Por falar em Natal
11 de Dezembro de 2013, por Regina Coelho 0
Fim de ano chegando, a história se repete. Sem que a gente se dê conta, já é dezembro. O espírito natalino se faz presente, literalmente também. É hora de presentear e ser presenteado. Suscetíveis ao clima do momento, abrimos nossos corações, abrindo ainda bolsos e bolsas, seduzidos pelos apelos massacrantes do mercado consumidor. A combinação é quase infalível. E então, como que tomados subitamente por sentimentos tão nobres como a bondade e a caridade, decidimos pela prática do bem em favor do próximo.
A bem da verdade, a movimentação que se observa em torno dessas causas beneficentes nem sempre tem motivações emocionais, digamos assim. A julgar pelas campanhas filantrópicas desenvolvidas por empresas e instituições, em época de Natal ou não, fica claro esse entendimento. Em razão dessas iniciativas sociais, ganham todos: os atendidos por elas e seus patrocinadores. Estes, para dizer o mínimo, ganham um forte marketing social, e isso é compreensível.
De um jeito ou de outro, é válido e necessário todo propósito ligado à promoção do bem comum. E em que pesem as críticas de alguns aos que fazem desse período de confraternização o único momento para o envolvimento em ações solidárias, é possível acreditar que isso pode ser um bom começo.
Não é o caso de esperar que as pessoas sejam capazes de gestos grandiosos o tempo todo. Isso é impossível. É o caso, porém, de saber transformar, ou melhor, querer transformar ações isoladas em atitudes consistentes e permanentes. Pequenas e cotidianas gentilezas que sejam já fazem uma grande diferença. Para melhor, é claro.
Bem a propósito disso, guardo na lembrança um episódio que passo a contar agora. No final da década de 80, submetido a uma cirurgia em São João del-Rei, meu pai recebeu, ainda na Santa Casa local, muitas visitas. Entre elas, naturalmente, estavam os familiares, os amigos mais próximos, os conhecidos de lá e de cá. Todos lhe desejando uma boa recuperação e apresentando seus préstimos à família. Foi quando a Terezinha do Didi, nossa conterrânea, filha do saudoso senhor Alcides Maia, e morando em São João até hoje, ofereceu-se para lavar as roupas pessoais de meus pais (minha mãe era a acompanhante principal do paciente). Ao dizer que aquilo era o que tinha a oferecer, enfatizando que era boa na lavação, ela nos comoveu, revelando seu melhor – generosidade em sua forma mais espontânea. Não foi preciso aceitar a oferta da Terezinha, que pode até não se lembrar desse fato, mas a gente não pode se esquecer de um gesto assim tão belo.
Como a maioria das pessoas, procuro desenvolver meu lado bom. Há dois anos e meio, por exemplo, pratiquei uma pequena boa ação que me rendeu eloquentes agradecimentos por parte de um casal brasileiro a quem pude ajudar. No hall de um hotel em Roma, aguardávamos o traslado para o aeroporto. Pertencíamos a grupos diferentes, eventualmente reunidos para determinados passeios, portanto, só nos conhecíamos de vista. Naquela espera ansiosa pela partida, os dois tinham uma preocupação extra: o cadeado de uma de suas malas se perdera ou estragara, qualquer coisa assim. Normalmente, já há aquela insegurança dos que despacham sua bagagem em relação a extravio e violação de malas em viagens de avião. É um absurdo isso, mas acontece com frequência. Os indefesos passageiros que tratem de proteger seus pertences como podem. No caso específico aqui narrado, para complicar, era domingo. Nas imediações, o comércio estava fechado. Com certa experiência nessas situações de viagem, por isso, prevenida, não pensei duas vezes em ceder meu cadeado reserva ao então apreensivo e depois aliviado casal. Isso fez o senhor querer comprar o bendito cadeado (no seu lugar, eu faria o mesmo). Recusei a proposta (no meu lugar, acho que ele faria o mesmo). E ficamos assim.
No dia a dia, entre os afazeres a que cada um de nós se entrega, surpreendemos e somos surpreendidos com delicadezas que nos humanizam e nos aproximam uns dos outros como semelhantes. É dessa forma que entendo e recebo mimos que muito me alegram. Como os pães de queijo que a Maria do Carmo (do Aquim), vindo pessoalmente até minha porta, trouxe para mim. Estavam tentadoramente deliciosos, Maria. Pedi ao Hamílton (da Penha) algumas mudas de gerânio e fui prontamente atendida por ele. As flores hoje estão lindas. De uma senhora do Barracão que eu mal conhecia ganhei uma planta de cravina, assim que ela soube do meu interesse por essa flor.
