O pastor de ovelhas!
12 de Abril de 2010, por Rafael Chaves 0
Alguém da família tinha de ser padre, ou irmã de caridade. Famílias grandes aquelas, como essa, de onze.
Padre José Hugo andou abduzindo o Francisco até Lagoa Dourada, aos domingos, em seu jipe. Lagoa Dourada para ele, que tudo observava, era outro planeta. Não um planeta de terra, água, fogo e ar e sim, um planeta dourado de crepúsculos intermináveis e de brilhos auríferos. De nada adiantou! Francisco voltava às segundas-feiras à terra, para desgosto do Padre José Hugo e, talvez, de seus pais, seduzido pelos quatro elementos empedoclianos. Enfim, haveria de ser mais um entre os pecadores, ser humano comum, como de fato ainda o é.
Luiz andou internado pelos colégios de Cachoeira do Campo e Araxá, predisposto aos discursos docentes dos padres Salesianos, convencido de sua inclinação religiosa. Costumava pular janelas para fugir das noites solitárias do alojamento para visitar as meninas da cidade. Lá aprendeu a acender as luzes do galpão avícola para que as galinhas botassem seu segundo ovo diário. De nada adiantou! Ou melhor, fez-se professor, como convém a alguém de espírito Salesiano. E Químico, para entender a reação das galinhas à luz. Fato é que as mocinhas, não se sabe ao certo se de Cachoeira do Campo ou Araxá, o convenceram de que jamais seria celibatário.
Ele? Ele não se lembrava mais de ter pensado em ser padre. Talvez porque deixasse que, pela probabilidade, haveria de ser outro ou outra, não ele. Andou errante e eclético pelo mundo.
Os outros dois - mais novos que ele -, nasceram em outro tempo, contemporâneos da modernidade que invadia a sociedade de tal modo que havia outros meios, outras profissões.
Quanto às mulheres, suas irmãs, jamais soube dos pensamentos e desejos delas. Embora não soubesse, fácil adivinhar por suas histórias: todas se casaram, tiveram filhos e viveram felizes para sempre.
Mas a vida é cíclica. E ele repensou suas convicções e anseios e se disse: quero ser Padre! Avistou e se imaginou na casa paroquial, “quem sabe o Palácio Episcopal?” A realidade, todavia, era cruel. O tempo implacável. Não lhe seria possível estudar Filosofia e Teologia a tempo de usufruir, literalmente, desse “benefício”. Além do mais, ao lado de onde trabalhava, consultou numa casa de artigos religiosos os preços das taças, hóstias, vestimentas e todos os paramentos eclesiásticos indispensáveis aos ritos católicos e se deu conta de que, afora os dispendiosos investimentos intelectuais, esses materiais seriam também muito elevados, cerca de cinco mil reais.
A desesperança tomou conta de seu espírito por uns momentos. Poucos instantes. Fez as contas: imunidade tributária! Imaginou-se sem ter que pagar imposto nenhum, livre e desobrigado que estaria de Imposto de Renda, IPTU, IPVA e tudo que é I, de imposto. Fez outras contas: moradia, carro, secretário..., “quiçá dez por cento”.
“Dez por cento?” E não é que passava em frente à loja da Cia. do Terno? Promoção de terno, camisa e gravata, tudo a R$ 88,00, em dez prestações, sem juros. Refez as contas: investimento de R$ 88,00, mais imunidade de tributos, mais certa convicção de que, além dos benefícios terrenos, alcançaria o reino dos céus. Também lhe veio à mente a mansão do Edir Macedo, a Catedral da Fé imponente na Avenida Olegário Maciel, em Belo Horizonte, os milagres de que seria capaz e os testemunhos dos crédulos de todas as denominações. Tudo isso afora o dinheiro a ser queimado na fogueira santa. Perfeito!
“Vou ser Pastor!”
À míngua de ser admitido nalguma igreja, resolveu fundar a sua. Do Brasil, nacional, do cone sul da América, latino americana, internacional, mundial, universal, todas já existiam. “Cosmo!” - pensou, profético - “o cosmo deve ser maior que o universo!”. Naquele dia nascia a Igreja Cosmética do Big Bang de Deus, da qual se nomeou bispo. Ou teria sido Papa?
Padre José Hugo andou abduzindo o Francisco até Lagoa Dourada, aos domingos, em seu jipe. Lagoa Dourada para ele, que tudo observava, era outro planeta. Não um planeta de terra, água, fogo e ar e sim, um planeta dourado de crepúsculos intermináveis e de brilhos auríferos. De nada adiantou! Francisco voltava às segundas-feiras à terra, para desgosto do Padre José Hugo e, talvez, de seus pais, seduzido pelos quatro elementos empedoclianos. Enfim, haveria de ser mais um entre os pecadores, ser humano comum, como de fato ainda o é.
Luiz andou internado pelos colégios de Cachoeira do Campo e Araxá, predisposto aos discursos docentes dos padres Salesianos, convencido de sua inclinação religiosa. Costumava pular janelas para fugir das noites solitárias do alojamento para visitar as meninas da cidade. Lá aprendeu a acender as luzes do galpão avícola para que as galinhas botassem seu segundo ovo diário. De nada adiantou! Ou melhor, fez-se professor, como convém a alguém de espírito Salesiano. E Químico, para entender a reação das galinhas à luz. Fato é que as mocinhas, não se sabe ao certo se de Cachoeira do Campo ou Araxá, o convenceram de que jamais seria celibatário.
