Contemplando as Palavras

De zero a mil

11 de Marco de 2015, por Regina Coelho 0

Dos dados divulgados pelo Inep (Instituto Nacional de Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira) sobre a última edição do Enem, chamou a atenção o grande número de candidatos que tiraram zero na prova de redação: exatamente 529.373 entre os concorrentes às vagas de acesso ao curso superior espalhadas pelo país.

Tendo trabalhado por muitos anos como professora de Português nos Ensinos Fundamental e Médio, portanto com razoável experiência nessa área, consultei os resultados oficiais do exame para comprovar o que já havia suspeitado em relação à causa principal de tão temida nota aplicada como eliminação sumária ao processo seletivo. Isso quer dizer que 217.339 redações (praticamente a metade do número apresentado acima) foram zeradas porque seus autores fugiram ao tema proposto.

A primeira questão fundamental da atividade dissertativa, modalidade exigida para o Enem, é identificar o tema a respeito do qual se vai escrever. Sem compreendê-lo, torna-se impossível desenvolvê-lo com acerto. A partir daí, é preciso tomar cuidado para evitar dois erros básicos na sua abordagem: a redução e a extrapolação. No caso aqui tratado, reduzir é abordar apenas uma parte, um elemento do tema ou um aspecto não fundamental. Ao que parece, na proposta de redação do Enem 2013, esse pode ter sido o problema dos que não se atentaram para a importância do termo “efeitos” no contexto do tema Os efeitos da implantação da Lei Seca no Brasil. Como resultado, o foco, de forma equivocada, passou a ser simplesmente a Lei Seca por si mesma. Situação oposta ocorre quando a argumentação ultrapassa os limites do tema proposto, tratando de outros assuntos, extrapolando o que é demarcado. Considerando a proposta do último Enem, seria o caso, por exemplo, de a importância da alimentação na infância ou a espontaneidade das crianças ganharem destaque no texto, sem que tenham qualquer ligação direta com o tema Publicidade infantil em questão no Brasil. Como se vê, nas duas situações ocorre um distanciamento em relação ao que deve ser abordado.

Pela ótica dos vencedores, o desafio de produzir bons textos passa por caminhos já conhecidos. Entre os candidatos que foram bem sucedidos, estão alguns dos destacados pela mídia como aqueles que obtiveram nota mil na redação do Enem 2014. Como chegar lá? Sem ser uma receita mágica, muito longe de qualquer simplismo, a explicação desses 250 meninos para seu próprio sucesso pode ser assim resumida numa soma de opiniões. Confira:

  • Conhecimento das regras do Enem (até para evitar fugir do assunto ou copiar o texto motivador dado como referência, sem criar nada).

  • Dedicação e disciplina ao estudo das técnicas dissertativas e a prática delas.

  • Treinamento da escrita (norma padrão).

  • Hábito da leitura (entre outros benefícios, como ajuda para o entendimento do tema e a formulação de argumentos que fundamentem o posicionamento das ideias a defender).

Eis aí a versão dos vitoriosos de hoje para o seu triunfo nessa verdadeira batalha em que se transformou o Enem. Quanto ao meio milhão de estudantes zerados e humilhados, eles não foram ouvidos, mas sinalizaram que não estamos conseguindo avançar na educação do país como gostaríamos. Grosso modo, a julgar pelo que esses textos nota zero revelam, e uma redação é um bom diagnóstico para conhecer a competência linguística de um aluno, estamos diante de um número significativo de analfabetos funcionais. Para quem não sabe, a condição de analfabeto funcional aplica-se a indivíduos que, mesmo capazes de identificar letras e números, não conseguem interpretar e produzir textos e nem realizar operações matemáticas mais elaboradas.

 

Sinal de alerta ligado para a realidade presente, é tempo de repensar nossas práticas educativas em favor de resultados menos vexatórios para o Brasil. Para começar, para os futuros candidatos por que não seguir as dicas de quem se deu tão bem este ano obtendo nota máxima na redação? Está dado o recado.

