo, a marca indelével da profissão de professora. Marca dessas pessoas que cumpriram e cumprem um papel fundamental na educação de todos nós.

Deixando-nos, na bela idade dos 86 anos, essa mãe dedicada, professora competente e amante da música vai deixar um vazio, vai deixar saudades. Tal como o dizem as belas palavras da mensagem por ocasião do seu falecimento: “Alma bondosa e digna de estima, ela despertou em todos que a cercavam um carinho que não pode ser esquecido. Sua partida nos entristece, mas suas lembranças nos consolam. Viverá eternamente na memória daqueles que a amaram”.

Dona Terezinha nasceu em Resende Costa no dia 26 de novembro de 1926, filha do sempre lembrado senhor Joaquim Pinto de Góes e Lara, o sô Quinzinho e de dona Heloísa Macedo Resende (dona Nhazinha). Seus sete outros irmãos são o Adão, o Joaquim (ambos falecidos), a Isabel, o Zeco, a Heloísa, a Lúcia, o Toninho (Antônio Pinto de Góes e Lara) e o Gonçalo. Pode-se dizer, uma família musical, prendada, que cantou e encantou Resende Costa com sua arte. Mas de dona Terezinha pode-se dizer que viveu desta arte. Enquanto teve fôlego e vida, dedicou seu dote musical a nossa cidade, como violinista na orquestra, cantora, maestrina, além de harmonista. Por anos a fio seus pés e seus dedos deram vida ao antigo harmônio da Matriz, acompanhando as músicas das cerimônias religiosas. Além disso, pintava, desenhava e dava aula de artes.

Terminado o 4º. ano de Grupo, a menina Terezinha foi levada para Ponte Nova, onde estudou no internato da Escola Normal Nossa Senhora Auxiliadora, das irmãs salesianas, formando-se, depois de cinco anos, como “normalista”, em 1942. Nesse período só vinha a Resende Costa para as férias de fim de ano. Numa dessas viagens (que eram de trem e duravam de 15 a 20 horas), aconteceu um acidente de descarrilhamento, do qual a menina Terezinha saiu ilesa, porém toda suja de carvão, chegando assim até Ponte Nova.

Começava outra fase importante de sua vida: a de educadora e professora. Foi minha professora no Grupo desde a metade do 1º. ano até a metade do 4º. No primeiro semestre do 1º. ano começamos com uma jovem professora, vinda de Belo Horizonte. Lembro-me apenas do seu nome (ou apelido), que achávamos muito engraçado: dona Tenga. No 4º. ano minha família mudou-se no mês de julho para São João del-Rei, onde terminei o curso primário. Lembro-me do gesto de delicadeza da dona Terezinha: à noitinha, na véspera de minha partida, ela apareceu em minha casa com uma lembrancinha na mão, para se despedir de mim.

Dona Terezinha era uma excelente e dedicada professora. Colocava-me sempre junto ao Gonçalo, seu irmão mais novo, na carteira. Era no tempo das carteiras duplas, base de ferro e mesa de madeira, com o buraco no centro para colocar o tinteiro. O que mais se via eram os tinteiros entornando, mãos e roupas sujas de tinta. Lembro-me, como se fosse hoje, de que a meu lado à esquerda na outra fileira, ficava a Carminha do sô Álvaro (Maria do Carmo Mendes de Almeida, já falecida), sempre com uma bonita fita na cabeça. Também pudera não me lembrar, pois os meninos não tiravam os olhos dela, bonita, estudiosa, a melhor aluna da sala.

Além de professora no Grupo Assis Resende, dona Terezinha foi, posteriormente, professora e diretora do Grupo “Conjurados de Resende Costa”, atualmente escola municipal.