Ele? Ele não se lembrava mais de ter pensado em ser padre. Talvez porque deixasse que, pela probabilidade, haveria de ser outro ou outra, não ele. Andou errante e eclético pelo mundo.
Os outros dois - mais novos que ele -, nasceram em outro tempo, contemporâneos da modernidade que invadia a sociedade de tal modo que havia outros meios, outras profissões.
Quanto às mulheres, suas irmãs, jamais soube dos pensamentos e desejos delas. Embora não soubesse, fácil adivinhar por suas histórias: todas se casaram, tiveram filhos e viveram felizes para sempre.
Mas a vida é cíclica. E ele repensou suas convicções e anseios e se disse: quero ser Padre! Avistou e se imaginou na casa paroquial, “quem sabe o Palácio Episcopal?” A realidade, todavia, era cruel. O tempo implacável. Não lhe seria possível estudar Filosofia e Teologia a tempo de usufruir, literalmente, desse “benefício”. Além do mais, ao lado de onde trabalhava, consultou numa casa de artigos religiosos os preços das taças, hóstias, vestimentas e todos os paramentos eclesiásticos indispensáveis aos ritos católicos e se deu conta de que, afora os dispendiosos investimentos intelectuais, esses materiais seriam também muito elevados, cerca de cinco mil reais.
A desesperança tomou conta de seu espírito por uns momentos. Poucos instantes. Fez as contas: imunidade tributária! Imaginou-se sem ter que pagar imposto nenhum, livre e desobrigado que estaria de Imposto de Renda, IPTU, IPVA e tudo que é I, de imposto. Fez outras contas: moradia, carro, secretário..., “quiçá dez por cento”.
“Dez por cento?” E não é que passava em frente à loja da Cia. do Terno? Promoção de terno, camisa e gravata, tudo a R$ 88,00, em dez prestações, sem juros. Refez as contas: investimento de R$ 88,00, mais imunidade de tributos, mais certa convicção de que, além dos benefícios terrenos, alcançaria o reino dos céus. Também lhe veio à mente a mansão do Edir Macedo, a Catedral da Fé imponente na Avenida Olegário Maciel, em Belo Horizonte, os milagres de que seria capaz e os testemunhos dos crédulos de todas as denominações. Tudo isso afora o dinheiro a ser queimado na fogueira santa. Perfeito!
“Vou ser Pastor!”
À míngua de ser admitido nalguma igreja, resolveu fundar a sua. Do Brasil, nacional, do cone sul da América, latino americana, internacional, mundial, universal, todas já existiam. “Cosmo!” - pensou, profético - “o cosmo deve ser maior que o universo!”. Naquele dia nascia a Igreja Cosmética do Big Bang de Deus, da qual se nomeou bispo. Ou teria sido Papa?
Estatística
14 de Marco de 2010, por Rafael Chaves 0
O conceito é essencial para se entender as coisas. Se se diz “carro”, por exemplo, qualquer pessoa trará à sua mente a sua representação do que seja “carro”. Alguns imaginarão um Mercedez Benz, outros um Fusquinha, mas todos, creio, invariavelmente, construirão em sua mente um objeto com quatro rodas, motor, volante, essas coisas. A palavra é um som que pode (ou não) ser escrito e que serve para dar significado às coisas. É no significado que nos entendemos, óbvio!
Para dizer o que se dirá, necessário conceituar. Conceituemos, pois. A estatística é uma parte da matemática que, utilizando-se das teorias das probabilidades, explica a frequência da ocorrência de eventos. Esses eventos podem ser obtidos através da observação e de experimentos. Antes de podermos estimar e prever os fenômenos futuros, estamos diante da aleatoriedade e da incerteza.
Conheço gente que acompanha o resultado do jogo do bicho de tal modo a determinar que a probabilidade é de dar touro na cabeça. Joga confiante no touro. Dá vaca! Aliás, parêntesis, eu não sei por que touro e vaca são números distintos no jogo do bicho. Acaso são espécies diferentes? Acaso touro e vaca, para efeito do jogo, tenham outros significados, aqui inconfessáveis? Foi daí que surgiu a zebra, o 26º bicho do jogo do bicho. A zebra é aquela aposta que você deveria ter feito mas não fez. A zebra é o resultado que você sabe sempre que vai dar, mas que não tem como você jogar nele.
Pode-se determinar uma ocorrência pelo experimento ou pela observação. Parte-se de uma pergunta ou de uma suposição e tenta-se organizar os dados para confirmar (ou não) a resposta que se tenha concebido. Digamos, por exemplo, qual a probabilidade de se morrer ao ser atingido por uma bala de revólver 38 no coração? Ninguém, em sã consciência, vai pegar um revólver e sair atirando (fazendo o experimento) no coração dos outros para confirmar se o objeto do experimento morre ou não. Os fatos, por si só, desde que a arma foi inventada, confirmam e comprovam que, fatalmente, o tiro no coração é fatal!
Outro dia, sentado num bar, estatístico, passei à observação.
