Laços de afeto
09 de Julho de 2013, por Regina Coelho 0
__ O que você faria se estivesse na selva e aparecesse uma onça na sua frente?
__ Dava um tiro nela.
__ E se você não tivesse uma arma de fogo?
__ Furava ela com minha peixeira.
__ E se você não tivesse uma peixeira?
__ Pegava qualquer coisa, como um grosso pedaço de pau, para me defender.
__ E se você não encontrasse um pedaço de pau?
__ Subia numa árvore.
__ E se não tivesse nenhuma árvore por perto?
__ Saía correndo.
__ E se suas pernas ficassem paralisadas de medo?
Nisso, o outro perdeu a paciência e explodiu:
__ Peraí! Você é meu amigo ou amigo da onça?
Da piada transcrita acima, uma conversa entre dois caçadores, teria surgido a expressão “amigo da onça” para designar quem não é amigo de verdade, quem age com falsidade em relação a outra pessoa.
Do “amigo-urso” deve-se também manter uma boa distância, pois a conotação do termo não é das melhores. Segundo a história, na verdade uma fábula de La Fontaine, um urso e um homem tornaram-se muito amigos. Certo dia, o homem estava dormindo. E uma mosca pousou-lhe no nariz. Para proteger o amigo, o urso atirou uma pedra em direção ao inseto e, sem medir sua força, acertou a testa do homem, deixando-o morto. Exagero à parte para esse final trágico, a expressão que faz alusão ao atabalhoado animal refere-se àquele que está sempre ao lado de alguém e que um dia não se mostra tão amigo como até então aparentava ser.
Perigoso como o próprio fogo é o “fogo amigo”. Traduzida do inglês “friendly fire”, trata-se de uma expressão eufêmica utilizada militarmente em relação a ataques de aliado a aliado ou de inimigo a inimigo. O aviador militar e político italiano Ítalo Balbo foi uma das vítimas notáveis do “fogo amigo”. Balbo foi abatido por engano pela artilharia antiaérea italiana durante a Segunda Guerra Mundial. Daí para a política fagulhas se alastraram, ou melhor, essa forma de expressão passou a nomear a atitude pouco amistosa de um político em se tratando de um correligionário ou aliado. Em outras palavras, isso seria o equivalente a dizer que “quem tem um amigo desses não precisa de inimigo”. Para completar essa série de tipos não exatamente amigáveis, não dá para esquecer o “amigo do alheio” ou ladrão, como sugere o eufemismo.
Por outro lado, há o “feijão amigo” nome que se dá ao caldo de feijão encorpado, amassado ou batido, de preferência muito bem temperado e incrementado com linguiça, bacon, torresmo e afins. E criou-se em São Paulo o “Clube do Feijão Amigo”, uma associação de amizade e confraternização ligada ao segmento turístico. Em atividade desde 1980, o Clube hoje congrega “feijoeiros” no Brasil e no exterior.
De apelo bem mais popular é a brincadeira do “amigo oculto”. Fim de ano chegando, é quase impossível deixar de participar de pelo menos um encontro desses, também conhecido como “amigo secreto” ou “amigo invisível”. Igualmente popular é o uso do vocativo “amigo” ao abordar alguém para pedir alguma informação ou solicitar algum serviço ao garçom, ao frentista... Criado pelo poeta Manuel Bandeira no poema “Vou-me embora pra Pasárgada”, há ainda o fictício “amigo do rei”, símbolo não fictício do relacionamento mantido, talvez, por questionáveis interesses.
No âmbito das relações afetivas, o “amigo de infância” é sempre lembrado, o “amigo do peito” é aquele especialmente “guardado” no coração de alguém. À afirmação de que a amizade é o amor sem sexo contrapõe-se o entendimento de que a amizade-colorida é a pegação entre amigos. E se para muitos “o cão é o melhor amigo do homem”, o sempre irreverente Vinícius de Moraes (1913-1980), cujo centenário de nascimento se comemorará em outubro próximo, elegeu o uísque como o seu cachorro engarrafado.
Aspecto interessante a ser considerado é a amizade na adolescência, momento em que os vínculos fora da família vão se formando. Surgem as turmas, muitas vezes se desfazendo para o surgimento de outros grupos. Enquanto duram essas relações, pela intensidade com que são vividas, parecem eternas. Os adolescentes que vivem isso hoje têm os seus BFFs (Best Friends Forever, ou seja, Melhores Amigos Para Sempre). Hoje também, via internet, os “amigos” podem ser adicionados aos montes.
