E viva a voz!
15 de Maio de 2014, por Regina Coelho 0
dos atributos relacionados ao ser humano, a voz situa-se entre os mais marcantes. Isso porque cada pessoa possui uma voz única e especial. É como se fosse uma impressão digital. É claro que existem vozes parecidas, principalmente entre parentes mais próximos. Cabem aqui os imitadores de vozes de famosos ou de amigos. Nesse caso, a imitação costuma vir acompanhada de todo um trabalho de composição envolvendo gestos, expressão facial, vestuário e, é lógico, a voz. Quando se trata de imitar um artista cantando, isso tudo já foi observado, sem contar o texto pronto, ou melhor, a letra da música decorada, o que parece facilitar as coisas. Mais complicado deve ser “criar” a fala de alguém, com seu discurso característico e suas marcas próprias nem sempre tão óbvias, como a ondulação da voz, a velocidade dela ou a preferência inconsciente por certas expressões. Certo mesmo é que essa habilidade é muito interessante, um dom exercido com maestria por muitos, aqui em Resende Costa também, é claro.
Bem próximo de nós, dando vida ao Jornal das Lajes, o André (nosso editor-chefe), pode ser apontado como um bom imitador. Fazendo dobradinha com ele nas sessões das segundas-feiras promovidas pela Turma do Baú (no sítio do Dr. Luiz), o Duda (meu primo) não deixa por menos. Sei que o Bacarini e o João Magalhães (colega do jornal) são dois dos imitados pela dupla. Segundo o Duda, para compor o, digamos assim, personagem, a inspiração vem na hora e é uma homenagem ao imitado, que muitas vezes não gosta nada dessa brincadeira.
Classificada formalmente como infantil, feminina adulta ou masculina adulta, a voz humana ganha dos próprios falantes outras qualificações bem curiosas. Nesse sentido, há, por exemplo, a voz de taquara rachada (desagradável ao ouvido, desafinada), a esganiçada (estridente, um pouco como o ganido de um cão), a de veludo (macia), a cavernosa (profunda, como se saísse de uma caverna), o vozeirão (muito grave e forte) e a voz sexy ou sensual, entre tantos outros tipos.
A propósito dessa última classificação, há quem afirme ser a voz elemento importante na conquista amorosa. Será verdade? Na minissérie Hilda Furacão, adaptada por Glória Perez do romance homônimo de Roberto Drummond (saudoso escritor mineiro) e exibida pela Globo em 1998, essa situação é mostrada exemplarmente. Os envolvidos são Emecê (Sérgio Loroza) e Gabriela M. (Tereza Seiblitz). Ele, um radialista, deixa a mocinha do interior fascinada pela beleza de sua voz. Julgando-se apaixonada, ela passa a lhe telefonar. Tudo caminha para um encontro amoroso. Emecê, rapaz tímido e gordo, contrata Aramel, o Belo (Thiago Lacerda) para representá-lo. O desenlace dessa história? É melhor conferir o trabalho da autora.
Deixando de lado a ficção e relativizando a importância da voz nas questões amorosas ou ainda desconsiderando-a, o mesmo não se pode dizer em relação a uma parcela significativa da população que depende diretamente da voz para trabalhar. É muita gente ganhando a vida no gogó. São repórteres, apresentadores de TV, cantores, atores, dubladores, professores, operadores de telemarketing, locutores...
Sem perder tempo, destaco nominalmente três representantes dessa turma aí acima: Paulo Goulart, José Wilker e Luciano do Valle. Além do indiscutível talento profissional que os marcou, eles se destacaram também por uma qualidade comum incomparável: a beleza vocal com a qual encantaram nossos ouvidos. Por triste coincidência, quase ao mesmo tempo, recentemente esse trio de vozes personalíssimas se calou para sempre. Ficamos, assim, sem o brilhantismo do Paulo Goulart e do Wilker na narração de documentários em muitas propagandas institucionais. E sem a competência do Luciano na locução inconfundível de inúmeras transmissões esportivas da tevê. Que pena!
Assim é a vida, com suas vozes que continuam a ecoar por todas as partes. Na fala ou no canto, todas elas são legítimas, mas não se pode negar que as vozes que cantam se tornam especiais. Se afinadas e bonitas, tanto melhor. Fica valendo, porém, o direito de todo mundo a soltar a voz. No banheiro, nos canteiros de obras, nos shows, nos estádios, nos cultos, nas festas...