O primeiro fato que me chamou a atenção foi o de uma senhora obesa que se sentou numa mesa próxima à minha e pediu uma coca zero e uma coxinha (não vou dizer o tamanho da coxinha). E ainda reiterou ao garçom a recomendação “coca zero, viu?” . Porque todo obeso toma refrigerante “zero” acompanhado de uma (ou duas) suculenta coxinha?
Enquanto eu matutava sobre isso, um automóvel passou lentamente em frente ao bar, com a tampa do porta-malas aberto e som na maior altura. Mais alto que o Everest. “É creu! É creu nelas! É creu! É creu nelas! Vambora, que vamo! Vambora, que vamo!” , tocava. No veículo, quatro sujeitos, bonés com as abas para trás ou para o lado da cabeça, com os braços apoiados nas respectivas portas do carro, desfilavam olhando de lado a outro da rua. Porque todo sujeito que tem aparelhagem de som em seu carro junta sua turma do mesmo sexo e sai exibindo a si e a seu carro, fazendo questão de nos obrigar a ouvir o seu péssimo gosto musical?
Por sobre o carro vi alguém na janela, cotovelos apoiados no parapeito, punhos apoiando o queixo, olhando insistentemente para mim. “Seria para mim? Amanhã vou saber!” . Parecia investigar o que eu estava fazendo ali, naquele bar, naquela hora, conversando com aquelas pessoas que estavam ao meu lado. Tudo para, mais tarde, espalhar o que vira e o que não vira aos quatro ventos e quatro cantos, com a pretensão da utilidade pública de suas notícias. Porque todo fofoqueiro é mal amado?
A tarde já se convertera em noite e eu já tinha tomado umas tantas, tantas que não sei quantas. E na mesa do bar havia outros tantos, de tantos que nem sei quantos passaram por ela. Mesa cheia de gente: burburinho. E conversa jogada fora enquanto desce cerveja e batata frita e bife acebolado. Até a hora em que, súbito, a mesa minguou de gente, a exata e inevitável hora de “Garçom, a conta por favor!” . Por que toda vez que sento em mesa de bar cheia de gente levo prejuízo?
Dizem que estatística é igual a mulher de biquíni, mostra (quase) tudo mas não mostra o essencial. Às vezes tudo me parece tão cristalino, tão óbvio, mas depois, pensando bem, tem sempre alguma coisa emperrando, mínima que seja, me dizendo que não.
Para dizer o que se dirá, necessário conceituar. Conceituemos, pois. A estatística é uma parte da matemática que, utilizando-se das teorias das probabilidades, explica a frequência da ocorrência de eventos. Esses eventos podem ser obtidos através da observação e de experimentos. Antes de podermos estimar e prever os fenômenos futuros, estamos diante da aleatoriedade e da incerteza.
Conheço gente que acompanha o resultado do jogo do bicho de tal modo a determinar que a probabilidade é de dar touro na cabeça. Joga confiante no touro. Dá vaca! Aliás, parêntesis, eu não sei por que touro e vaca são números distintos no jogo do bicho. Acaso são espécies diferentes? Acaso touro e vaca, para efeito do jogo, tenham outros significados, aqui inconfessáveis? Foi daí que surgiu a zebra, o 26º bicho do jogo do bicho. A zebra é aquela aposta que você deveria ter feito mas não fez. A zebra é o resultado que você sabe sempre que vai dar, mas que não tem como você jogar nele.
Pode-se determinar uma ocorrência pelo experimento ou pela observação. Parte-se de uma pergunta ou de uma suposição e tenta-se organizar os dados para confirmar (ou não) a resposta que se tenha concebido. Digamos, por exemplo, qual a probabilidade de se morrer ao ser atingido por uma bala de revólver 38 no coração? Ninguém, em sã consciência, vai pegar um revólver e sair atirando (fazendo o experimento) no coração dos outros para confirmar se o objeto do experimento morre ou não. Os fatos, por si só, desde que a arma foi inventada, confirmam e comprovam que, fatalmente, o tiro no coração é fatal!
Outro dia, sentado num bar, estatístico, passei à observação.
O primeiro fato que me chamou a atenção foi o de uma senhora obesa que se sentou numa mesa próxima à minha e pediu uma coca zero e uma coxinha (não vou dizer o tamanho da coxinha). E ainda reiterou ao garçom a recomendação “coca zero, viu?” . Porque todo obeso toma refrigerante “zero” acompanhado de uma (ou duas) suculenta coxinha?
Enquanto eu matutava sobre isso, um automóvel passou lentamente em frente ao bar, com a tampa do porta-malas aberto e som na maior altura. Mais alto que o Everest. “É creu! É creu nelas! É creu! É creu nelas! Vambora, que vamo! Vambora, que vamo!” , tocava. No veículo, quatro sujeitos, bonés com as abas para trás ou para o lado da cabeça, com os braços apoiados nas respectivas portas do carro, desfilavam olhando de lado a outro da rua. Porque todo sujeito que tem aparelhagem de som em seu carro junta sua turma do mesmo sexo e sai exibindo a si e a seu carro, fazendo questão de nos obrigar a ouvir o seu péssimo gosto musical?
