Ciladas linguísticas
13 de Marco de 2012, por Regina Coelho 0
“A língua trai. Num piscar de olhos, trocamos letras, confundimos significados, ignoramos flexões, pisamos concordâncias, esnobamos regências. Pior: organizamos as palavras de tal forma que nossas frases transmitem recados diferentes dos que pretendemos. Dá-se, então, o que Mário Quintana explicou: “A gente pensa uma coisa, escreve outra, o leitor entende outra, e a coisa propriamente dita desconfia que não foi dita”.
É o caso da faixa exibida em frente a charmoso salão de beleza unissex. Ansiosa por aumentar a clientela, a proprietária anunciou: “Corto cabelo e pinto”. O resultado foi o contrário do esperado. Os homens sumiram. As mulheres rarearam. O que houve? Concretizaram-se as palavras do poeta gaúcho.
O xis da questão é o “e”. A conjunção liga classes iguais: substantivo + substantivo (Maria e Paulo), adjetivo + adjetivo (bonito e elegante), pronome + pronome (eu e ele), verbo + verbo (trabalho e estudo). Os clientes leram dois substantivos (cabelo + pinto). Já imaginou? Ninguém quis correr riscos. Os senhores protegeram o pênis. As mulheres foram solidárias.
A pobre comerciante se deu conta da cilada. Arrancou a faixa com a mensagem ambígua. No lugar, pendurou esta: Corto e pinto cabelo. Viva! O “e”, agora, liga dois verbos – cortar e pintar”.
Extraído da coluna de Dad Squarisi “Dicas de Português”, que o Estado de Minas publica às quartas-feiras e aos domingos, o texto acima me remete a um aspecto interessante da língua: a oralidade, o que faz valer muitas vezes aquela máxima de que “o que se diz (e o que se escreve também, acrescento eu) é o que se entende”. Decorrem daí incontáveis situações de mal-entendidos com certa dose de humor até.
O escritor mineiro Affonso Romano de Sant’Anna, por exemplo, já teve a oportunidade de repassar a seus leitores o caso de uma fiel que, segundo lhe contaram, rezava assim a ave-maria: “Ave, Maria, cheia de graça. O Senhor é convosco. Benditas suas avós entre as mulheres...” Ele também se lembra de ter caído na mesma armadilha. Isso porque quando era criança, afirma que costumava cantar assim, de maneira convicta, o seguinte trecho do Hino Nacional: “Verás que um filisteu não foge à luta...” Também tenho minha contribuição a dar nesse sentido. Criança como Sant’Anna, ia se aproximando o Natal. E em casa, como preparação para os festejos daquele período, músicas alusivas à data eram tocadas na radiola da família. Numa delas havia um texto que era recitado assim: “Natal é Jesus na cadência dos hinos, orando e pedindo por nossos destinos”. Naquela época, eu teimava, seriamente convencida do que ouvia, em recitá-lo assim: “Natal é Jesus na cabeça dos índios, orando e pedindo bonecos vestidos”.
Já recentemente, estive envolvida num episódio no mínimo curioso. Fui a uma oficina de eletrodomésticos em São João del-Rei levando um liquidificador para o devido conserto. Atendida por um jovem rapaz, fui encaminhada por ele a um outro lugar onde eu deveria ler na placa do endereço indicado a palavra “uálita”. Levei alguns bons segundos para decifrar aquele estranho nome como “Walita”, marca bastante conhecida no mercado (pelo menos para muitos), desde 2004 associada à Philips.
Verdadeira piada virou o trecho da música “Noite do prazer”, de Cláudio Zoli. O trecho original “A madrugada, a vitrola rolando um “blues”, tocando um B. B. King sem parar” foi transformado por semelhança fonética em “trocando de biquíni sem parar”. O nome do cantor e guitarrista americano simplesmente desapareceu na versão popular.