Tudo isso é muito bonito e é vida real, muito distante dos grandes e improváveis feitos heroicos. E não deve haver uma segunda intenção nessas e noutras tantas atitudes porque, segundo Frei Betto, “generosidade calculada é barganha”.
Beijos, abraços, sorrisos e cumprimentos contam muito, mas que não sejam só os protocolares. Declarações de amor e de amizade aos que amamos também. E principalmente a vontade de ser melhor, cada um de nós, por nós mesmos e para o bem de todos. A isso chamamos solidariedade. Um bom Natal a todos!
Plano B
13 de Novembro de 2013, por Regina Coelho 0
Falar bonito é isto
Diz a lenda que Rui Barbosa, ao chegar em casa, ouviu um barulho estranho vindo do quintal. Chegando lá, constatou haver um ladrão tentando levar seus patos de criação. Aproximou-se vagarosamente do indivíduo e, surpreendendo-o ao tentar pular o muro com os amados patos, disse-lhe:
__Oh, bucéfalo anácrono! Não o interpelo pelo valor intrínseco dos bípedes palmípedes, mas sim pelo ato vil e sorrateiro de profanares o recôndito da minha habitação, levando meus ovíparos à sorrelfa e à socapa. Se fazes isso por necessidade, transijo; mas se é para zombares da minha elevada prosopopeia de cidadão digno e honrado, dar-te-ei com minha bengala fosfórica bem no alto da tua sinagoga, e o farei com tal ímpeto que te reduzirei à quinquagésima potência que o vulgo denomina nada.
E o ladrão, confuso, pergunta:
__Dotô, eu levo ou deixo os pato?
(Dad Squarisi “Dicas de Português”, coluna publicada em 15 jornais do país, entre eles o “Estado de Minas”, de onde o texto acima e o que segue abaixo foram extraídos.)
Desafio
Pode? Não poderia. Mas pode. Folheto distribuído pelo Centro Cultural Amazonino Mendes (Bumbódromo) entrega a gregos e troianos este texto: “O Governo do Estado do Amazonas, por meio da Secretaria de Estado de Cultura, considerando a política de popularização das ações culturais, a vocação parintinense para as artes, os municípios vizinhos do baixo Amazonas como: Barreirinha, Boa Vista do Ramos, Maués e Nhamundá, os investimentos realizados na modernização e ampliação das estruturas do Centro Cultural Amazonino Mendes e a necessidade de manter a integridade desse patrimônio e resguardar os equipamentos e acessórios instalados, transforma esse centro em espaço multiuso, destinado primeiramente ao ensino das artes e à formação de técnicos para apoio às atividades artísticas e à capacitação tecnológica de jovens e adultos com intensa atuação do Cetam e da Secretaria de Cultura”.
Ufa!
O texto tem 745 toques. E só um ponto. Testes sobre a legibilidade e a memória demonstram dois fatos. Um: o leitor retém integralmente períodos com a média de 150 toques. Com 200, guarda a primeira parte e perde a segunda. Com 250 ou mais, grande parte do enunciado se perde. Conclusão: o governo amazonense jogou dinheiro fora.
Sugestão
A Secretaria de Cultura do Amazonas transforma o Centro Cultural Amazonino Mendes em espaço multiuso. Trata-se de passo importante do governo do estado na direção da política de popularização das ações culturais. Com ele, cria-se espaço para o ensino das artes e a formação de técnicos aptos a apoiar as atividades artísticas e a capacitação tecnológica de jovens e adultos.
(Dito o principal, suprimi, por minha conta, os detalhes.)
Estórias com Moacyr
Moacyr Scliar estava preocupado porque seu filho adolescente não lia. O menino vivia no computador. Mas ler que era bom, nada. O pai escritor, volta e meia, insistia: “Filho, você precisa ler”. Não tinha jeito. Um dia, Moacyr resolveu radicalizar: escreveu um livro e lascou lá que era dedicado ao filho. Chegou em casa com o exemplar saído do forno da editora, entrou pressuroso, bateu na porta do quarto do filho... Lá estava o adolescente diante do computador. O pai então anuncia o presente:
__Filho, olha o livro que teu pai acabou de publicar, é dedicado a ti.
O garoto nem tirou os olhos do computador e disse ao pai:
__Tu não podias fazer um resumo, tchê?
(Affonso Romano de Sant’Anna, em sua coluna publicada no “Estado de Minas” de 9 de dezembro de 2012.