Por sobre o carro vi alguém na janela, cotovelos apoiados no parapeito, punhos apoiando o queixo, olhando insistentemente para mim. “Seria para mim? Amanhã vou saber!” . Parecia investigar o que eu estava fazendo ali, naquele bar, naquela hora, conversando com aquelas pessoas que estavam ao meu lado. Tudo para, mais tarde, espalhar o que vira e o que não vira aos quatro ventos e quatro cantos, com a pretensão da utilidade pública de suas notícias. Porque todo fofoqueiro é mal amado?
A tarde já se convertera em noite e eu já tinha tomado umas tantas, tantas que não sei quantas. E na mesa do bar havia outros tantos, de tantos que nem sei quantos passaram por ela. Mesa cheia de gente: burburinho. E conversa jogada fora enquanto desce cerveja e batata frita e bife acebolado. Até a hora em que, súbito, a mesa minguou de gente, a exata e inevitável hora de “Garçom, a conta por favor!” . Por que toda vez que sento em mesa de bar cheia de gente levo prejuízo?
Dizem que estatística é igual a mulher de biquíni, mostra (quase) tudo mas não mostra o essencial. Às vezes tudo me parece tão cristalino, tão óbvio, mas depois, pensando bem, tem sempre alguma coisa emperrando, mínima que seja, me dizendo que não.
Nem oito nem oitenta: noventa!
11 de Fevereiro de 2010, por Rafael Chaves 0
Chiquinho, Chiquinho do Jota, Chiquinho da Jardineira, Chiquinho da Vanda, Chiquinho... A gente vai vivendo e a vida vai nos mudando e mutando, assim meio sem planejamento, sem que nos apercebamos, às vezes mansamente, às vezes aos solavancos, ao sabor dos ventos de cada tempo, como se fôssemos estações do ano. Não é para pior nem para melhor: há tanta beleza nas flores quanto nas sementes, há tanta sensação no calor quanto no frio.
“Os Chiquinhos” está fazendo noventa anos. Não são oito, nem oitenta: são noventa! Noventa são muitas estações. E quantas belezas e sensações permitem esse tempo? Devem ter sido tantas e tantas que não há como descrevê-las, como desvendá-las. Eu nem mesmo tentaria, eu que mal dou conta de entender os meus anos de vida, e são pouco mais da metade disso.
Churchill, inglês, em torno de seus noventa, disse, a respeito de sua longevidade, que “o segredo, meu caro, é o esporte... nunca o pratiquei” (coisas de britânico judicioso). Saburo Shichi, um japonês de 103 anos, não disse, mas disseram por ele que o segredo de ter vivido tanto estava nos exercícios que fazia há mais de 50 anos à mesma hora do dia com a ajuda de um bastão, e os exercícios que fazia para o cérebro buscando sempre aprender uma coisa nova, e os exercícios que fazia com a boca – mastigava 30 vezes antes de deglutir o pouco alimento que consumia –... e outras coisas mais (coisas de japonês). Uma longeva mendiga americana revelou que a causa era fumar quatro maços de cigarros ao dia, tomar uma garrafa de Jack Daniels por semana e comer restos de comida que encontrava antes de se deitar (coisas de americanos). Clara Meadmore, escocesa, aos 105 anos, confidenciou que o segredo de sua longevidade era não ter feito sexo, morreria donzela (esquecimentos de sua caduquice... ou seria coisa dos europeus?). Mário Quintana, brasileiro, eu não sei com qual idade, disse que “o segredo é não correr atrás das borboletas... é cuidar do jardim para que elas venham até você” (coisas de Mário Quintana).
Os cientistas, todos, querem saber os segredos da longevidade, a razão de se viver muito, e bem. O ser humano quer a eternidade, ainda que morto no reino dos céus, contudo, antes a quereria aqui mesmo, na terra, onde tem a pretensão da certeza de sua existência, e por via das dúvidas. Uns acham que a razão é genética (que assim seja!), outros que a causa está na alimentação, outros que é uma questão de estilo de vida e por aí vai. Chamou-me a atenção uma pesquisa de um cientista português que estudava curiosamente e detidamente os répteis, pois que esses aparentam não envelhecer. Sugeriu que está nos genes desses animais a chave para se entender e desvendar os mistérios da vida duradoura (coisas de português, com certeza). Enfim...
Não perguntei a que ele, Chiquinho, atribuiria sua longevidade. Talvez ele me dissesse que fosse o exercício da paciência e da paz, que há diferença entre elas, segundo ele. Talvez me dissesse que era pela falta de pressa e pela “normalidade” com que conduzia sua vida. Não sei, não quero saber. Contento-me em saber que vive uma vida que nos inspira e que nos faz querer viver mais e mais, de preferência ao seu lado.
“Os Chiquinhos” está fazendo noventa anos: o Chiquinho do Quebra Machado e da Taquara roubando doces de madrugada, o Chiquinho do Jota roçando pastos no Cascalho Preto, o Chiquinho Soldado combatendo na Guerra Mundial, o Chiquinho Mascate cavalgando pelas Vertentes, o Chiquinho da Jardineira viajando entre Resende Costa e Coroas (com a permissão dos Xavierenses), o Chiquinho da Vanda fazendo filhos aos montes, o Chiquinho dos Correios entregando notícias, o Chiquinho Veterano desfilando no 7 de setembro, o Chiquinho pai, avô e bisavô de todos nós, todos os Chiquinhos juntos.
Não se chega impune a essa idade: faz-se história. Temos de comemorar e agradecer, então comemoremos e agradeçamos por sua vida:
- Parabéns! Obrigado! Saúde!