Nossos outros olhos

11 de Fevereiro de 2015, por Regina Coelho 0

“__ Este nosso rapazinho tem a vista curta. Espera aí, Miguilim...

E o senhor tirava os óculos e punha-os em Miguilim, com todo o jeito.

__ Olha agora!

Miguilim olhou. Nem não podia acreditar! Tudo era uma claridade, tudo novo e lindo e diferente, as coisas, as árvores, as caras das pessoas. Via os grãozinhos de areia, a pele da terra, as pedrinhas menores, as formiguinhas passeando no chão de uma distância. E tonteava. Aqui, ali, meu Deus, tanta coisa, tudo...”

Da novela Campo Geral (de Guimarães Rosa), gênero literário narrativo situado entre o conto e o romance, foi extraído o trecho acima. O senhor em questão é doutor Lourenço, médico recém-chegado ao sertão que descobre a miopia do menino Miguilim. Usando os óculos do doutor, ele passa a enxergar com perfeição tudo a seu redor. O momento é mágico para Miguilim.

De uma simplicidade encantadora, a cena retratada por Rosa (teria ele sido sua própria inspiração de garoto míope?) revela uma realidade comum a muitos: a condição dos dependentes de óculos de grau. Como é sabido, a escola costuma ser o local em que essa situação fica mais evidente, pois o quadro (ou lousa), ou melhor, o que está escrito lá representa para os alunos um inevitável teste de averiguação da visão de tantos olhos em busca da leitura de letras e números. Comprovada a deficiência visual, sendo talvez a miopia (dificuldade de enxergar bem de longe) a mais comum delas, os óculos são prescritos e providenciados. Então, uma nova vida começa, no mínimo, com uma mudança que está literalmente na cara da pessoa e, muitas vezes, com alguns percalços na convivência diária e constante com tão necessário objeto inadequadamente chamado de acessório pelos outros. Para nós, os míopes, nossos óculos são essenciais.

Em assim sendo e descartando a cirurgia de correção do problema, ficar sem os óculos (ou sem as lentes de contato) corresponde a passar por apuros. Praticar esportes, por exemplo, o futebol, sem ver direito a bola, os colegas, os adversários, o juiz e as traves do gol deve ser horrível. Não identificar pessoas conhecidas no outro lado da rua é o fim. Não ler placas de rua ou de carro, anúncios ou mensagens em faixas e outdoors, idem. Para aqueles que não conseguem viver sem os seus “olhos de vidro”, perdê-los ou vê-los quebrados vira um drama. Especificamente quanto aos mais vaidosos, incluídas aí principalmente as mulheres, há os que preferem não enxergar nada a ter que usar óculos de grau.

Hoje, felizmente, estilosos e confortáveis, esses companheiros quase inseparáveis de quem tem miopia, hipermetropia, astigmatismo, presbiopia e outros tipos de doenças oculares costumam ser um símbolo positivo da personalidade de seus donos, incluindo celebridades e personagens do momento (Jô Soares, Bill Gates, o fictício Harry Potter...). E são vistos ainda como item de moda. Ou, conforme garante uma ala masculina, sendo uma peça que confere a certas mulheres um poderoso ar sexy. Será? Num passado recente, no entanto, usar óculos era motivo de vergonha, principalmente para crianças e adolescentes, pois significava ser destacado negativamente, zoado pela turma e virar alvo de piadinhas sem graça e apelidos como “quatro oio”, olho de fundo de garrafa, farol de carro e nerd.

 

Um olhar sobre a história dos óculos no Brasil permite afirmar que eles surgiram entre nós no século XVI graças à colonização portuguesa, sendo usados principalmente por religiosos (em sua maioria, jesuítas), funcionários da Coroa (servidores da corte de Portugal), colonos abastados e homens de letras. Situação completamente diferente nos dias atuais, é impressionante o número de brasileiros usando óculos de grau por aí. Oportunamente, recorro à inspirada letra do compositor Herbert Viana em Óculos (1984), cujos versos finais podem definir com clareza o modo como essa gente toda deve se ver: “Eu não nasci de óculos... / Eu não era assim... / Por trás dessa lente tem um cara legal”.