Dona Terezinha casou-se, em princípios dos anos cinquenta, com o senhor Geraldo Melo. Em 1955, estando no colégio dos salesianos em São João del-Rei, vim a Resende Costa com o coral do seminário para ordenação dos padres José Hugo e Antônio das Mercês Gomes. Soube que havia nascido o primeiro filho dela. “Vai fazer uma visita à dona Terezinha”, foi a primeira recomendação dos meus pais. Fui retribuir seu gesto de quando mudamos de Resende Costa. Lá estava o Edésio, recém-nascido. Depois vieram o Erasmo, a Tida, a Lúcia, a Heloísa, a Macrina e a Glorinha.

Vasculhando os arquivos da Escola Assis Resende, descobri a lista de matrícula dos alunos que entraram no Grupo em 1949. São duas listas separadas, meninas e meninos. A lista contém a idade e o nome do pai de cada “calouro”. Esses foram os alunos que dona Terezinha levou do 1º. ao 4º. ano. Deixou saudades em todos nós. Para homenageá-la, carinhosamente, neste momento de sua derradeira despedida, eu convido meninas e meninos, meus colegas, presentes ou já ausentes, para assinarem comigo este texto:

Meninas: 1. Antônia do Sacramento – 2. Cecília Iria de Jesus – 3. Cristina Maria de Resende - 4. Elisa Maria de Resende – 5. Elzi Maria do Socorro – 6. Efigênia Maria do Rosário – 7. Francisca Maria de Assis – 8. Geralda Coelho de Resende – 9. Helena Maria de Jesus – 10. Ione Pinto – 11. Iraci Maria da Silva – 12. Maria da Penha da Silva – 13. Maria Ozana da Costa – 14. Maria do Rosário de Resende – 15. Maria Jilânia dos Santos – 16. Maria José de Jesus – 17. Maria de Lourdes Peluzzi – 18. Maria do Carmo Guimarães – 19. Mariana Campos – 20. Maria da Conceição Pinto – 21. Maria José de Assis Neta – 22. Maria da Penha de Assis Pinto – 23. Maria Helena Andrade – 24. Maria de Lourdes Reis e Silva – 25. Maria de Lourdes Resende – 26. Marlene Urbano de Resende – 27. Maria do Carmo de Almeida - 28. Nilda do Socorro – 29. Sudária Alves de Andrade – 30. Sebastiana Maria de Jesus – 31. Vera Lúcia de Sousa Melo – 32. Valdivina de Jesus – Marlene de Lourdes.  

Meninos: 1. Antônio de Assis Santos – 2. Ercílio Barbosa – 3. Francisco de Assis Resende – 4. Gonçalo de Resende Lara– 5. Geraldo Magela dos Santos – 6. Isaias Herculano dos Santos – 7. Inácio Sacramento Silva – 8. Jacob Inácio – 9. José Lourenço dos Santos – 10. José Maria da Luz – 11. José Pedro dos Santos – 12. José dos Passos de Oliveira – 13. José Geraldo Celestino – 14. José Olavo Monteiro – 15. José do Rosário Santos – 16. João Benedito de Assis – 17. Luiz Severiano dos Santos – 18. Luiz Ferreira de Andrade – 19. Milton de Miranda Santos – 20. Mário Jesus Resende – 21. Rosalvo Gonçalves Pinto– 22. Renato Gonçalves – 23. Rubens Belo de Resende – 24. Tarcísio Otoni dos Santos – 25. Vicente Ferreira – 26. Valeriano José de Souza - 27. Murilo Fonseca Chaves – 28. José Célio Alves de Andrade – 29. Hélio José Messias Santos – 30. Francisco Alves Ribeiro.

(Fonte: livro de matrícula ao 1º. ano do Grupo – 1949)

Resende Costa centenária

13 de Junho de 2012, por Rosalvo Pinto 0

O termo “centenária” certamente será o mais usado neste resto de 2012 em Resende Costa. Quando São Paulo comemorou seus 400 anos (1554/1954), o músico e sambista Waldir Azevedo compôs o dobrado “São Paulo Quatrocentão”. Foi um sucesso. Quase virou o “hino municipal” de São Paulo e conquistou o Brasil. Fico pensando se nós, resende-costenses, não poderíamos variar e criar também a  “Resende Costa centona”. Ficaria mais charmoso e mais popular do que “centenária”, termo elegante e erudito. 