Nesse embalo todo, não posso perder a oportunidade de parabenizar a Elzi, que trabalha para a Aleluia (minha vizinha), pelas vezes que eu a ouvi cantar de forma tão linda. Muito bom também foi escutar, num desses dias perdidos no calendário, o Camilo “Bananeira” cantando com toda segurança a Ave Maria de Gounod, ao passar bem cedo em frente à minha casa. Outro momento interessante é proporcionado pela dupla Lourenço e Leonel. Em programa da Rádio Inconfidentes, eles comandam animada cantoria ao vivo alegrando nossas manhãs de sábado com vozes de verdade, sem truques ou estrelismos tão comuns hoje.
Sob censura (Final)
16 de Abril de 2014, por Regina Coelho 0
O clima de Copa do Mundo já está literalmente no ar. Das muitas propagandas alusivas ao evento exibidas atualmente pela tevê, algumas belíssimas como a da Sadia, com a criançada que ainda não viu o Brasil campeão pedindo o título, ou outras com o onipresente técnico Felipão, a do cartão Mastercard tem um quê de passado representado pela música que compõe a peça. Com adaptação aos dias de hoje, por exemplo, sem os “noventa milhões em ação” do início da letra, o Pra frente, Brasil, de Miguel Gustavo, que foi o verdadeiro hino que embalou a torcida brasileira na conquista da Copa de 70 no México, aparece com destaque.
Naquele ano, o Brasil vivia tempos da ditadura militar, que soube tirar proveito do tricampeonato ganho em junho. A população era massificada pela propaganda institucional nos meios de comunicação, que ou eram ameaçados pela censura, ou patrocinavam aquele regime de exceção com programas muito bem elaborados como o Amaral Neto, o repórter e os programas de Flávio Cavalcanti, entre outros, com audiência de até dez milhões de telespectadores em horário nobre, número muito expressivo para a época. Marcada por um forte tom de aventura, por imagens impactantes e pela exaltação patriótica e ufanista dos temas abordados, a atração comandada por Amaral Neto teve duração de 15 anos (1968-1983). Sobre Flávio Cavalcanti, apresentador-símbolo da TV nos anos 70, com registro de 70% de audiência e representando um terço do faturamento da TV Tupi, sabe-se que ele ficou conhecido também pela sua ligação com a doutrina política que orientou o regime militar, mesmo tendo tido alguns problemas com o mesmo.
O propósito de enaltecer as maravilhas e a grandeza do país era reforçado por canções de ufanismo como Eu te amo, meu Brasil (com Dom e Ravel) e Este é um país que vai pra frente (com Os incríveis), entre tantas. Slogans ostentados em objetos e em carros não deixavam dúvida sobre o recrudescimento do período. Brasil – ame-o ou deixe-o e Quem não vive para servir ao Brasil não serve para viver no Brasil são dois famosos exemplos disso.
Do outro lado desse cenário de aparências, a situação era bem diferente. Trabalhando sob censura, artistas vinculados à produção musical enfrentavam sérias dificuldades na aprovação de suas músicas. “A cada 12 canções que eu fazia, 7 eram censuradas”, queixa-se hoje o cantor e compositor Odair José, autor da então ousada Pare de tomar a pílula. Segundo os censores, suas músicas iam contra a moral e os bons costumes, preceitos considerados sagrados pelos militares. Um caso curioso foi a censura imposta a Waldick Soriano por Torturas de amor, música barrada provavelmente apenas pelo título, muito bonita por sinal, e que começa assim: hoje que a noite está calma / e que minh’alma esperava por ti / apareceste afinal / torturando este ser que te adora... O problema estava na palavra “torturas”. No caso, nada a ver, ao que parece, com a situação daquele momento político.