Existe ainda o que é dito com competência a exemplo de calça “jeans”, feira “hippie” e strip-tease, mas esbarra na escrita registrada assim: calça “dins”, feira “ripe” e “estripitismo”, alguns dos muitos casos que observei pessoalmente. É simples entender isso. Ler e escrever são habilidades posteriores à da fala, que ocorre de modo natural e intuitivo. A escrita é resultado de uma aprendizagem explícita e consciente. Em outras palavras, muito do que se fala por aí só é ouvido e repassado como chega aos ouvidos. Daí a ocorrência de manifestações linguísticas orais como levantar “a lepra” (a lebre), cordão “bilicado” (umbilical), certidão “de opa” (de óbito) e tantas outras.
Retomando a discussão sobre a língua, é preciso reconhecer que estamos todos, em maior ou menor escala, sujeitos a seus caprichos. E todo cuidado é pouco, principalmente quando determinados modismos aparecem sob o disfarce de fala chique. A praga do gerundismo é um exemplo disso: “Nós vamos estar passando o problema para vocês”. Cilada! Ninguém merece ouvir esse tipo de construção linguística. Xô, gerundismo!
É o caso da faixa exibida em frente a charmoso salão de beleza unissex. Ansiosa por aumentar a clientela, a proprietária anunciou: “Corto cabelo e pinto”. O resultado foi o contrário do esperado. Os homens sumiram. As mulheres rarearam. O que houve? Concretizaram-se as palavras do poeta gaúcho.
O xis da questão é o “e”. A conjunção liga classes iguais: substantivo + substantivo (Maria e Paulo), adjetivo + adjetivo (bonito e elegante), pronome + pronome (eu e ele), verbo + verbo (trabalho e estudo). Os clientes leram dois substantivos (cabelo + pinto). Já imaginou? Ninguém quis correr riscos. Os senhores protegeram o pênis. As mulheres foram solidárias.
A pobre comerciante se deu conta da cilada. Arrancou a faixa com a mensagem ambígua. No lugar, pendurou esta: Corto e pinto cabelo. Viva! O “e”, agora, liga dois verbos – cortar e pintar”.
Extraído da coluna de Dad Squarisi “Dicas de Português”, que o Estado de Minas publica às quartas-feiras e aos domingos, o texto acima me remete a um aspecto interessante da língua: a oralidade, o que faz valer muitas vezes aquela máxima de que “o que se diz (e o que se escreve também, acrescento eu) é o que se entende”. Decorrem daí incontáveis situações de mal-entendidos com certa dose de humor até.
O escritor mineiro Affonso Romano de Sant’Anna, por exemplo, já teve a oportunidade de repassar a seus leitores o caso de uma fiel que, segundo lhe contaram, rezava assim a ave-maria: “Ave, Maria, cheia de graça. O Senhor é convosco. Benditas suas avós entre as mulheres...” Ele também se lembra de ter caído na mesma armadilha. Isso porque quando era criança, afirma que costumava cantar assim, de maneira convicta, o seguinte trecho do Hino Nacional: “Verás que um filisteu não foge à luta...” Também tenho minha contribuição a dar nesse sentido. Criança como Sant’Anna, ia se aproximando o Natal. E em casa, como preparação para os festejos daquele período, músicas alusivas à data eram tocadas na radiola da família. Numa delas havia um texto que era recitado assim: “Natal é Jesus na cadência dos hinos, orando e pedindo por nossos destinos”. Naquela época, eu teimava, seriamente convencida do que ouvia, em recitá-lo assim: “Natal é Jesus na cabeça dos índios, orando e pedindo bonecos vestidos”.
Já recentemente, estive envolvida num episódio no mínimo curioso. Fui a uma oficina de eletrodomésticos em São João del-Rei levando um liquidificador para o devido conserto. Atendida por um jovem rapaz, fui encaminhada por ele a um outro lugar onde eu deveria ler na placa do endereço indicado a palavra “uálita”. Levei alguns bons segundos para decifrar aquele estranho nome como “Walita”, marca bastante conhecida no mercado (pelo menos para muitos), desde 2004 associada à Philips.