Largada para 2015

13 de Janeiro de 2015, por Regina Coelho 0

Para começar bem este ano, minha dica passa pela leitura do que segue escrito abaixo em dois textos que se aproximam pelo conteúdo. Numa mistura compatível de sonho e realidade, o que ambos apresentam como proposta de uma vida feliz parece possível.


Felicidade realista

...De norte a sul, de leste a oeste, todo mundo quer ser feliz. Não é tarefa das mais fáceis.

A princípio bastaria ter saúde, dinheiro e amor, o que já é um pacote louvável, mas nossos desejos são ainda mais complexos.

Não basta que a gente esteja sem febre: queremos, além de saúde, ser magérrimos, sarados, irresistíveis.

Dinheiro? Não basta termos para pagar o aluguel, a comida e o cinema: queremos a piscina olímpica, a bolsa Louis Vuitton e uma temporada num spa cinco estrelas.

E quanto ao amor? Ah, o amor... não basta termos alguém com quem podemos conversar, dividir uma pizza e fazer sexo de vez em quando. Isso é pensar pequeno: queremos AMOR, todinho maiúsculo. Queremos estar visceralmente apaixonados, queremos ser surpreendidos por declarações e presentes inesperados, queremos jantar à luz de velas de segunda a domingo, queremos sexo selvagem e diário, queremos ser felizes assim e não de outro jeito.

É o que dá ver tanta televisão. Simplesmente esquecemos de tentar ser felizes de uma forma mais realista. Por que só podemos ser felizes formando um par, e não como ímpares? Ter um parceiro constante não é sinônimo de felicidade, a não ser que seja a felicidade de estar correspondendo às expectativas da sociedade, mas isso é outro assunto. Você pode ser feliz solteiro, feliz com uns romances ocasionais, feliz com um parceiro, feliz sem nenhum.

Não existe amor minúsculo, principalmente quando se trata de amor-próprio.

Dinheiro é uma bênção. Quem tem precisa aproveitá-lo, gastá-lo, usufruí-lo. Não perder tempo juntando, juntando, juntando. Apenas o suficiente para se sentir seguro, mas não aprisionado. E se a gente tem pouco, é com este pouco que vai tentar segurar a onda, buscando coisas que saiam de graça, como um pouco de humor, um pouco de fé e um pouco de criatividade.

Ser feliz de uma forma realista é fazer o possível e aceitar o improvável. Fazer exercícios sem almejar passarelas, trabalhar sem almejar o estrelato, amar sem almejar o eterno.

Olhe para o relógio: hora de acordar.

É importante pensar-se ao extremo, buscar lá dentro o que nos mobiliza, instiga e conduz, mas sem exigir-se desumanamente. A vida não é um jogo onde só quem testa seus limites é que leva o prêmio. Não sejamos vítimas ingênuas desta tal competitividade. Se a meta está alta demais, reduza-a. Se você não está de acordo com as regras, demita-se. Invente seu próprio jogo. Faça o que for necessário para ser feliz. Mas não se esqueça de que a felicidade é um sentimento simples. Você pode encontrá-la e deixá-la ir embora por não perceber sua simplicidade. Ela transmite paz e não sentimentos fortes que nos atormentam e provocam inquietude no nosso coração. Isso pode ser alegria, paixão, entusiasmo, mas não felicidade.

(Martha Medeiros)



O sonho

Sonhe com aquilo que você quer ser,

porque você possui apenas uma vida

e nela só se tem uma chance

de fazer aquilo que quer.


Tenha felicidade bastante para fazê-la doce.

Dificuldades para fazê-la forte.

Tristeza para fazê-la humana.

E esperança suficiente para fazê-la feliz. 