Se a mão pesada da censura não poupava nem os compositores do chamado gênero brega, que eram tidos como alienados, o controle sobre os politicamente mais engajados, por certo, era ainda mais rigoroso. Como estratégias de resistência e de protesto, alguns desses artistas se viram obrigados a lançar mão de ambiguidades (duplo sentido nas letras) e de metáforas para a aprovação de seus textos junto aos censores. Em Cálice, composição de Chico Buarque e Gilberto Gil, o próprio título pode ser entendido como “cale-se”, numa referência à falta de liberdade de expressão naqueles sombrios anos. No contexto da letra, o mesmo termo sugere sofrimento em verso inspirado nas palavras de Jesus: “Pai, afasta de mim este cálice”. Na exemplificação do sentido metafórico ou figurativo apreendido de muitas letras, a comovente O bêbado e o equilibrista, de Aldir Blanc e João Bosco, é a síntese perfeita de um país vivendo difíceis anos de autoritarismo.
Em 1968, o III Festival Internacional da Canção entrou para a história da MPB pela tônica de protesto ao regime militar, tanto nas canções como na reação do público. Sabiá, de Tom Jobim e Chico Buarque, venceu o festival, a despeito das vaias da plateia, que preferia Pra não dizer que não falei de flores (ou Caminhando), de Geraldo Vandré, que ficou em segundo lugar. Também intérprete da canção que incitava o povo a reagir e não esperar acontecer (Vem, vamos embora / que esperar não é saber / quem sabe faz a hora / não espera acontecer...), tornando-se um símbolo contra a ditadura, Vandré foi perseguido pelo regime, sendo obrigado a exilar-se.
Sob censura (I)
12 de Marco de 2014, por Regina Coelho 0
Conforme acepção extraída do Dicionário Houaiss de língua portuguesa, entende-se basicamente por censura o “exame a que são submetidos trabalhos de cunho artístico ou informativo, geralmente com base em critérios de caráter moral ou político, para decidir sobre a conveniência de serem ou não liberados para apresentação ou exibição ao público em geral”.
A proximidade do aniversário de 50 anos do Golpe Militar de 31 de março de 1964 no Brasil coloca em pauta o termo em questão para lembrar o período de 21 anos marcado, entre outros aspectos, pelo cerceamento à liberdade de expressão. Nesse sentido, uma severa política de censura imposta a jornais, revistas, livros, peças de teatro, novelas, filmes, músicas e outras formas de expressão artística foi empreendida principalmente no governo Médici (1969 - 1974), período conhecido como os “anos de chumbo” por ser considerado o mais repressivo dos governos militares.
Ressaltando que inicialmente poucos jornais se opuseram ao golpe, havia a censura prévia, que era exercida de duas formas. Ou uma equipe de censores instalava-se permanentemente na redação dos jornais e das revistas para decidir o que poderia ou não ser publicado, ou os veículos de comunicação eram obrigados a enviar antecipadamente o que pretendiam publicar à Divisão de Censura do Departamento de Polícia Federal, em Brasília. Para driblar os censores, a mídia impressa lançava mão de algumas estratégias. “O Estado de S. Paulo”, por exemplo, que em 1964 apoiara o que considerava um movimento militar legítimo, passou a ser censurado mais tarde pela mudança de posição em relação ao mesmo regime. O recurso para tal arbitrariedade foi a denúncia cifrada através da publicação de poemas de Camões e receitas culinárias no lugar das notícias proibidas. Usando humor e irreverência, “O Pasquim”, semanário editado de 26 de junho de 1969 a 11 de novembro de 1991 e reconhecido por seu papel de oposição ao regime militar, marcou época. Em novembro de 1970, a redação inteira do jornal foi presa depois que o hebdomadário (como o semanário se definia) publicou uma sátira do célebre quadro “Independência ou morte”, de Pedro Américo.
Problemas sociais e econômicos também tinham divulgação restrita, de modo a que fosse evitado qualquer estrago à imagem do país. Prova disso foi a censura imposta ao noticiário referente à epidemia de meningite que ocorreu no Brasil em 1974. Para fazer valer ainda mais seus métodos de repressão, o governo se utilizava da pressão econômica retirando dos órgãos de imprensa que o contrariavam a publicidade das empresas estatais. Em 1970, o “Jornal do Brasil” perdeu 15% de sua receita, sendo obrigado a “negociar” com os militares, isto é, a amenizar sua postura crítica em relação ao poder. Nesse embate velado, um personagem e seu bordão determinavam o tom prevalecente na época. Armando Falcão era o homem do “Nada a declarar”, frase que caracterizou sua relação com a imprensa. Como ministro da Justiça do governo Geisel (1974 - 1979), ele se recusava a comentar qualquer assunto considerado confidencial, polêmico ou delicado. De sua criação, a Lei nº 6339, de 1º de julho de 1976, logo batizada de “Lei Falcão”, passou a limitar o acesso dos candidatos ao rádio e à televisão no horário eleitoral, transformando-o numa mera apresentação de breves currículos individuais. A ideia era impedir as críticas ao governo e o consequente avanço da oposição.