Amigos de verdade? De acordo com o ditado popular, esses a gente conta no dedo. Quanto ao “Amigos, amigos, negócios à parte”, a concordância é quase geral. O mesmo não se pode dizer do polêmico “mulher de amigo meu para mim é homem”, provérbio, é claro, brasileiro. No que diz respeito à frase “Aos amigos tudo, aos inimigos, os rigores da lei” (palavras atribuídas ao presidente Getúlio Vargas), a discordância deve ser quase total.
Todas essas considerações servem de pretexto para lembrar o “Dia do Amigo”, que se comemora dia 20 próximo. Muito mais do que uma data, a ocasião é um convite à celebração desse nobre e prazeroso sentimento. De tantas músicas que são verdadeiros hinos à amizade, destaco “Amizade sincera” de Renato Teixeira. Vale a pena ouvi-la. Abraço amigo!
Caminho de volta
11 de Junho de 2013, por Regina Coelho 0
Nem toda ligação que as pessoas têm com a sua cidade de origem é feliz. Aliás, às vezes ela nem mesmo existe. Isso acontece, por exemplo, quando alguém simplesmente nasce em um lugar e dali é levado, sem o tempo necessário de criar identificação com a terra natal, não tendo com ela, portanto, qualquer afinidade ou intimidade. É compreensível que assim seja. Diferente disso é a situação de quem se afasta deliberada e definitivamente de sua cidade de nascimento renegando ou esquecendo suas origens. Como cada um tem lá a sua trajetória pessoal de vida e os seus motivos para proceder desse ou daquele jeito, é preferível não discutir as decisões alheias.
Em sentido inverso desse afastamento, prevalece o sentimento de amor à terra, lugar que vê a gente nascer, crescer e, muitas vezes, ir embora, quase sempre com o desejo de um dia voltar de vez. É o que acontece com tantos por toda parte, em Resende Costa também.
É o caso de Antônia de Paiva (a Antônia da Preta e neta da Chiquinha), 58 anos. Morando em São Paulo, ela trabalhou como doméstica, ajudante geral, babá e enfermeira prática. Foram 36 anos durante os quais as vindas a Resende Costa se resumiam a uma visita anual. Em relação a esse tempo todo, Antônia lembra que houve uma vez em que ficou ausente da terra natal por dois anos, cidade considerada por ela pequena, não muito evoluída quando se mudou daqui. A família e os amigos são citados por ela ao ser indagada a respeito do que mais lhe fazia falta em seus tempos de vida na maior cidade do país. Sobre a decisão de voltar, a explicação é simples e direta: “ter um pouco mais de tranquilidade e fugir da agitação da grande cidade”. Antônia elege o Grupo Escolar Assis Resende, hoje Escola Estadual Assis Resende, como um lugar especial para ela em Resende Costa. E por quê? “É o lugar onde passei parte da infância e da adolescência e abriu as portas de um mercado de trabalho para mim”, responde.
Também de volta à terra natal depois de morar por 40 anos em Belo Horizonte, o professor aposentado Ênio Resende, 75 anos, afirma ter deixado Resende Costa para estudar, pois aqui não havia colégio. No início, segundo ele, chegou a ficar dezoito meses sem vir em casa, tendo chorado muito, admite, por sentir falta da família. Como estudante, passou a frequentar a cidade nas férias. E passou a vir para cá quinzenal ou semanalmente quando já trabalhava. Isso nos tempos em que atuou no Banco Minas Gerais e no Colégio Municipal de Belo Horizonte, que era um conjunto de quatro unidades – São Cristóvão, Marconi, Salgado Filho e Honorina de Barros, tendo passado por todas. Sempre ligado ao meio rural e já envolvido com o Parque do Campo, importante associação que havia fundado juntamente com um grupo de ruralistas, Ênio optou pela volta à cidade, momento em que deu início à promoção de leilões rurais. E há um lugar especial para ele aqui: a Laje de Cima, pela beleza de sua paisagem e pelas recordações de infância. “Aqui estão minhas raízes, minha família”, resume Ênio em poucas palavras o muito que essa terra representa em sua vida.