A marca dos cem anos me faz pensar em muitas coisas curiosas sobre nossa cidade. Vou ruminando algumas.

Voltando às origens do povoado primitivo, no século 18, fico imaginando quem teria por primeiro galgado essa enorme pedra. Obviamente, terá sido algum índio da tribo cataguás, que habitava essas paragens. Mas índio não gosta de pedra, gosta mais é de mato e de rios. Pode ter sido algum português, talvez um paulista ou mesmo um mineiro. Imagino esse alguém no topo desse colosso de pedra, sem casas e sem árvores, donde se podia descortinar uma visão de 360 graus.

Quem terá tido a feliz ideia de começar a morar sobre esta pedra? Terá sido o capitão José de Resende Costa e sua família? Teria ele ido primeiro para a Fazenda dos Campos Gerais? Não sabemos. O fato é que foi naturalmente nascendo um pequeno povoado. Tudo no mundo tem que ter um nome e logo deve ter aparecido o “Arraial da Lage”. Não poderia haver nome mais apropriado e bonito.  

O mais intrigante é pensar que nossos ancestrais resolveram criar um arraial no topo de uma imensa pedra, a 1.140 metros de altura.  O costume mais generalizado sempre foi escolher um local possivelmente plano, às margens de córregos ou rios. Na verdade, o problema da água não era tão problema assim, pois, miraculosamente, ao redor da pedra brotavam cinco pequenas minas ou fontes. Os futuros moradores é que fizeram o grande favor de acabar com elas. Décadas atrás elas eram chamadas de fonte “da chácara”, “da mina”, “dos cavalos”, “do João de Deus” (cachoeira) e “da ilha” (que ilha seria essa, que acabou virando “ia”, “a fonte da ia”?).

É sabido que os portugueses trouxeram para o Brasil a religião católica. Então, a primeira coisa que apareceu por aqui teria sido uma cruz ou um cruzeiro, bem no topo da pedra. E logo depois, uma capelinha. É claro que essa capelinha não poderia ter um nome, um santo (ou santa) padroeiro melhor e mais significativo do que “Capela de Nossa Senhora da Penha”. “Penha” é, segundo os dicionaristas, “grande massa de rocha isolada e saliente, penhasco, penedo etc.”. Entretanto, algum conhecedor da França terá sugerido acrescentar o “de França”, referente a alguma igreja ou devoção também situada em um penhasco naquele país. Ou mesmo, a primeira imagem teria sido trazida da França. Enfim, o “de França”, por um desses motivos, terá vindo parar no antigo arraial. Esse nome parece ter caído em desuso por muito tempo, tendo voltado a ser usado mais recentemente.

Isso não aconteceu, por exemplo, com a Penha, da cidade de Vitória, no Espírito Santo. Quem não conhece a beleza daquela penha? Quem vai a Vitória e não sobe ao Convento da Penha não conhece Vitória. O nome da cidade, Vitória, se deve ao episódio da defesa quando da tentativa de invasão pelos holandeses. E aquele penhasco foi um dos baluartes dessa defesa. Tal como em nossa cidade, a penha é motivo de orgulho para os capixabas. Lá é o Convento da Penha, aqui a matriz de Nossa Senhora da Penha.

Entretanto, o Arraial da Lage teve também seus problemas, em função de sua localização. O nosso primeiro historiador, o professor José Augusto de Rezende (nascido na antiga Conceição da Barra), relata-nos em seu opúsculo publicado em 1920, o fato de que “no centro do arraial cruzavam duas estradas: uma ia do norte ao sul da Província; outra, do Rio a Goyaz. À margem desta última estrada, próximo e dentro do antigo arraial, havia ranchos (abrigos para transeuntes), tavernas. Nessas tavernas havia accumulo de gentes de costumes péssimos e de maus instintos; uns eram do próprio logar, outros de fora, cuja gente reunidas em as casas de tavernas, fasiam algazarras etc.”