As pessoas mais felizes não têm as melhores coisas.

Elas sabem fazer o melhor das oportunidades

que aparecem em seus caminhos.


A felicidade aparece para aqueles que choram.

Para aqueles que se machucam

Para aqueles que buscam e tentam sempre.

E para aqueles que reconhecem

a importância das pessoas que passaram por suas vidas.

(Clarice Lispector)


No poema abaixo, a essência e a beleza dos versos enxutos de Manoel de Barros (1916-2014) são um irrecusável convite à contemplação de suas palavras, nada “desimportantes”.


O apanhador de desperdícios

Uso a palavra para compor meus silêncios.

Não gosto das palavras

fatigadas de informar.

Dou mais respeito

às que vivem de barriga no chão

tipo água pedra sapo.

Entendo bem o sotaque das águas

Dou respeito às coisas desimportantes

e aos seres desimportantes.

Prezo insetos mais que aviões.

Prezo a velocidade

das tartarugas mais que a dos mísseis.

Tenho em mim um atraso de nascença.

Eu fui aparelhado

para gostar de passarinhos.

Tenho abundância de ser feliz por isso.

Meu quintal é maior do que o mundo.

Sou um apanhador de desperdícios.

Amo os restos

como as boas moscas.

Queria que a minha voz tivesse um formato

de canto.

Porque eu não sou da informática:

eu sou da invencionática.

Só uso a palavra para compor meus silêncios.

 

(Manoel de Barros)

Uma grande família

17 de Dezembro de 2014, por Regina Coelho 0

Uma característica muito interessante observada no interior, principalmente nas cidades menores, é a identificação das pessoas seja pela profissão que exercem, pelo lugar onde trabalham ou pela relação de parentesco com alguém, digamos, teoricamente mais conhecido. Com interesse principal da presente matéria voltado para as ligações familiares, o “ponto” de referência em questão atende pelo nome de Pedro Olímpio, que congrega em torno de si os membros de uma numerosa família constituída originalmente em Resende Costa.

O começo de tudo pode ser registrado por volta de 1920 com o casamento entre Tarcília Maria de Jesus e Pedro Olímpio de Resende. Ela, nascida no Sítio da Tapera (na Restinga). Ele, no Sítio do Curtume (no povoado dos Pintos), onde o casal deu início a uma vida comum repleta de desafios ao longo dos anos. Dos dezenove filhos, frutos do mesmo pai e da mesma mãe, dois (Murilo e Sebastião) morreram ainda recém-nascidos. Vieram então Maria Conceição, José Vitorino, as gêmeas Antonieta e Marcilieta (esta última, viva), Antônio Raimundo, Laudinor, Anésio, Pedro (já falecidos). E Elói, David, Tarcísio, Gabriel, Guilhermina (falecida), Vantuil, Francisco, João Bosco e Lauro (este último, falecido).

No comando de tudo, o pai lavrador e a mãe dona de casa, com a ajuda dos filhos, enfrentavam a lida difícil da roça. Em época de plantação de mandioca, faziam mutirão. Construíam um rancho na lavoura e lá permaneciam a semana toda, só voltando para casa no sábado, quando o pai, do alpendre, contava os filhos para ver se não faltava ninguém. Eram dez os que trabalhavam no roçado, sendo Gabriel e Francisco os cozinheiros da turma. Em casa, Guilhermina e Marcilieta ajudavam nos afazeres. Os outros, já casados, não mais moravam com os pais. Em outras funções, quatro filhos trabalhavam nos dois carros de boi da casa, enquanto outros dois ralavam mandioca e os demais iam para a roça arrancar o tubérculo que era usado também na produção de polvilho. E havia ainda o açúcar mascavo produzido por eles.