Verdadeira piada virou o trecho da música “Noite do prazer”, de Cláudio Zoli. O trecho original “A madrugada, a vitrola rolando um “blues”, tocando um B. B. King sem parar” foi transformado por semelhança fonética em “trocando de biquíni sem parar”. O nome do cantor e guitarrista americano simplesmente desapareceu na versão popular.
Existe ainda o que é dito com competência a exemplo de calça “jeans”, feira “hippie” e strip-tease, mas esbarra na escrita registrada assim: calça “dins”, feira “ripe” e “estripitismo”, alguns dos muitos casos que observei pessoalmente. É simples entender isso. Ler e escrever são habilidades posteriores à da fala, que ocorre de modo natural e intuitivo. A escrita é resultado de uma aprendizagem explícita e consciente. Em outras palavras, muito do que se fala por aí só é ouvido e repassado como chega aos ouvidos. Daí a ocorrência de manifestações linguísticas orais como levantar “a lepra” (a lebre), cordão “bilicado” (umbilical), certidão “de opa” (de óbito) e tantas outras.
Retomando a discussão sobre a língua, é preciso reconhecer que estamos todos, em maior ou menor escala, sujeitos a seus caprichos. E todo cuidado é pouco, principalmente quando determinados modismos aparecem sob o disfarce de fala chique. A praga do gerundismo é um exemplo disso: “Nós vamos estar passando o problema para vocês”. Cilada! Ninguém merece ouvir esse tipo de construção linguística. Xô, gerundismo!
No rastro da onça
13 de Fevereiro de 2012, por Regina Coelho 0
Desde a Idade da Pedra, o ser humano adora se cobrir com peles de animais exóticos. Felizmente, a Revolução Industrial da virada do século XX fez surgirem estampas felinas pintadas em tecido, sem a necessidade de abate aos animais em questão. Verdade é que as estamparias de zebra, cobra e onça, principalmente, são um clássico da moda. Entra estação, sai estação e elas têm se mantido em alta. No topo dessa preferência quase exclusivamente feminina, a estampa de oncinha é aposta certa nos detalhes das roupas, em peças inteiras, calçados, acessórios (cintos, brincos, broches, lenços, pulseiras, bolsas...) e uma infinidade de outros itens.
Onças pintando nos looks, as “oncinhas” estão por aí colocando as garras de fora. O estilo nada discreto faz lembrar a força e o exotismo das onças de fato e confere às adeptas desse modismo presença física marcante, como acontece com quem o inspira.
Pessoalmente falando, essa não é minha praia, ou melhor, minha selva ou meu estilo. Muito menos tenho ligação alguma com bichos e nunca tive qualquer bichinho de estimação. Respeito-os, mas chego a ter fobia em relação a muitos deles. Paradoxalmente, mantenho, desde criança, uma certa atração no que diz respeito à vida dos grandes animais selvagens, entre eles a onça (o jaguar ou jaguara, que em tupi-guarani significa “o que mata com um salto”).
Histórias envolvendo onças chamam minha atenção. Lembro o saudoso Euclides da Marta, que me contou, certo dia, ter perdido um irmão, segundo ele, “pras bandas do Mato Grosso”, provavelmente devorado por uma pintada. Registro também o relato pessoal de quem, estando no Pantanal mato-grossense, me garante ter visto um belo exemplar desse felino, bom nadador que é, atravessando o rio, atingir a margem dele e sumir, sem dar tempo de um registro fotográfico à altura daquele momento único. Coisas de arrepiar!