Escritor gaúcho, Moacyr Scliar era formado em medicina, tendo trabalhado como médico especialista em saúde pública e professor universitário.
Em texto postado quando o amigo se foi, Affonso Romano comenta ter participado em Porto Alegre de programa de rádio homenageando Scliar. Na ocasião, entre casos e depoimentos, um bonito poema de Affonso Romano foi mencionado para ser dedicado àquele que partira. Aqui vai ele):
Eles estão se adiantando
Eles estão se adiantando, os meus amigos
Sei que é útil a morte alheia
Para quem constrói seu fim.
Mas eles estão indo, apressados,
Deixando filhos, obras, amores inacabados
E revoluções por terminar.
Não era isto o combinado.
Alguns se despedem heroicos,
Outros serenos. Alguns se rebelam.
O bom seria partir pleno.
O que faço? Ainda agora
Um apressou seu desenlace.
Sigo sem pressa. A morte
Exige trabalho, trabalho lento
Como quem nasce.
Envolvida no trabalho de revisão do “Memórias do antigo Arraial de Nossa Senhora da Penha de França da Laje, atual cidade de Resende Costa”, do resende-costense Juca Chaves, a ser lançado brevemente, acionei meu Plano B para compor o presente artigo. Para isso apropriei-me de alguns textos alheios com os devidos créditos e breves explicações minhas colocadas entre parênteses.
Em tempo – A obra em questão é parte integrante da Coleção Lageana, projeto desenvolvido pela AMIRCO (Associação dos Amigos da Cultura de Resende Costa).
Utilidades mil
15 de Outubro de 2013, por Regina Coelho 0
Anexos às revistas AVON, aquelas que anunciam tradicionais produtos de beleza, catálogos da mesma empresa intitulados “Moda e Casa”, da mesma forma, oferecem uma grande variedade de artigos a uma clientela presente em salões de beleza e também procurada em casa. Esse sistema de venda que dispensa loja, daí ser chamado de porta em porta e que tem as revendedoras ou consultoras como responsáveis pelo contato direto com o público consumidor, quase que totalmente feminino, movimenta cifras impressionantes. Ao mesmo tempo, garante o sustento de muita gente numa verdadeira ciranda de envolvidos com esse tipo de negócio.
Compartilho com minha amiga e comadre Moreira o gosto pelo manuseio dessas populares peças de propaganda que vendem quase tudo. Nada mais relaxante. Entregues a provas, trabalhos e leituras próprios do nosso ofício comum, líamos ou víamos aquelas alegres e sugestivas ofertas com prazer. Era uma boa pausa em meio a tanta correria por conta de nossos inúmeros compromissos profissionais. E continua sendo assim para nós duas.
Pois bem. Muito menos consumidora do que observadora, resolvi fazer uma seleção atual de produtos que me chamam a atenção por algum motivo qualquer. De cara, destaco o “Relógio Musical Pássaros”, segundo o anúncio da revista em questão, um “sucesso de vendas” no Brasil. O texto esclarece ainda que, a cada hora, uma linda melodia de diferentes pássaros, com duração de 7 a 10 segundos, poderá ser ouvida, lógico, do tal relógio. Educado, ele não soará entre 22 e 5 horas da manhã.
Pesquisando ainda no já citado “Moda e Casa” e em seus similares, descobri objetos protetores variados: para ombros (proteção feminina para alças de sutiã), de dedos (para o corte de legumes, carnes...), de canto (afixado em quinas de mesas, armários...), de porta (para não bater), de alimentos, (na verdade, uma tampa que, aberta, parece uma sombrinha). Na linha dos itens que portam coisas, há o porta-metades com “gancho para encaixar na grade da geladeira”, o porta-objetos (para variar a bolsa), o porta-fios (uma alça de elástico), o porta-trecos (deve abranger tudo) e o incrível porta-rolo de papel higiênico com revisteiro. Ao lado de produtos já consagrados como a chaleira ou a leiteira com apito e a lixeira com pedal, aparecem invencionices como a queijeira com canaleta coletora de líquidos, a almofada-bandeja para netbook, o cortador de unha com lupa, a cortina para box com visor e o avental divertido. Divertido? Nos dois modelos oferecidos, uma mulher e no outro um homem são reproduzidos em trajes sumários. No segmento infantil, é impossível não observar o troninho-elefante (o antigo peniquinho) e a joelheira-baby, “atoalhada, antiderrapante”. Que fofos!