“Os Chiquinhos” está fazendo noventa anos. Não são oito, nem oitenta: são noventa! Noventa são muitas estações. E quantas belezas e sensações permitem esse tempo? Devem ter sido tantas e tantas que não há como descrevê-las, como desvendá-las. Eu nem mesmo tentaria, eu que mal dou conta de entender os meus anos de vida, e são pouco mais da metade disso.
Churchill, inglês, em torno de seus noventa, disse, a respeito de sua longevidade, que “o segredo, meu caro, é o esporte... nunca o pratiquei” (coisas de britânico judicioso). Saburo Shichi, um japonês de 103 anos, não disse, mas disseram por ele que o segredo de ter vivido tanto estava nos exercícios que fazia há mais de 50 anos à mesma hora do dia com a ajuda de um bastão, e os exercícios que fazia para o cérebro buscando sempre aprender uma coisa nova, e os exercícios que fazia com a boca – mastigava 30 vezes antes de deglutir o pouco alimento que consumia –... e outras coisas mais (coisas de japonês). Uma longeva mendiga americana revelou que a causa era fumar quatro maços de cigarros ao dia, tomar uma garrafa de Jack Daniels por semana e comer restos de comida que encontrava antes de se deitar (coisas de americanos). Clara Meadmore, escocesa, aos 105 anos, confidenciou que o segredo de sua longevidade era não ter feito sexo, morreria donzela (esquecimentos de sua caduquice... ou seria coisa dos europeus?). Mário Quintana, brasileiro, eu não sei com qual idade, disse que “o segredo é não correr atrás das borboletas... é cuidar do jardim para que elas venham até você” (coisas de Mário Quintana).
Os cientistas, todos, querem saber os segredos da longevidade, a razão de se viver muito, e bem. O ser humano quer a eternidade, ainda que morto no reino dos céus, contudo, antes a quereria aqui mesmo, na terra, onde tem a pretensão da certeza de sua existência, e por via das dúvidas. Uns acham que a razão é genética (que assim seja!), outros que a causa está na alimentação, outros que é uma questão de estilo de vida e por aí vai. Chamou-me a atenção uma pesquisa de um cientista português que estudava curiosamente e detidamente os répteis, pois que esses aparentam não envelhecer. Sugeriu que está nos genes desses animais a chave para se entender e desvendar os mistérios da vida duradoura (coisas de português, com certeza). Enfim...
Não perguntei a que ele, Chiquinho, atribuiria sua longevidade. Talvez ele me dissesse que fosse o exercício da paciência e da paz, que há diferença entre elas, segundo ele. Talvez me dissesse que era pela falta de pressa e pela “normalidade” com que conduzia sua vida. Não sei, não quero saber. Contento-me em saber que vive uma vida que nos inspira e que nos faz querer viver mais e mais, de preferência ao seu lado.
“Os Chiquinhos” está fazendo noventa anos: o Chiquinho do Quebra Machado e da Taquara roubando doces de madrugada, o Chiquinho do Jota roçando pastos no Cascalho Preto, o Chiquinho Soldado combatendo na Guerra Mundial, o Chiquinho Mascate cavalgando pelas Vertentes, o Chiquinho da Jardineira viajando entre Resende Costa e Coroas (com a permissão dos Xavierenses), o Chiquinho da Vanda fazendo filhos aos montes, o Chiquinho dos Correios entregando notícias, o Chiquinho Veterano desfilando no 7 de setembro, o Chiquinho pai, avô e bisavô de todos nós, todos os Chiquinhos juntos.
Não se chega impune a essa idade: faz-se história. Temos de comemorar e agradecer, então comemoremos e agradeçamos por sua vida:
- Parabéns! Obrigado! Saúde!
A compra de Natal
14 de Janeiro de 2010, por Rafael Chaves 0
Antes de qualquer coisa e para que não fiquem especulando de onde eu tiro minhas conclusões sobre as coisas da vida e da existência, esclareço que jamais fui uma pessoa estudiosa de assunto nenhum. Jamais me dediquei a me aprofundar em assunto algum, não sou especialista em nada. Tudo que sei, se sei, é fruto de um empirismo só meu e das maquinações de minha mente. Portanto, nada do que disser deve ser tomado como verdadeiro ou imutável. E vamos em frente. (Porém, novamente, desculpem-me, as pessoas próximas a mim dizem que eu sou muito cordato, desde que concordem comigo e ... cest fini).
Natal tem um quê de céu e de inferno. O céu é a reunião de família, a comilança na ceia, os presentes. O inferno é ter de ir ao comércio. Ninguém merece caminhar numa rua comercial, num shopping em época de Natal, ninguém! Bendito sejam os que moram em Resende Costa! (Aqueles que se contentam com o que ela oferece, é óbvio, pois tem gente que vai pagar seus pecados por aí, seja na Tancredo Neves, seja no BH Shopping, seja na 25 de março.)
Comprar presentes é tarefa inglória e enfadonha para os homens. Conheço homens aos montes, daqueles que levam a mulher às compras com a maior boa vontade, desde que os deixem tomando um chopinho geladinho.