Se, por um lado, passar pelo arraial era mais penoso, pela sua altitude, por outro, favorecia a segurança das mercadorias que transitavam por essa região. Além disso, o professor nos lembra que “nos tempos primitivos do povoamento do solo brasileiro e mineiro, davam preferência aos logares mais elevados que menos favoreciam aos ataques dos inimigos”.

Relata-nos também o professor um fato pouco conhecido, que engrandece a figura do nosso inconfidente José de Resende Costa, o filho. “Em função do culto religioso, da instrução e dos pobres, o inconfidente José de Rezende Costa Filho deixou uma serie de apólices, com as quaes mantinham no logar, um Capellão, e uma escola para os pobres”.

E termino ainda com as belas palavras do professor José Augusto, referindo-se ao arraial: “um logar tão alto, cuja bellesa natural é innegavel, porque o horizonte é vasto e o clima salubérrimo”.

Nós e os outros

14 de Maio de 2012, por Rosalvo Pinto 0

Nós somos nós. E os outros? São apenas os outros. Nós, os que sempre temos razão, os melhores, os certos, os impecáveis, os corretos, os espertos e quantos adjetivos haja. E os outros, coitados, os ignorantes, os metidos, os fingidos, os vaidosos, os reacionários, os radicais, os enjoados, os trapaceiros, os exploradores, os invejosos, os sem educação...

Inexoravelmente, vivemos em sociedade. O mais obscuro dos seres humanos, vivendo no mais longínquo dos lugares, não escapa das garras de sua sociedade. Amarrado às leis que garantem a vida nesta sociedade, é-lhe impossível viver sem ela.

As outras espécies também vivem em sociedades, umas mais organizadas (e gregárias, como as formigas, as abelhas, os cupins etc.), outras menos. Mas todas vivem em paz, regidas pelas leis da natureza.  Os humanos, evoluindo a partir de sociedades mais organizadas, tornaram-se, através da criação da linguagem, seres racionais e conscientes. Essa “passagem” se deu naturalmente, segundo os cientistas chamados “evolucionistas” (Darwin, Lamarck e outros); para religiões como o judaísmo, o cristianismo e outras, que acreditam no “criacionismo”, essa passagem se deu pela intervenção de um ser superior, um Deus.

Como consequência da capacidade de pensar, raciocinar e ter consciência da existência de si, dos outros e do mundo, os humanos tornaram-se livres para optar entre a prática do bem e a do mal. Por outro lado, o instinto de preservação da espécie e de si mesmos os leva a lutar entre si. Daí advém a competição, as injustiças, as guerras e o ódio.

Dois exemplos, um simples e banal, outro cruel. Basta entrar no trânsito das grandes cidades para o ser humano começar a encarar os motoristas a seu lado como seus inimigos. Por qualquer vacilo você vai ouvir buzinas raivosas, palavrões e gestos obscenos. O cruel e revoltante, vemos quase todos os dias pela televisão: através das câmeras, a frieza e crueldade com que ladrões e bandidos atiram e matam suas vítimas. Serão mesmo seres humanos?

Pelo instinto de nossa espécie, cada um de nós é o guardião de nós mesmos e da sociedade na qual vivemos. Como não podemos escapar da sociedade, criamos um mundo nosso, individualista, que nos faz ver nos outros os nossos inimigos, os que vão nos prejudicar, roubar, chantagear e zombar de nós. Para escapar desses perigos, criamos uma máscara que nos protege, a máscara do fingimento e da mentira.

Fingimos sempre de todas as maneiras. Encontrando-nos com os outros, elogiamos, bajulamos, sorrimos, tentando ostentar laços de amizade; de longe, nós os criticamos, falamos mal deles, denegrimos suas imagens.