Assim como a imprensa, o teatro e a música popular também estiveram na mira da Divisão de Censura. No entanto, por ter se tornado o veículo de comunicação de maior público nas décadas de 1960 e 1970, a televisão, em especial, não pode deixar de ser considerada, particularmente no que se refere às novelas, seu produto mais popular. Submetidos à censura prévia, os capítulos tinham cenas cortadas e trechos alterados, sendo praticamente reescritos pelos censores, o que resultava muitas vezes na adulteração do sentido original que o autor tinha pretendido lhes dar. Sinalizando a radicalização no setor, a primeira versão de “Roque Santeiro”, de Dias Gomes, foi simplesmente proibida em 1975.
A desobediência às regras do governo podia resultar no afastamento ou na demissão de funcionários, o que aconteceu com um superintendente de produção e programação da TV Tupi (hoje extinta), por ter mostrado no ar, durante um capítulo da novela “O Profeta”, de Ivani Ribeiro, a figura de D. Paulo Evaristo Arns, então arcebispo de São Paulo, que militava ativamente na luta pelo respeito aos direitos humanos. A vigilância sobre a programação dos canais de tevê chegou a atingir o irreverente apresentador Chacrinha e suas famosas e rebolativas chacretes. Uma praxe da época abrindo as apresentações na televisão era a exibição de um certificado de censura contendo os dados da empresa de comunicação responsável pelo programa a ser mostrado. O documento vinha rubricado pelos censores de plantão. Entre eles, Solange Hernandes (e sua famosa tesoura), um dos nomes mais emblemáticos da censura no país. Era essa gente que cortava tudo o que julgasse ofensivo ao governo ou contrário à moral e aos bons costumes. Sob a ótica deles, é claro.
Um certo padre entre nós
12 de Fevereiro de 2014, por Regina Coelho 2
Tive o privilégio de ter sido aluna do Padre Nélson durante o Ensino Médio. Estudava no antigo Colégio Nossa Senhora da Penha, no prédio que é a atual sede da prefeitura local. Sendo um dos fundadores do colégio, Padre Nélson acumulou por um tempo as funções de diretor e professor de História e Filosofia do N.S. da Penha. Lembro-me bem de sua figura de muito respeito passando pelos corredores da escola em direção a alguma sala de aula. De longe, já vinha pedindo aos alunos, nos momentos de recreio, “licencinha, licencinha”, evitando qualquer contato físico mais próximo com as pessoas. Dentro da sala, uma primeira providência dele chamava a nossa atenção: ele ia catando os pedaços de giz desprezados por outros professores, para aproveitá-los. Às escondidas, a gente achava graça naquilo, pois às vezes nem era possível ver os toquinhos entre seus dedos ao escrever no quadro. Lição de economia também, provavelmente viemos a aprender isso bem mais tarde. Quanto às aulas propriamente ditas, que conhecimento! Dependendo da necessidade do assunto, nosso professor ia desenhando, à mão livre, mapas representativos de lugares mencionados em suas explicações e que íamos conhecendo através daquele guia tão entusiasmado.
É oportuno considerar que vivíamos tempos de dificuldades com a escassez de fontes de pesquisa, situação essa que fazia muita gente se deslocar até a Casa Paroquial para fazer seus trabalhos escolares. Culto, sábio e muito bem acompanhado de seus preciosos livros, Padre Nélson, por trás de sua bonita mesa de trabalho, tinha gosto em ajudar os que o procuravam. Selecionava o material adequado, pedindo cuidado a quem fosse usá-lo e que não fizéssemos muito barulho no escritório dele.