Também na música e na literatura, referências à terra natal são comuns. Em “Último pau de arara”, a resistência do sertanejo nordestino em ficar em seu torrão é mostrada por Fagner no verso “Só deixo meu Cariri no último pau de arara”. Roberto Carlos é o cara que em “Meu pequeno Cachoeiro” declara seu amor a Cachoeiro do Itapemirim (ES) em versos saudosos como: “Recordo a casa onde eu morava/ o muro alto, o laranjal, ...”. Na obra literária de Mário de Andrade, o berço paulistano do escritor é figura recorrente. O verso “São Paulo, comoção de minha vida...”, que abre o poema “Inspiração”, é só um exemplo disso. E havia Itabira na vida do poeta Carlos Drummond. Seu belíssimo poema “Confidência do itabirano”, muito mais do que uma lembrança sentimental, é uma síntese perfeita da personalidade desse mineiro excepcional. “Alguns anos vivi em Itabira/ Principalmente nasci em Itabira/ Por isso sou triste, orgulhoso: de ferro. (...)” “Itabira é apenas uma fotografia na parede/ Mas como dói!” Versos como esses revelam o amor incondicional de Drummond por sua terra.
Felizmente para Antônia e Ênio, sem ser apenas uma fotografia na parede, Resende Costa é o berço aconchegante desses novos tempos. Mesmo assim, um ano e quatro meses depois, ela confessa que ainda não está adaptada à cidade, que considera parada (Para quem viveu em São Paulo então...) e deixa a desejar na área da saúde. Ele fica triste quando alguém fala em colocar um mirante sobre a caixa d’água da Copasa, na Laje de Cima. “Que BURRICE! A Laje é um mirante. Precisa é tirar a caixa d’água, que é a NOTA ZERO da cidade”, afirma Ênio, indignado. E propõe: “Vamos nos sentar em bancos, conversar com amigos e contemplar o pôr do sol”. Deve ser o da Laje, que é belíssimo, não é mesmo?
E que ninguém duvide do amor que nossos entrevistados sentem por Resende Costa.
Só por curiosidade
15 de Maio de 2013, por Regina Coelho 0
Notícias dos muitos acidentes que ocorrem nas nossas cidades e estradas são comuns nos jornais. Quando veiculadas na televisão, causam na gente um impacto maior, talvez pela força das imagens em movimento ali mostradas. Mas, por incrível que pareça, há pouco tempo, foi vendo num noticiário uma dessas tragédias, ou melhor, o resultado dela, que tive a atenção despertada por uma cena específica dentro daquela cena principal: curiosos fotografavam e filmavam o triste acontecimento. Em número expressivo e munidos de seus inseparáveis celulares, eles pareciam ser a polícia ou mesmo a própria imprensa registrando tudo como se estivessem agindo no cumprimento de um dever de ofício.
De imediato, deixei de acompanhar a matéria propriamente dita para tentar entender a motivação daquelas pessoas totalmente entregues na busca pelos melhores ângulos de um cenário pra lá de horroroso. É sabido que até uma simples ocorrência de trânsito costuma atrair a atenção dos que estão próximos ou não tão próximos do ocorrido. E dependendo da gravidade do acidente, o público presente pode crescer assustadoramente. Tudo bem. Normalmente, não é possível alguém ficar alheio ao que acontece ao seu redor. É compreensível que a gente se interesse pelos dramas humanos e não fique indiferente ao sofrimento dos envolvidos nessas situações. É aceitável que até mesmo por curiosidade as pessoas queiram ver o local do sinistro. Mas daí saírem de seus carros para conseguir o registro de um acontecimento trágico como quem fotografa ou filma um passeio, uma festa, um ponto turístico ou uma pessoa famosa é coisa, no mínimo, estranha.
Isso é o que se pode chamar de curiosidade mórbida ou, se preferirem, a atração pelo espetáculo, termo este que, segundo o dicionário Aurélio, pode significar “tudo o que chama a atenção, atrai e prende o olhar”, mesmo que o episódio seja infeliz ou perverso. Não se trata, portanto, da curiosidade humana em si, condição inerente a todos, que é o desejo de ver ou conhecer algo até então desconhecido. Isso deve explicar a inevitável e saudável curiosidade infantil repleta de porquês, como e o que é isso ou aquilo já na primeira etapa da vida. Há também a categoria da vizinha curiosa, aquela que dá notícia de tudo o que acontece nas casas próximas à sua e parece nunca dormir. Ao captar o menor sinal de movimento, lá está ela, sempre pronta para ver, escutar ou perguntar algo. Informação em primeiríssima mão sobre os outros ou sobre qualquer coisa é com ela mesma.