Entre as situações envolvendo o cotidiano dessa grande família, há doces lembranças, como as épocas de frio, quando era colocado na cozinha, sobre uma pedra, fogo para aquecer o ambiente. Era o momento em que contavam os casos da semana. Em seguida, todos rezavam juntos o terço e iam dormir. Com tanta gente em casa, natural que dormissem dois em cada cama sobre colchões de palha. Uma outra necessidade era providenciar as vestes usadas pela prole. Para fazer as roupas, que eram confeccionadas pela própria mãe, o pai comprava uma peça de pano e era tudo feito igual para todos. Em cada camisa, ela colocava apenas três botões. E como era comum na época, apesar de trabalharem duro, os filhos não tinham dinheiro no bolso, por isso sempre que iam a festas nas capelas, levavam a “matula” (lanche) de casa. De novo, a mãe é lembrada, desta vez pela presteza ao fazer colchão e travesseiro de taboa como parte do enxoval que eles levavam para a nova casa, assim que se casavam.

Nessa história de tantas lembranças, uma delas é especialmente triste. No final da década de 20, estando Tarcília e Pedro em visita aos pais dela, eles foram surpreendidos pela notícia de um incêndio na casa onde moravam. Foi um tempo difícil de reconstrução para eles. E a vida seguia seu rumo com momentos de muita alegria também. Pedro Olímpio gostava de tocar sanfona quando o tempo estava bom e no casamento dos filhos, ocasião em que fazia quadrilha para comemorar cada enlace. E havia festa com almoço ou jantar que se estendia por toda a noite.

Quando o senhor Pedro Olímpio morreu, em novembro de 1962, os filhos mais velhos já estavam casados. Os mais novos passaram a tomar as decisões necessárias relacionadas à família juntamente com dona Tarcília, que faleceu em junho de 1991. As novas famílias que se formaram a partir dos dois compreendem hoje uma descendência direta que apresenta números impressionantes. Aos filhos do casal juntam-se hoje 108 netos, 198 bisnetos e 58 trinetos. Isso sim é uma grande família, algo impensável para os novos tempos que vêm chegando.

Mesmo tendo transcorrido tanto tempo sem a presença física do homem cujo populoso clã leva seu nome, é costume em Resende Costa, por qualquer razão que seja, as pessoas situarem alguém dessa família pelo contexto familiar (como de praxe) dizendo: “É gente do Pedro Olímpio”.

E como já é Natal, que o espírito dessa data seja uma boa oportunidade para que nossos vínculos de afeto possam ser fortalecidos em família, aqui entendida com todos os seus significados. Boas Festas! Até 2015!

 

NOTA: Na produção desse texto, contei com a colaboração fundamental da Marli (filha do Lauro do Pedro Olímpio) e do Francisco (do Pedro Olímpio), a quem agradeço as informações a mim repassadas.

Para lembrar Cecília

13 de Novembro de 2014, por Regina Coelho 0

“Nasci aqui mesmo no Rio de Janeiro, três meses depois da morte do meu pai, e perdi minha mãe antes dos três anos. Essas e outras mortes ocorridas na família acarretaram muitos contratempos materiais, mas, ao mesmo tempo, me deram, desde pequenina, uma tal intimidade com a morte que docemente aprendi essas relações entre o Efêmero e o Eterno (...) Em toda a vida, nunca me esforcei por ganhar nem me espantei por perder. A noção ou sentimento da transitoriedade de tudo é o fundamento da minha personalidade. (...) minha infância de menina sozinha deu-me duas coisas que parecem negativas, e foram sempre positivas para mim: silêncio e solidão.”

O texto autobiográfico acima é de Cecília Meireles (7/11/1901 – 9/11/1964), menina criada pela avó materna (açoriana), por ser a única sobrevivente em uma família de quatro filhos.

Ao concluir o curso primário em 1910, na Escola Estácio de Sá (Rio), a aluna Cecília recebeu de Olavo Bilac, então inspetor escolar do Distrito Federal (à época, o Rio de Janeiro), medalha de ouro por ter feito todo o curso com “distinção e louvor”. Na mesma ocasião, começou a estudar poesia, tendo publicado seu primeiro livro, Espectros (um conjunto de sonetos simbolistas), em 1919, aos dezoito anos.