Mais tarde, fazendo faculdade de Letras, precisei de seus conhecimentos bíblicos. Ao fazer uma análise literária do “Cântico do calvário”, de Fagundes Varela, deparei-me com a expressão “escada de Jacó” (penúltimo verso do poema), que então desconhecia. Assim, achei melhor recorrer ao meu antigo professor para um providencial auxílio. Foi aí que ele citou o Livro do Gênesis e Jacó, que em sonho via uma escada estendida até o céu. Ao descrever em detalhes essa alegoria, meu consultor me forneceu argumentação para entender a tal escada do poeta como a sua esperança de subir ao encontro da vida eterna e juntar-se ao filho precocemente falecido e a quem o texto é dedicado.
Fui também vizinha do personagem central deste artigo. No quintal da mencionada Casa Paroquial, próximo ao muro que ainda hoje cerca a propriedade, havia um imenso abacateiro pendendo muitos de seus galhos para o quintal de minha casa. Aquilo era um convite irrecusável a brincadeiras que começavam com a escalada pela árvore e reuniam alguns de meus irmãos, um ou outro sobrinho do padre e eu. Os mais corajosos conseguiam chegar até “as grimpinhas”, o ponto mais alto do belo pé de abacate. Isso para grande preocupação de meus pais, que temiam pela segurança da criançada e tinham receio de que nosso sempre sossegado vizinho se aborrecesse com aquela “invasão” à sua horta. Mas nunca o ouvimos reclamar de nada. E quando subíamos até a laje da cozinha (as meninas de casa e amigas) para tomar sol, o desespero de meu pai aumentava. Ele não achava certo que, ao chegar à janela de seu quarto, o Padre Nélson visse a gente de biquíni. Aquilo seria um desrespeito nosso, que jamais o vimos daquele ponto da casa.
Nas celebrações religiosas, ele se transformava. Era sério, severo e conservador. Na igreja, homens de um lado e mulheres de outro; nas procissões, casais juntos só se fossem casados. Mulheres usando roupas curtas, decotadas ou sem mangas, nem pensar! No confessionário, como conhecia todo mundo e éramos crianças, perguntava se tínhamos brigado com o irmão A ou com a irmã B. Por conta de nossa ansiedade típica da idade, achávamos demorada a missa que ele celebrava. Quando alguém se atrapalhava com as palavras ao fazer alguma leitura litúrgica, nosso padre dava tapinhas de impaciência na própria cabeça ou tratava logo de corrigir a pessoa.
Assim era ele, na verdade, Monsenhor Nélson, que, depois do almoço, gostava de dar sua volta inteira, como tantos resende-costenses. Para quem não sabe, volta inteira aqui em Resende Costa é passar pela Praça Cônego Cardoso, pelos Quatro Cantos, pela Rua Gonçalves Pinto e contornar a Praça Rosa Penido, chegando ao mesmo lugar. Durante o trajeto, os que estavam sentados nas soleiras das portas, quando ele passava, reverentes, faziam questão de se levantar. Não se tratava de um ato de submissão. Era o reconhecimento de quem via na imagem daquele homem uma natural e incontestável liderança na cidade que o acolheu como filho. Distinguindo-o fisicamente, a inseparável batina não significava apenas a sua condição de sacerdote. Por honrá-la, soube se fazer verdadeiro servo de Deus, não deixando de ser também cidadão comprometido com as causas de Resende Costa.
Receita de Ano Novo
15 de Janeiro de 2014, por Regina Coelho 0
Para você ganhar belíssimo Ano Novo
Cor do arco-íris, ou da cor da sua paz,
Ano Novo sem comparação com o tempo já vivido
(mal vivido talvez ou sem sentido);
Para você ganhar um ano
Não apenas pintado de novo, remendado às carreiras,
Mas novo nas sementinhas do vir-a-ser;
Novo
Até no coração das coisas menos percebidas
(a começar pelo seu interior)
Novo, espontâneo, que de tão perfeito nem se nota
Mas com ele se come, se passeia,
Se ama, se compreende, se trabalha,
Você não precisa beber champanha ou qualquer outra birita,
Não precisa expedir nem receber mensagens
(planta recebe mensagens? Passa telegramas?)
Não precisa
Fazer lista de boas intenções
Para arquivá-las na gaveta.