Reparem que usei “vizinha curiosa” no feminino. É que as más línguas, acho que as masculinas, espalham por aí que a curiosidade é uma característica mais acentuada nas mulheres. Será? Isso me remete à série de livros “O Guia dos Curiosos”, do jornalista Marcelo Duarte. O primeiro trabalho desenvolve o tema de um modo geral. Os outros sete livros apresentam temáticas especiais. São elas: esporte, invenções, Brasil, sexo, língua portuguesa, jogos olímpicos e... mulheres. Segundo o autor, “O Guia das Curiosas” (em parceria com Inês de Castro) foi escrito “só para mulheres e quem gosta de mulheres”.
A título de curiosidade também, vem à tona aquela crença que enfatiza a curiosidade que matou um gato como a moral da história. Ao que parece, esse ditado se originou na Europa, numa época em que as pessoas não gostavam muito de gatos. Era o fim da Idade Média. Acreditava-se que os gatos, especialmente os pretos, traziam má sorte. Com o intuito de acabar com eles, havia gente que fazia armadilhas usando como iscas coisas estranhas que chamavam a atenção dos bichanos curiosos. Mesmo cautelosos por natureza, a curiosidade diante daquilo que os atraía levava-os a se dar mal. Nesse caso, ser curioso pode ser visto como algo perigoso e negativo.
Em tempos de invasão permitida da privacidade com a vida das pessoas escancarada por todos os lados, fica até difícil não se deixar levar pela curiosidade. Afinal de contas, é muita informação, um verdadeiro bombardeio de notícias, fotos, vídeos e mensagens rondando diariamente nossa vida. Nisso tudo, há muito lixo também, e o que é pior: o desrespeito aos limites estabelecidos pela ética social.
Xeretas, bicudos, intrometidos, candinhas, intrusos ou bisbilhoteiros postos de lado, exalto a boa curiosidade, aquela intrigante condição humana que os pesquisadores, por exemplo, têm de sobra e graças à qual descobertas científicas e inventos extraordinários se tornam realidade. Uma simples prova disso é a existência do Botox. Do uso terapêutico da toxina botulínica como uma alternativa eficaz para o tratamento não cirúrgico do estrabismo ao uso cosmético para a melhora das rugas (entre outras utilizações), o caminho da descoberta desse poderoso aliado, principalmente, de muitas mulheres, se fez pela observação, pelo espírito curioso do oftalmologista americano Alan B. Scott. Bendita seja a curiosidade que produz o conhecimento voltado para o lado bom da vida.
Lilia Lara
16 de Abril de 2013, por Regina Coelho 0
Filha caçula da dona Zezé e do Alcides Lara, Lilia foi uma criança feliz e encantadora. Ainda pequena, começou a se destacar em apresentações escolares e religiosas, graças principalmente ao talento demonstrado pelo canto, uma de suas paixões pela vida toda. Já adolescente, alta e sempre bonita, teve a prática do vôlei e a atuação em encenações teatrais que aconteciam na cidade como algumas de suas distrações preferidas. Ao chegar à fase adulta, tornou-se provavelmente uma das primeiras cabeleireiras de Resende Costa. Foi aluna do então Grupo Escolar Assis Resende e do antigo Ginásio Nossa Senhora da Penha. Com o objetivo de cursar o magistério, mudou-se para Barbacena, onde, a exemplo do que fizera como cantora do nosso Coro Paroquial, passou a integrar o Coro Orfeônico da escola em que se formou.
Professora formada e de volta à sua cidade, foi trabalhar no então Grupo Escolar Conjurados Resende Costa, mas por breve período, pois casou-se em 1968, indo morar em Sete Lagoas.