Mas tem horas que não há como escapar. Tem tarefas que são indelegáveis, ou melhor, e no mínimo, indelicado você passar para frente. Já que não gosto de ir às compras eu sozinho (para não ter de ficar ouvindo um vendedor insistente querendo me obrigar a comprar o que ele acha que eu devo comprar), chamei minha irmã para me ajudar na empreitada de comprar o presente do meu amigo oculto de Natal.
O presente já estava definido: uma bermuda. Entramos na primeira loja e não havia nenhuma que agradasse. Entramos na outra e não tinha o tamanho. Entramos na terceira e encontramos uma que até serviria, mas minha irmã decidiu que haveríamos de olhar em outras lojas. Então seguimos até a quarta loja. Na quarta loja não havia bermuda, mas ela se entusiasmou por uma sandália que bem que poderia ser um bom presente para o meu amigo oculto, que ela conhecia bem.
- É, disse ela, essa sandália está boa.
Eu já ia pedir à vendedora para embrulhar de presente quando minha irmã, do nada e sem qualquer explicação, disse à vendedora:
- Olha, por favor, reserva essa sandália que nós vamos dar mais uma andada e voltamos aqui.
Eu estranhei, mas vocês sabem que pinto que acompanha pata morre afogado. Então lá fui eu acompanhando a pata até a quinta loja. Foi nessa loja que minha irmã viu um tênis na vitrine e emendou:
- Esse tênis também é um bom presente, ele vai precisar para a viagem!
- Então vamos comprar esse tênis, disse eu.
- Não, vamos dar uma olhada mais na frente.
- Mas...
- Não, depois a gente volta se não achar outra coisa.
Outra coisa? Que coisa? Uma bermuda, uma sandália ou um tênis? Nessa hora eu comecei a me desesperar, digo, me afogar.
A sexta loja era de sapatos. A vitrine abarrotada de sandálias para todos os gostos. Ela selecionou umas quatro e pediu a vendedora para buscar. Examinou uma por uma esticando os braços e colocando as sandálias em suas mãos. Escolheu uma, finalmente.
- Essa eu acho bonita, o que você acha?
- É, é bonita sim.
- Põe no seu pé para eu ver.
Então eu descalcei meus sapatos e pus a sandália no pé. Ela me fez dar umas voltas pela loja enquanto ponderava e a vendedora esperava.
- Não, não ficou boa no pé!
Quando ela disse isso eu subi à tona para sorver um pouco de ar naquele mar de incertezas.
Então saímos mais uma vez à rua, sem o presente. Fomos a uma outra loja, mas nesta eu nem me lembro mais o que aconteceu, acho que é porque eu não conseguia enxergar debaixo da água em que eu me afogava. Então, antes que eu precisasse de um escafandro, decidi:
- Olha, Paulina, obrigado pela sua ajuda, mas eu já estou sabendo o que comprar e depois eu saio no comércio e compro.
Despedimo-nos ali, no meio da rua.
Sinceramente, mulher é um ser humano meio complicado. Tudo me leva a crer nisso. Sou eu que digo, mas a minha experiência e minhas maquinações concluem isso, como dois e dois são quatro.
Em tempo, antes que o comércio feche me deixem ir ali comprar o presente do meu amigo oculto, que hoje é o último dia. Ah..., bermuda, sandália ou tênis?
Natal tem um quê de céu e de inferno. O céu é a reunião de família, a comilança na ceia, os presentes. O inferno é ter de ir ao comércio. Ninguém merece caminhar numa rua comercial, num shopping em época de Natal, ninguém! Bendito sejam os que moram em Resende Costa! (Aqueles que se contentam com o que ela oferece, é óbvio, pois tem gente que vai pagar seus pecados por aí, seja na Tancredo Neves, seja no BH Shopping, seja na 25 de março.)
Comprar presentes é tarefa inglória e enfadonha para os homens. Conheço homens aos montes, daqueles que levam a mulher às compras com a maior boa vontade, desde que os deixem tomando um chopinho geladinho.
Mas tem horas que não há como escapar. Tem tarefas que são indelegáveis, ou melhor, e no mínimo, indelicado você passar para frente. Já que não gosto de ir às compras eu sozinho (para não ter de ficar ouvindo um vendedor insistente querendo me obrigar a comprar o que ele acha que eu devo comprar), chamei minha irmã para me ajudar na empreitada de comprar o presente do meu amigo oculto de Natal.
O presente já estava definido: uma bermuda. Entramos na primeira loja e não havia nenhuma que agradasse. Entramos na outra e não tinha o tamanho. Entramos na terceira e encontramos uma que até serviria, mas minha irmã decidiu que haveríamos de olhar em outras lojas. Então seguimos até a quarta loja. Na quarta loja não havia bermuda, mas ela se entusiasmou por uma sandália que bem que poderia ser um bom presente para o meu amigo oculto, que ela conhecia bem.
- É, disse ela, essa sandália está boa.
Eu já ia pedir à vendedora para embrulhar de presente quando minha irmã, do nada e sem qualquer explicação, disse à vendedora:
- Olha, por favor, reserva essa sandália que nós vamos dar mais uma andada e voltamos aqui.
Eu estranhei, mas vocês sabem que pinto que acompanha pata morre afogado. Então lá fui eu acompanhando a pata até a quinta loja. Foi nessa loja que minha irmã viu um tênis na vitrine e emendou:
- Esse tênis também é um bom presente, ele vai precisar para a viagem!