Não precisa chorar arrependido
Pelas besteiras consumidas
Nem parvamente acreditar
Que por decreto de esperança
A partir de janeiro as coisas mudem
E seja tudo claridade, recompensa,
Justiça entre os homens e as nações,
Liberdade com cheiro e gosto de pão matinal,
Direitos respeitados, começando
Pelo direito augusto de viver.
Para ganhar um Ano Novo
Que mereça este nome,
Você, meu caro, tem de merecê-lo,
Tem de fazê-lo novo, eu sei que não é fácil,
Mas tente, experimente, consciente.
É dentro de você que o Ano Novo
Cochila e espera desde sempre.
Carlos Drummond de Andrade
Breves considerações linguísticas
É, não tem jeito. O modismo pegou até o Barack Obama. O momento captado pelas câmeras aconteceu durante a cerimônia (ou festa?) realizada especialmente para reunir as homenagens de líderes estrangeiros à memória de Nélson Mandela. Posicionado ao lado da primeira-ministra dinamarquesa, Helle Thorning-Schmidt, e de David Cameron, primeiro ministro britânico, o presidente americano e seus colegas eram só sorrisos na produção de uma “selfie”. A imagem, logicamente, foi parar nas redes sociais e ganhou o mundo pela importância das pessoas nela agrupadas e, lógico, pelo inusitado da situação. Naquele ambiente pelo menos formalmente fúnebre, os três pareciam se divertir como adolescentes. Quanto ao termo em destaque, que virou a palavra do ano (de 2013) do “Dicionário Oxford”, ele é a designação da foto feita de si próprio. Como se pode ver, não são somente os anônimos os seduzidos por seus celulares quando, entre outras tantas opções de uso desses aparelhos, fotografam-se. E há um detalhe curioso nisso: muita gente aparece nessas fotos fazendo biquinho ou fazendo careta. Por que razão será?
Um outro modismo se impondo por aí está presente na forma como muitos falantes, dirigindo-se a plateias de homens e mulheres, dizem coisas assim: “Bom dia a todos e a todas!” “Obrigado a todos e a todas!” Gostaria de saber de onde saiu esse primor de linguagem. Isso não é igualdade de gêneros. É redundância. O termo “todos” já abrange todo mundo, todas as pessoas. O “todas” está sobrando.
É oportuno dizer que boas sacadas linguísticas também surgem por toda parte. Uma prova disso pode ser vista aqui mesmo em Resende Costa no nome que o Vinícius do Tinô escolheu para o seu empreendimento. “Bequim da Carne” é ótimo por duas razões. A construção “Bequim” é mineiríssima. É fato que o mineiro, ao falar, “come as sílabas finais das palavras”, não é “mês”, ops, não é mesmo? E mais, logicamente, o endereço do citado estabelecimento comercial é um beco, o popular Beco do Barbosinha (antigo, saudoso e famoso morador do lugar), oficialmente Travessa Matilde Rios.
Outro exemplo interessante de criatividade encontrei em São João del-Rei, perto da atual rodoviária. Onde se lê: “Barbeleireiros” numa placa comercial, a julgar pelo nome, seria um salão de barbeiro, certo? Não só. Uma olhada de fora pelo interior do ponto mostra a prática do negócio: bar, ou melhor, lanchonete de um lado e barbearia de outro lado.
Situações como essas, aqui despretensiosamente comentadas, contribuem para reforçar o sempre lembrado preceito linguístico segundo o qual quem faz a língua são os falantes, não os gramáticos. Cabe a estes a observação e a análise do que é utilizado pelas pessoas como instrumento poderoso de comunicação num dado momento histórico.
Assim, considerada como fenômeno dinâmico, a língua passa por transformações, o que é natural. As alterações podem ocorrer tanto na grafia quanto no sentido de muitas palavras. Além disso, surgem termos novos (os neologismos), enquanto outros vão deixando de ser usados, até desaparecerem. Sobre essa última afirmação, um termo usado por Drummond no belíssimo poema que abre este artigo é um bom exemplo: “telegramas”. Posso garantir que entre os muitos jovens muitos nunca passaram ou receberam um telegrama. Nem sabem o significado dessa palavra, o que não é problema. É a vida que se transforma e transforma nossas ferramentas de comunicação.