Minha relação de artigos de utilidade doméstica compreende ainda o assento massageador, a escova de banho para as costas, a munhequeira (“espaço com fechamento em zíper para guardar dinheiro ou chave”), o descanso de talher e tampa, o separador de ovos (melhor seria se fosse o separador da clara e da gema), o aparador men (“apare pelos do nariz e da orelha”), o organizador de controle remoto e a sapatilha flex (dobrável).
Entre tantas opções de compra para isso ou para aquilo, algumas são uma roubada. Uma delas é um certo porta-notas e cartões que, minúsculo, só serve mesmo como porta-moedas. Outra coisa meio esquisita é o miniporta-foto 3x4 com ímã. E tem ainda o cortador de batata palito cujas lâminas se soltam facilmente impedindo que as batatas sejam cortadas devidamente. Deixando um pouco de lado as vendas de variedades por catálogos, é quase obrigatório citar também a alça para abrir certas latas de sardinha e, em algumas embalagens, o picotado que serviria para abri-las e não abre como exemplos de coisas que não funcionam direito. No caso do “abre fácil” mencionado na lata, pode até ser, mas quanta sujeira pode fazer! Uma boa ideia (não é a 51), em compensação, é a tampa-proteção na abertura das latas de cerveja Itaipava, ao que parece, uma exclusividade da marca.
De volta às simpáticas revistas, elas são mesmo um sucesso. E correm de mão em mão a cada nova campanha lançada no mercado. Ofertas úteis ou nem tanto, muitas vezes compradas por impulso, sempre apresentadas por alguém ou até ignoradas por quem torce o nariz para o que é popular, certo mesmo é que é quase impossível, principalmente para a mulherada, deixar de pelo menos “dar uma olhada” naquela quantidade absurda de produtos e de fazer um pedido de compra que seja, só pra não perder o costume. Pode-se dar a isso os nomes de leve terapia ou de inofensivo consumismo.
Falar em utilidades do lar me fez lembrar o “Da utilidade dos animais”, belo texto de Drummond, extraído da obra “De notícias e não notícias faz-se a crônica”. A lembrança não se justifica pelo tema do presente artigo, mas pela permanente e verdadeira utilidade da leitura de CDA, no mês em que nasceu nosso poeta maior. Fica a dica. E de graça!
Sala de aula (Final)
13 de Setembro de 2013, por Regina Coelho 0
Vista sob a ótica de quem conduzia as aulas, a vida de estudante era um capítulo à parte, com variadas formas de comprometimento em relação às atividades escolares e às responsabilidades delas decorrentes. Nesse sentido, havia quem fizesse “corpo mole” ou estivesse só de “corpo presente” na sala de aula ou tirasse o “corpo fora” dos compromissos estudantis. Em compensação, havia os que se empenhavam nos estudos de “corpo e alma”. Dia de prova quase sempre era sinônimo de tensão: o roer das unhas, santinhos colocados estrategicamente sobre as mesas de trabalho, orações piedosas, promessas em busca de uma boa nota ou de aprovação e, às vezes, o choro incontido por toda aquela situação. Na falta de estudo podia sobrar a malandragem dos que viam a “cola” como um recurso válido para um desempenho melhor. Não faltavam outras artimanhas também para a obtenção dos necessários pontos para a média. Isso da parte de alguns, é verdade, os espertinhos de sempre. Da parte de muitos, é preciso dizer, estudar era realmente a prioridade. Estudantes de nome ou de fato, isso pouco importa, numa determinada época, eu e eles estivemos juntos por uma bela causa: o ensino e a aprendizagem.
Hoje os tempos são outros. Em minhas andanças pela cidade, continuo a ver inúmeros dos agora meus ex-alunos. Há também os distantes fisicamente. Por onde andarão? Há aqueles que se tornaram colegas e/ou amigos. E ainda os falecidos, de muitos anos já passados, quando se foram tão adolescentes, e aqueles ausentes dos anos de agora.