Diplomando-se professora, passou a exercer o magistério em escolas primárias públicas da antiga capital do país. Paralelamente, começou a escrever na imprensa carioca, tendo atuação destacada como jornalista, com publicações diárias, principalmente sobre problemas ligados à educação, área à qual sempre se manteve ligada, aposentando-se em 1951 como diretora de escola. A propósito, deve-se a ela a criação da primeira biblioteca infantil do Brasil.

Mulher de múltiplos talentos, Cecília realizou inúmeras viagens aos Estados Unidos, à Europa, à Ásia e à África fazendo conferências sobre folclore, educação e literatura, em cujos estudos se especializou. Gostava de dizer que não era turista, e sim viajante – pelo desejo de “morar em cada coisa e descer à origem de tudo”. Trabalhou também como produtora e redatora de programas culturais na Rádio Ministério da Educação (Rio). E lecionou nas Universidades do Distrito Federal (hoje UFRJ) e do Texas (EUA). Premiada como poeta e tradutora, recebeu inúmeras honrarias no Brasil e no exterior. Artista da palavra por excelência, teve grande parte de sua obra traduzida para várias línguas e musicada por gente como Chico Buarque, que usou trechos do Romanceiro da Inconfidência (romanceiro: narrativa rimada), recriação poética sobre a Inconfidência Mineira, para compor o tema da peça Os inconfidentes, com direção de Flávio Rangel. Outro “parceiro” de Cecília Meireles é Fagner, que musicou Canteiros e Motivos. Este último poema integra o livro Viagem, com o qual, segundo Mário de Andrade, ela passaria a se firmar entre os maiores poetas nacionais. Ressalte-se que, por essa obra, a concessão pela Academia Brasileira de Letras do Prêmio de Poesia Olavo Bilac à Cecília rendeu-lhe críticas de alguns modernistas, entre eles do próprio Mário, por acharem que ela havia se curvado ao conservadorismo (que eles atacavam) da ABL. Coisa de quem não perdoava o fato de ela nunca ter feito parte da vertente mais radical do Modernismo. Mas o elogio de Mário de Andrade à poeta Cecília Meireles é definitivo.

Definitiva também é sua presença na memória afetiva de gerações de leitores através de seu sempre lembrado Ou isto ou aquilo, poema que dá nome ao livro publicado pela primeira vez em 1964, com sucessivas publicações para o encantamento de crianças e adultos. Reconhecer Cecília Meireles, no entanto, simplesmente como autora de obra infantil (sem desmerecer os pequeninos, muito pelo contrário) não faz justiça a tudo o que ela representa para o país como escritora, pensadora e cidadã.

Hoje, passados exatos cinquenta anos de sua morte, entidade com a qual manteve “uma tal intimidade” precoce, é importante lembrar Cecília, a alta qualidade de sua obra literária e algumas belas palavras nascidas de sua mente brilhante.

“Aprendi com as Primaveras a me deixar cortar para poder voltar sempre inteira.”

“Não sejas o de hoje. Não suspires por ontens. Não queiras ser o de amanhã. Faze-te sem limites no tempo.”

“Se você errou, peça desculpas... É difícil pedir perdão? Mas quem disse que é fácil ser perdoado?”

“Há pessoas que nos falam e nem as escutamos, há pessoas que nos ferem e nem cicatrizes deixam, mas há pessoas que simplesmente aparecem em nossas vidas e nos marcam para sempre.”

 

PS: Dedico o presente e coincidentemente apropriado artigo ao Evaldo, meu ex-aluno, hoje colega e amigo querido, por mais uma significativa conquista em sua corajosa e bem sucedida trajetória literária – a indicação de seu nome como um dos três finalistas ao 1º Prêmio Saraiva de Literatura – categoria Romance, com o livro Os fios de Ícaro. Méritos ao agora também romancista, um talento de Resende Costa a serviço de nossas letras.