Distante da terra natal, manteve-se atuante como profissional da educação e deu à luz seus dois primeiros filhos. Transferida para Lavras, cursou Pedagogia. E regressou finalmente a Resende Costa em 1978, ao assumir a direção da Escola Estadual Conjurados Resende Costa, hoje municipalizada. Era a volta para casa. Aqui teve seu filho caçula. Ao mesmo tempo, iniciou uma bela etapa de vida marcada por inúmeras e importantes realizações. À frente do Conjurados por 13 inesquecíveis anos, fez a escola crescer substancialmente, tornando-a referência de bom ensino e de sólidos princípios humanitários. Paralelamente, reassumiu seu posto de cantora no Coral Opus Mater Dei e passou a chamar para si a responsabilidade de novas funções.
Totalmente devotada às causas cristãs, atuou na Pastoral Carcerária, em cursos de preparação para crismandos e na coordenação das atividades dos coroinhas da Paróquia de Nossa Senhora da Penha. Inspirada no movimento católico da Renovação Carismática, buscou na força do Espírito Santo a própria força para estimular, liderar e sobretudo vivenciar ações condizentes com os ensinamentos de Jesus. Dessa forma, foi presença iluminada no Apostolado da Oração, na Legião de Maria, no Cerco de Jericó e na Adoração noturna, na capela da matriz, encontro com companheiros para reza de hora marcada, muitas vezes alcançando a madrugada.
No centro de tudo, a ação poderosa do terço. A reza semanal no Lar São Camilo, o terço mensal da família junto aos vizinhos e o momento aos domingos antes da missa das oito. Em casa, o rosário de quatro terços instituído pelo Papa João Paulo II é rezado diariamente.
E como se já não bastasse tanta dedicação, era preciso coordenar as visitas da Mãe Rainha, preparar com carinho as coroações de maio e enfeitar cuidadosamente as janelas de uma certa casa da Praça Dr. Costa Pinto para as procissões festivas que por ali passam. Era preciso também apoiar a vocação sacerdotal de seminaristas encorajados e amparados por ela. E olhar o mundo com o coração para prover proteção providencial aos mais necessitados.
Em família, era o referencial na forma de quem guardava com desvelo a casa e as histórias outrora ali vividas por ela, pelos pais e irmãos. Era ainda a tia querida de um incontável número de sobrinhos, cada um deles lembrado nominalmente todos os dias ao ser contemplado em suas orações e, hoje, todos órfãos dela.
No dia a dia doméstico, o gosto pelos trabalhos manuais e pelos livros lidos, estudados e emprestados aos montes por aí. Os cuidados com o marido, o trabalho indispensável de sua dedicada ajudante e a alegria pela chegada dos filhos, netos, noras, genro e de quem mais aparecesse. Casa sempre aberta, também para receber os amigos seresteiros em memoráveis cantorias. É a bela voz que agora se cala destacando-se naturalmente entre as outras.
Nas andanças pela cidade e nos passeios que adorava fazer, a elegância em pessoa e a saudável vaidade, coisas de quem se gostava, sem jamais ser fútil ou deixar de cultivar as coisas do espírito, sendo suave, humilde e bondosa.
Não por acaso batizada como Maria, devotava amor extremado a Nossa Senhora, fortaleza de todos os momentos e a quem agora pedimos que interceda por nós junto a seu filho, em razão da dor pela ausência de alguém que soube se fazer muito amada. E se na vida lhe foram dadas a força para combater o bom combate e a perseverança para ter guardado a fé, conforta-nos a todos acreditar que Deus a recebeu em Sua morada.
Lilia Lara, seu outro nome é SAUDADE.
P.S. "Recebi a incumbência de escrever o texto acima, que foi lido ao final da missa de sétimo dia de minha tia Lilia. Resolvi publicá-lo neste espaço porque uma tão bonita história de vida merece ser contada de novo. Nela me incluo para dizer que desde sempre estivemos muito próximas afetivamente. Em casa, crescemos todos amparados também por seus cuidados. Sem ela agora, que vazio!”
Falando sério
12 de Marco de 2013, por Regina Coelho 0
Malala Yousufzai, 15 anos, levou um tiro na cabeça ano passado. A estudante paquistanesa foi atacada por talibans armados por defender o direito à educação para mulheres.
Ela se tornou conhecida ainda em 2009, aos 11 anos, quando assinava o blog “Diário de uma estudante paquistanesa” na BBC Urdu, site da BBC para o Paquistão. Na época, Malala comentava o impacto de medidas extremas do Taliban (movimento fundamentalista islâmico), que, naquele ano, havia fechado mais de 150 escolas para meninas e explodido outras 5 no Vale de Swat, uma região ultraconservadora do país.