Naqueles tempos de entusiasmo estudantil, fui testemunha em sala de aula e fora dela de grandes sonhos acalentados para quando a vida adulta chegasse. E então formamos boas parcerias de trabalho. Sem qualquer intenção de ser original, recorro a Guimarães Rosa com o propósito de reafirmar que “o mestre é aquele que de repente aprende”. E assim foi. Da convivência e da experiência no cotidiano escolar, recebi e aprendi importantes lições de vida.
P.S. Dedico essa matéria, iniciada na edição anterior, a todos os meus ex-alunos, personagens com os quais construí minha história como profissional da educação.
Maratona intelectual
“Felicidade!/ Passei no vestibular/ Mas a faculdade/ É particular.” Os versos iniciais de “O pequeno burguês”, composição de Martinho da Vila gravada pelo próprio no longínquo 1969, sintetizam com perfeição duas realidades vividas por muitos numa determinada fase da vida. De fato, é mesmo um acontecimento bastante feliz a aprovação ao vestibular, concurso instituído no Brasil em 1911 pela Reforma Rivadávia Correa. Para uma significativa parcela dos aprovados, no entanto, passada a euforia pela vitória, vem a preocupação decorrente do pagamento das mensalidades (entre outras despesas) cobradas pelas escolas particulares de ensino superior no país.
Quarenta e quatro anos depois do lançamento da música em questão, a situação nela retratada continua atual, ainda que se leve em conta a presente adoção de políticas públicas de apoio aos estudantes menos favorecidos economicamente. Acontece que, para as boas instituições de ensino superior, sejam elas públicas ou privadas, a concorrência hoje é brutal. E pior, é desleal, quando se sabe que não são oferecidas as mesmas condições de estudo para todos. Em outras palavras, em grande parte das escolas públicas brasileiras, falta ainda uma qualificação melhor no ensino de base. E a barreira a ser transposta atende pelo nome de vestibular, ou melhor, pelo Exame Nacional do Ensino Médio (ENEM).
Momento decisivo na vida de milhões de estudantes brasileiros, o tradicional vestibular já há alguns anos vem perdendo força com a crescente utilização de outros processos seletivos para o ingresso à faculdade. A “bola da vez” é o ENEM, superconcurso com impressionantes 7,17 milhões de inscritos em 2013, a ser realizado em 26 e 27 de outubro. Abrangendo todo o território nacional, o exame é constituído de quatro provas objetivas, cada uma com 45 questões de múltipla escolha e tratando de áreas de conhecimento do Ensino Médio. Com peso de ouro, a temida redação é exigência quase prioritária. Sobre seu sistema de correção, houve três mudanças: a proibição do deboche, a exigência do domínio da norma culta para recebimento da nota máxima e a redução da discrepância (diferença) nas notas de dois corretores para uma mesma redação. A intenção é evitar piadas e gracinhas nos textos (vide receita de “miojo” e letra do hino do Palmeiras no ENEM 2012), redações nota 1000 com erros de ortografia como “enchergar”, “rasoavel” e/ou de concordância verbal, acentuação gráfica e pontuação (em 2012 também). E haverá agora uma observância maior quanto à interpretação subjetiva dos responsáveis pela nota final de cada produção de texto. Havendo necessidade, a opção é pela média aritmética. Grosso modo, é isso.
Como se vê, está em curso uma verdadeira maratona intelectual no Brasil. Uma boa preparação a todos e que vençam os melhores.
Sala de aula (Parte I)
14 de Agosto de 2013, por Regina Coelho 0
Atuei profissionalmente como professora nos Ensinos Fundamental e Médio. Foram quase 32 anos ininterruptos durante os quais convivi, evidentemente, com muitas pessoas. Entre colegas, diretores e demais funcionários das escolas por onde passei, pais de alunos e alunos, atenho-me aos últimos, os grandes protagonistas desse processo chamado educação e do presente artigo.