Quem não é assim? Quem julga não ser, que “jogue a primeira pedra”, como sentenciou o Cristo àqueles que queriam apedrejar a pecadora. Assim é o dia-a-dia de nossa vida dita “social”, mas que de social, de solidariedade, de atitudes de respeito pouco ou nada tem.

Um exemplo dos nossos dias: durante os nove anos de seu mandato, o senador Demóstenes Torres (ex-DEM, de Goiás) investiu-se da máscara do parlamentar-modelo, do defensor da ética e do rigor contra a corrupção (tendo julgado com rigor réus de CPIs das quais participou). Sua máscara caiu quando, ao serem descobertas suas trapaças, mentiu deslavadamente diante de seus pares.

Essas ideias me fazem lembrar meu saudoso pai, o Góes. Um dia ele foi de Resende Costa a São João del-Rei e lá ouviu um sermão do padre Francisco Gonçalves, o fundador da obra salesiana naquela cidade. Eu era criança e dele ouvia repetir o sábio ensinamento do sermão, que marcou sua vida: “nesta vida somos como viajantes, caminhando um atrás do outro, cada um com seu saco de defeitos nas costas. Só vemos os defeitos dos outros, nunca os nossos”.

É de se perguntar: não seria essa uma visão negativista do mundo e dos humanos? É. É realista? Talvez seja. Se realista, seria possível mudá-la?  Acredito que sim.  

As religiões (algumas, as sérias, as não enganadoras e não movidas pelo dinheiro) podem contribuir para uma convivência mais harmoniosa nas sociedades humanas, porque ensinam a ética, o respeito, a solidariedade e estimulam a paz. Muitos personagens dessas religiões passaram por esse mundo pregando esses valores. Mas quem passa esses valores às novas gerações é a educação, sobretudo a familiar. Se essa falhar, não adianta o complemento da educação escolar, por melhor que ela seja. Singelamente, é a estória do “é de pequenino que se torce o pepino”. Ou da “cuia que leva pimenta, nunca mais perde o ardume”, da sabedoria popular do saudoso e sempre lembrado Sô Tonico Chalé.

Assim somos nós, esses seres desconhecidos, como definia, no século passado, o biólogo e pensador francês Alexis Carrel, em sua clássica obra “O homem, esse desconhecido”. Nela, parece que ele deixou especialmente para mim o exato pensamento para eu fechar este texto: "Só o amor é capaz de criar nas sociedades humanas a ordem que o instinto estabeleceu há milhares de anos no mundo das formigas e das abelhas”.

Resende Costa: reminiscências e curiosidades

09 de Abril de 2012, por Rosalvo Pinto 1

Puro privilégio: estou aqui, num domingo, sozinho, almoçando no restaurante Irassol, aquela comidinha mineira. Estou lá na mesa do fundo, de costas para todos os demais comensais, propositadamente. A moldura da janela transforma-se num quadro de esfuziante beleza. Enquanto belisco minha cachacinha, cortesia da casa, tiragostando uma carninha de porco, estou de frente para uma paisagem que se abre e se descortina diante dos meus olhos.

Chove. Chuva e sol: “casamento da raposa”, como se dizia antigamente. À minha esquerda, o casario do bairro “Bela Vista”. Ao fundo e à direita, um verdíssimo de sumir de vista. O Bela Vista é um bairro relativamente novo. Está numa pequena elevação, o casario descendo pelas encostas abaixo. Tem até sua igreja. Levanto-me e olho logo abaixo: que pena, vejo apenas os restos que sobraram da antiga “laje da cadeia”.

O casario é multicolorido. Casas, em sua maioria novas, bem pintadas, um tom de alegria. E a curiosidade: a maioria delas parecidas. Obedecem ao “estilo resende-costino”, tal como nossos antepassados portugueses tiveram o seu “estilo manuelino”.

No estilo resendino todas as casas têm três andares: o térreo, normalmente destinado a lojas, oficinas, escritórios; no segundo, a moradia propriamente dita e no terceiro, um espaço amplo com um enorme telhado. Nesse, no dia-a-dia, estendem-se roupas e trabalha-se nos teares e, de vez em quando, festinhas, encontros, churrascos etc.