O ataque contra a menina ocorreu no dia 9 de outubro de 2012, quando ela voltava da escola para casa, na cidade de Mingora, província de Swat. Dois homens armados abordaram a van escolar que transportava Malala e cerca de 10 crianças em uma congestionada avenida da cidade. Reivindicando para si a autoria do atentado, o Taliban, que já havia ameaçado de morte a menina, acusou-a de promover o secularismo (rejeição ao Islamismo).
Yousufzai, uma estudante alegre que queria ser médica antes de aceitar a vontade do pai e dela própria talvez para ser política, recupera-se hoje na Inglaterra e tornou-se um poderoso símbolo de resistência contra a privação do ensino às meninas paquistanesas.
A violência, a educação e as mulheres. Mas estamos no Brasil, dirão muitos. Isso não acontece aqui. E é fato. Nem por isso a indignação é menor. Nem nossa realidade, tão melhor. Se não falta educação para elas e para eles também, brasileiros, ainda que questionada em sua qualidade, sobra violência provocada por muitos deles para um número bastante expressivo de nossa população feminina.
Em favor do país, é justo reconhecer a criação de mecanismos de controle às agressões sofridas por mulheres vítimas de seus agressores em potencial – maridos, namorados, maníacos sexuais e até mesmo pais e parentes próximos. Um recurso é a aplicação da Lei nº 10.778, de 24 de novembro de 2003, que estabelece a notificação compulsória, no território nacional, em caso de violência contra a mulher que for atendida em serviços de saúde públicos ou privados. Outro é a observância da Lei nº 11.340, de 7 de agosto de 2006, mais conhecida como Lei Maria da Penha, que tem como objetivo básico a coibição da violência doméstica com medidas penais mais efetivas impostas aos que nela se enquadrarem. Somente a título de triste curiosidade: Maria da Penha, a pessoa que inspirou a criação da lei que leva popularmente seu nome, é farmacêutica, por seis anos espancada brutalmente pelo marido, que tentou assassiná-la por duas vezes. A primeira, com arma de fogo, deixando-a paraplégica, a segunda, por eletrocussão (choque elétrico) e afogamento.
Estatisticamente, a violência contra a mulher é muito maior do que contra o homem. Venha de quem vier, é inconcebível. E, ao contrário do que possa parecer, ocorre em todas as classes sociais, certamente menos disfarçada nas camadas mais simples da sociedade. E se a cultura popular tenta trazer um pouco de leveza a essa questão propondo a proteção às mulheres ao defender que “em mulher não se bate nem com uma flor” pode também estimular a agressão contra elas sugerindo que “mulher gosta de apanhar”. Sem comentários.
Há quase seis anos ocupando regularmente como colunista o presente espaço, vinha até então relutando em escrever sobre tão desagradável assunto. Desta vez não consegui evitar a abordagem desse grave problema que, como se viu, não é exclusividade nossa. E o que faço não é tanto pelo Dia Internacional da Mulher, lembrado a cada oito de março, até porque, se a data existe, isso é sintomático. E os outros dias do ano não são nossos? Não se trata aqui de ignorar a importância desse dia para lembrar o episódio que teria dado impulso à luta das mulheres em busca de respeito à condição feminina. A história das trabalhadoras grevistas que morreram queimadas em Nova York numa fábrica de tecidos que foi incendiada já é bastante conhecida. Principalmente, esse dia deve servir de inspiração para mudanças justas que se traduzam em relações mais harmoniosas entre mulheres e homens.
Com todo respeito à trajetória de pelejas de tantas mulheres pelo mundo ao longo dos anos, o que me moveu a falar de nós, acima de tudo seres humanos, foi a comovente história da jovem Malala, tão corajosa e obstinada menina e já enfrentando um peso tão grande na vida. Por ela, por todas as vítimas da violência, incluindo os homens, que prevaleça nossa repulsa a toda forma de agressão. Quanto à propalada e muitas vezes incentivada guerra dos sexos, é mais sensato estender a bandeira branca e reconhecer que, não obstante nossas naturais diferenças, é possível, ou melhor, é necessária a convivência pacífica entre as pessoas.