- Então vamos comprar esse tênis, disse eu.
- Não, vamos dar uma olhada mais na frente.
- Mas...
- Não, depois a gente volta se não achar outra coisa.
Outra coisa? Que coisa? Uma bermuda, uma sandália ou um tênis? Nessa hora eu comecei a me desesperar, digo, me afogar.
A sexta loja era de sapatos. A vitrine abarrotada de sandálias para todos os gostos. Ela selecionou umas quatro e pediu a vendedora para buscar. Examinou uma por uma esticando os braços e colocando as sandálias em suas mãos. Escolheu uma, finalmente.
- Essa eu acho bonita, o que você acha?
- É, é bonita sim.
- Põe no seu pé para eu ver.
Então eu descalcei meus sapatos e pus a sandália no pé. Ela me fez dar umas voltas pela loja enquanto ponderava e a vendedora esperava.
- Não, não ficou boa no pé!
Quando ela disse isso eu subi à tona para sorver um pouco de ar naquele mar de incertezas.
Então saímos mais uma vez à rua, sem o presente. Fomos a uma outra loja, mas nesta eu nem me lembro mais o que aconteceu, acho que é porque eu não conseguia enxergar debaixo da água em que eu me afogava. Então, antes que eu precisasse de um escafandro, decidi:
- Olha, Paulina, obrigado pela sua ajuda, mas eu já estou sabendo o que comprar e depois eu saio no comércio e compro.
Despedimo-nos ali, no meio da rua.
Sinceramente, mulher é um ser humano meio complicado. Tudo me leva a crer nisso. Sou eu que digo, mas a minha experiência e minhas maquinações concluem isso, como dois e dois são quatro.
Em tempo, antes que o comércio feche me deixem ir ali comprar o presente do meu amigo oculto, que hoje é o último dia. Ah..., bermuda, sandália ou tênis?
Bem-vindo, mal-vindo!
13 de Dezembro de 2009, por Rafael Chaves 0
Benevenuto não tinha esse nome à toa (e também porque, no momento, não me ocorre outro). Mas antes de saber o porquê do seu nome, preciso lhes dizer algumas coisas que ajudarão a elucidar, clarear, esclarecer.
Três coisas preocupavam e ocupavam Benevenuto: a sua botica, o seu corpo e sua mulher.
A botica era o que lhe dava o sustento e o reconhecimento. Benevenuto havia aprendido a macerar, misturar, encapsular e tudo o mais das ciências farmacotécnicas e farmacopéicas desde há muito quando, ainda adolescente, iniciou assessorando o seu pai, que, por sua vez, fora aprendiz de seu pai e assim sucessivamente, desde tempos imemoriais. E por não ter conhecido outro negócio, Benevenuto exalava aquele cheiro característico de remédio: misto de essências e extratos, de xaropes e álcoois, de pós e líquidos, de pomadas e supositórios. A imagem de Benevenuto se confundia com a da sua própria botica.
Exceto por uma coisa: o seu corpo. Benevenuto não era franzino e recurvado como convém a um boticário. Quando estava “atacado” despia-se do jaleco branco e comprido, deixando à mostra os peitorais volumosos detrás de uma camisa colada ao corpo e desabotoada até a ponta do externo, e os bíceps avantajados, ressaltados pelas mangas da camisa arregaçadas. Dizem que era possível, quando não havia clientes na botica, perceber Benevenuto fazendo gestos de auto-admiração, exibindo-se os músculos a si mesmo nos reflexos dos vidros das prateleiras de remédios, almofarizes, balanças de precisão, vidrarias etc. Benevenuto gostava de si mesmo, do seu corpo atlético.
A terceira paixão de Benevenuto era sua mulher. E que mulher! Linda, inteligente, fogosa, rebolante e possuidora de todos os melhores predicados que um homem pudesse desejar (Brad Pitt que o diga!). E por ser assim, tão perfeita, Benevenuto satisfazia-lhe todas suas vontades. Era ela quem andava em carro do ano, em roupas de marca e pendurada em jóias. Ninguém ouvira dizer um senão dela, de tão perfeita. Por onde passava causava suspiros, deixando no ar odores de seu perfume importado, infundindo pensamentos inconfessáveis.
Dito isso, das três paixões de Benevenuto e voltando à razão de seu nome, cabe contar que ele costumava chamar à sua casa alguns amigos, um de cada vez, para uma visita. Dizem que Benevenuto era um anfitrião de primeira. Oferecia aos convivas os melhores vinhos e as mais requintadas comidas, estas feitas por sua mulher, também cozinheira, ou melhor, gastrônoma de mão cheia. Mas depois que Dionísio assumia o controle da cena, para descontrole de todos, Benevenuto pedia licença aos dois – ao conviva e à sua mulher – e ia dar uma volta pela praça em frente a sua casa. Benevenuto retornava à sua casa somente depois que sua mulher, providencialmente, apagava a luz do corredor.
O que acontecia naquela casa, na ausência de Benevenuto, só Deus sabe, embora nossa mente humana possa calcular. Nenhum dos convivas jamais meteu as línguas nos dentes, não se sabe o porquê. Ou melhor, talvez porque alimentassem a esperança de serem chamados novamente ao banquete, quem sabe?