Nos meus tempos de menino (e lá se vão anos...), ali onde é hoje o Bela Vista, havia apenas o velho campo do glorioso “Expedicionários Futebol Clube”, o orgulho dos resende-costenses. Ficava no terreno da chácara do Manoel Cassiano. E ali acabava a cidade por aquele lado. Vinha o pasto do Ademar Aarão, posteriormente do Chico Carioca. Era onde, nas tardes agradáveis de dezembro e janeiro, muitas famílias íamos catar gabirobas. Bons tempos!

Resende Costa nasceu em cima da uma grande laje. Ao ser batizada, a uns 260 anos atrás, como “Arraial da Lage”, era uma laje só, escrita com “g”.  No seu topo, a capela de Nossa Senhora da Penha de França. Com o tempo, a laje foi sendo ocupada pelos moradores. Então, sobraram três pedaços de laje, conhecidas até hoje por “lajes de cima”, “lajes de baixo” e a “(ex)-laje da cadeia, onde estou.

Engrossa a chuva. O ronco surdo e amedrontrador de um trovão escorre pelas lajes e desaparece nas paragens verdes do horizonte.

Mais ao fundo, uma caminhonete sobe, vagarosamente, o “morro da Nega”. Um pedestre, também vagarosamente, sobe pelo meio da rua. O veículo se vê obrigado a contorná-lo. Curiosidade, Resende Costa cresceu, a cidade virou um “colosso de carros” nas ruas, mas o resende-costense ainda vive no passado: tem o hábito de andar no meio da rua. Que se danem os carros. 

Lá na linha do horizonte, uma cortina de chuva ocultou a serra, lá pras bandas de Lagoa Dourada.

Outro trovão? Não, agora o barulho é outro: passa em frente ao restaurante um daqueles carros que mais parecem trovões ambulantes pelas ruas da cidade. Dizem que é música... Pode até ser, pois assim como a cidade, também a música mudou.

Resende Costa modernizou-se muito rapidamente. A Cemig, a Copasa e a ligação asfáltica até rodovia MG 383. O êxodo rural, em busca de grandes cidades e depois atraído pelo movimento do artesanato local.

A modernização trouxe os benefícios do desenvolvimento econômico: novos bairros, comércio, construção civil, atendimento de saúde, escolas, empregos. Por outro lado, como qualquer outra cidade desenvolvimentista, vieram os malefícios do trânsito intenso de veículos, que atravessam ruas em alta velocidade, o barulho, o lixo, o incômodo das festas noturnas, a violência, as drogas, as trapalhadas financeiras etc.

Muitas tradições culturais e religiosas desapareceram. O cinema, o teatro (que de tanto em tanto teima em ressurgir...); os cruzeiros decadentes e abandonados; as pequenas cruzes coloridas nas portas das casas, enfeitadas com papel celofane e crepom, na quaresma; os passeios na avenida, os leilões, quermesses e barraquinhas, para angariar dinheiro etc.   

A vida religiosa da cidade mudou com as novidades do Concílio Vaticano II (1962-1965) e a abertura para as denominações evangélicas, simplesmente “proibidas” de funcionar no município até meados do século passado.

As mudanças socioeconômicas, culturais e religiosas implicaram mudanças no uso da língua portuguesa. Os choferes viraram motoristas; as jardineiras, ônibus; os “negócios” e armazéns viraram lojas, supermercados; as alfaiatarias, butiques; as vendas, bares e butecos; o Grupo Escolar virou Escola Estadual; os carapinas viraram marceneiros; os ferreiros e os “folheiros” (lembram-se do Manezinho foiero?) viraram serralheiros...

Como poetizava e cantava o Chico Buarque, “o tempo rodou num instante, nas voltas do meu coração ... mas eis que chega a roda-viva e carrega a saudade pra lá...”