Começo dizendo que não tenho a mínima condição de calcular, ainda que aproximadamente, o número de alunos que tive ao longo dos anos. Sei é que passou pelas minhas aulas, primeiramente de inglês, depois de português e literatura, gente das mais variadas idades, origens e atividades. No princípio da carreira, era comum ver na sala de aula alunos mais velhos do que eu, o que foi mudando, é claro, com o passar do tempo. Havia também uma boa quantidade de meninos vindos principalmente dos povoados daqui e de lugares próximos de Resende Costa para dar prosseguimento a seus estudos. Isso ocorria pela falta da extensão de séries e do antigo segundo grau nessas localidades. E não é que até mesmo uma família de angolanos apareceu por aqui com seus filhos matriculados na Escola Conjurados? De vez em quando, para delírio de muitos, surgiam em uma ou outra turma adolescentes integrantes de algum circo instalado na cidade. Mas, do mesmo modo que davam o ar de suas graças, iam embora sem esquentar carteira, quase sempre sem que fosse possível guardar sequer seus nomes. Meninos que moravam no então Asilo São Camilo, gente de companhia, freiras e soldados também estiveram entre os inúmeros alunos que passaram pela minha vida profissional.
A julgar pelo convívio de tanto tempo com uma diversidade tão grande de tipos humanos, dá para imaginar a quantidade de histórias que vivi ou presenciei no dia a dia da sala de aula. Selecionei algumas. Contarei os “milagres”, mas omitirei os “santos”. Vamos a elas.
Certa feita, ouvi de um aluno um pedido em nome de um colega para que este pudesse ir ao banheiro. Respondi ao solicitante que gostaria que o colega necessitado de sair da sala falasse isso comigo diretamente, que ele tinha boca para falar. “Isso mesmo, eu falei com ele que a senhora não morde”, replicou o intermediário daquela conversa. De uma outra vez, estava passando pelas fileiras de carteira conferindo o inevitável e sempre diário dever de casa. Foi quando um engraçadinho, logicamente com a tarefa por fazer, passou despistadamente para uma das filas dos que já tinham mostrado o caderno. Percebendo a manobra dele, iniciei aquele sermão, dizendo-lhe que ele precisava nascer de novo para me enganar, pois, quando ele nasceu, eu já trabalhava. Foi o que bastou para um gaiato dizer: “Nossa, a senhora deve ter uns quase 40 anos”. Aconteceu também um dia que, por alguma razão qualquer, não me lembro qual foi, uma das lentes de contato que usava (ainda uso lentes) caiu no chão. Abaixei-me para procurá-la, explicando a todos o que acontecera. Então, um dos alunos que se dispuseram a me ajudar a achar a tal lente me perguntou, seriamente assustado, se eu usava aquilo para enxergar mais do que eles. Igualmente inesquecível foi o que aconteceu numa certa aula de redação. Como forma de motivar a turma para o que pretendia, coloquei para tocar a belíssima “João e Maria”, de Chico Buarque e Sivuca. Lá pelo meio da canção, uma aluna, daquelas bem espevitadas, soltou esta pérola: “Ah, credo, Regina, cê não tinha uma música melhorzinha pra trazer pra nós, não?” Fiquei desconcertada com tamanha sinceridade, achando impossível alguém não gostar daquele primor de valsinha. Isso para mim, para muitos, não para ela. E tem ainda o caso de um aluno que me abordou no primeiro dia de aula dele comigo para dizer que eu havia sido colega da mãe dele. Quis saber de quem ele era filho. Ao me responder, ele acrescentou para todos ouvirem: “a mãe falou que a senhora não deixava ninguém olhar suas provas”. Até hoje fico na dúvida se aquilo foi um elogio ou uma crítica.
Sala de aula também é lugar para debates acalorados sobre temas da atualidade. Acreditando nisso e apostando no empenho e no entusiasmo das turmas, testemunhei muitos momentos de alto nível no embate das ideias entre colegas. Do meu gosto pessoal uma outra aposta foi o lançamento do “Revelação 92”. Uma turma pequena de 8ª série, a montagem de um jornal-mural, trabalho extraclasse voluntário e sem nota no diário, e o talento dos alunos se revelando na produção das matérias.
Alunos, alunos aos montes, mas cada um era alguém único. Talvez por isso mesmo era impossível evitar alguns conflitos entre eles, entre mim e alguns deles. Na soma geral, prevaleceu a harmonia entre nós. Calados, tagarelas, nervosos, desligados, amorosos, dissimulados, nervosos, aplicados, espirituosos... eles formavam um vasto mosaico de personalidades tão diferentes.
(A matéria continua em setembro.)