Certo dia a pequena cidade acordou em polvorosa. A notícia era a de que se dera, na casa de Benevenuto, um crime horribilíssimo, crudelíssimo e põe íssimo nisso! Benevenuto já fora, inclusive, recolhido ao grilhão para depoimentos. Diz-se que Benevenuto, ao chegar em casa, abatera um sujeito que lá encontrara, primeiro aos murros, depois a facadas e, por último, em misericórdia, a tiros. E de tal modo deixara o corpo do indivíduo que ainda não pudera ser reconhecido por ninguém. “Mas logo o Benevenuto, sempre tão cortês?!” era o balbucio que se podia reconhecer nas bocas das pessoas que, invariavelmente, levavam suas mãos ao rosto, em assombro.
Mais tarde, naquele mesmo dia, elucidou-se o crime. Benevenuto, sentado em frente ao Delegado, mãos algemadas postas sobre a coxa, músculos à mostra, roupa ensanguentada e, sem a menor demonstração de remorso, olhando fixamente um ponto em sua frente, repetia incessantemente:
- Mas eu não o convidei! Mas eu não o convidei! Mas eu não o convidei!...
Três coisas preocupavam e ocupavam Benevenuto: a sua botica, o seu corpo e sua mulher.
A botica era o que lhe dava o sustento e o reconhecimento. Benevenuto havia aprendido a macerar, misturar, encapsular e tudo o mais das ciências farmacotécnicas e farmacopéicas desde há muito quando, ainda adolescente, iniciou assessorando o seu pai, que, por sua vez, fora aprendiz de seu pai e assim sucessivamente, desde tempos imemoriais. E por não ter conhecido outro negócio, Benevenuto exalava aquele cheiro característico de remédio: misto de essências e extratos, de xaropes e álcoois, de pós e líquidos, de pomadas e supositórios. A imagem de Benevenuto se confundia com a da sua própria botica.
Exceto por uma coisa: o seu corpo. Benevenuto não era franzino e recurvado como convém a um boticário. Quando estava “atacado” despia-se do jaleco branco e comprido, deixando à mostra os peitorais volumosos detrás de uma camisa colada ao corpo e desabotoada até a ponta do externo, e os bíceps avantajados, ressaltados pelas mangas da camisa arregaçadas. Dizem que era possível, quando não havia clientes na botica, perceber Benevenuto fazendo gestos de auto-admiração, exibindo-se os músculos a si mesmo nos reflexos dos vidros das prateleiras de remédios, almofarizes, balanças de precisão, vidrarias etc. Benevenuto gostava de si mesmo, do seu corpo atlético.
A terceira paixão de Benevenuto era sua mulher. E que mulher! Linda, inteligente, fogosa, rebolante e possuidora de todos os melhores predicados que um homem pudesse desejar (Brad Pitt que o diga!). E por ser assim, tão perfeita, Benevenuto satisfazia-lhe todas suas vontades. Era ela quem andava em carro do ano, em roupas de marca e pendurada em jóias. Ninguém ouvira dizer um senão dela, de tão perfeita. Por onde passava causava suspiros, deixando no ar odores de seu perfume importado, infundindo pensamentos inconfessáveis.
Dito isso, das três paixões de Benevenuto e voltando à razão de seu nome, cabe contar que ele costumava chamar à sua casa alguns amigos, um de cada vez, para uma visita. Dizem que Benevenuto era um anfitrião de primeira. Oferecia aos convivas os melhores vinhos e as mais requintadas comidas, estas feitas por sua mulher, também cozinheira, ou melhor, gastrônoma de mão cheia. Mas depois que Dionísio assumia o controle da cena, para descontrole de todos, Benevenuto pedia licença aos dois – ao conviva e à sua mulher – e ia dar uma volta pela praça em frente a sua casa. Benevenuto retornava à sua casa somente depois que sua mulher, providencialmente, apagava a luz do corredor.
O que acontecia naquela casa, na ausência de Benevenuto, só Deus sabe, embora nossa mente humana possa calcular. Nenhum dos convivas jamais meteu as línguas nos dentes, não se sabe o porquê. Ou melhor, talvez porque alimentassem a esperança de serem chamados novamente ao banquete, quem sabe?
Certo dia a pequena cidade acordou em polvorosa. A notícia era a de que se dera, na casa de Benevenuto, um crime horribilíssimo, crudelíssimo e põe íssimo nisso! Benevenuto já fora, inclusive, recolhido ao grilhão para depoimentos. Diz-se que Benevenuto, ao chegar em casa, abatera um sujeito que lá encontrara, primeiro aos murros, depois a facadas e, por último, em misericórdia, a tiros. E de tal modo deixara o corpo do indivíduo que ainda não pudera ser reconhecido por ninguém. “Mas logo o Benevenuto, sempre tão cortês?!” era o balbucio que se podia reconhecer nas bocas das pessoas que, invariavelmente, levavam suas mãos ao rosto, em assombro.
Mais tarde, naquele mesmo dia, elucidou-se o crime. Benevenuto, sentado em frente ao Delegado, mãos algemadas postas sobre a coxa, músculos à mostra, roupa ensanguentada e, sem a menor demonstração de remorso, olhando fixamente um ponto em sua frente, repetia incessantemente:
- Mas eu não o convidei! Mas eu não o convidei! Mas eu não o convidei!...