Surpreendente é a história da fazendeira Beatriz Rondon, 69. Por trás da máscara de protetora da fauna, ela promovia safáris em sua fazenda recebendo caçadores, a maioria deles estrangeiros, que pagavam 30 mil dólares para matar onças pintadas. Denunciada em 2011 através de um vídeo enviado anonimamente à Polícia Federal, a proprietária da Fazenda Santa Sofia, que fica no município de Aquidauana, no Pantanal do Rio Negro, é vista nas imagens caçando e abatendo duas onças: uma parda e uma pintada.
É espantoso saber que a dona de uma Reserva Particular do Patrimônio Natural (RPPN, como é classificada a “Santa Sofia”, propriedade de 35 mil hectares) era citada como um exemplo de guardiã da fauna, principalmente das onças pintadas. Fico tentada a chamar essa caçadora em pele de ambientalista de “amiga da onça”, que em linguagem figurada significa amiga falsa. Levando essa expressão ao pé da letra, no entanto, concluo que amiga da onça é tudo o que ela não é.
E mencionando essa expressão popular, constato que, linguisticamente, a onça está bem presente no nosso dia a dia. Vejamos: quem ainda não disse que alguém “virou uma onça” em um certo momento? Ou então que determinado sujeito está com um “bafo de onça” daqueles? Ou mesmo que não se deve “cutucar a onça com vara curta”? E quando se sabe que é “hora da onça beber água”? Assim dizendo: “hora da onça beber água”, e não, como determina a norma culta “hora de a onça beber água”. É fato que hoje já não se fala em “leite de onça”, bebida preparada com cachaça e leite condensado, mas muitos lançam mão do “tempo do onça” quando se referem a uma época distante. É interessante ainda observar como muita gente não se dá conta de que carrega no bolso ou na bolsa, através da estampa que ilustra as atuais notas de 50 reais, a personagem desta matéria.
Habitando o imaginário dos inúmeros contadores de histórias ou vivendo em florestas e em ambientes abertos como o Pantanal e o Cerrado, a onça é o maior predador das Américas, não existindo, portanto, outro animal acima dele na cadeia alimentar. Apesar do porte avantajado, é ágil e arisca. Mergulha, salta, corre, sobe em árvores e tem os sentidos muito aguçados. Não mia como a maioria dos felinos, emitindo uma série de roncos muito fortes que são chamados de esturros. Quando caça aves, porém, sabe imitar o seu pio para atraí-las. É capaz ainda de seguir a sua vítima por horas, sem ser notada. Quanta esperteza!
Pesquisando sobre o tema aqui tratado, observei que há uma boa bibliografia a utilizar. Destaco o livro “Jaguar: o rei das Américas”, do ecólogo Evaristo Eduardo de Miranda e da jornalista Liana John (Editora Metalivros). A obra se divide em duas partes e reúne aspectos históricos, ecológicos, mitos e significados culturais relacionados a esse animal, com foco voltado para a urgência na preservação da espécie, já reduzida à metade.
Poder (não por acaso, “Jaguar” é marca de carro que sugere velocidade e potência) e beleza (porte e pelagem admiráveis) são atributos das onças e talvez expliquem o fascínio que elas podem exercer sobre os humanos.
Onças pintando nos looks, as “oncinhas” estão por aí colocando as garras de fora. O estilo nada discreto faz lembrar a força e o exotismo das onças de fato e confere às adeptas desse modismo presença física marcante, como acontece com quem o inspira.
Pessoalmente falando, essa não é minha praia, ou melhor, minha selva ou meu estilo. Muito menos tenho ligação alguma com bichos e nunca tive qualquer bichinho de estimação. Respeito-os, mas chego a ter fobia em relação a muitos deles. Paradoxalmente, mantenho, desde criança, uma certa atração no que diz respeito à vida dos grandes animais selvagens, entre eles a onça (o jaguar ou jaguara, que em tupi-guarani significa “o que mata com um salto”).
Histórias envolvendo onças chamam minha atenção. Lembro o saudoso Euclides da Marta, que me contou, certo dia, ter perdido um irmão, segundo ele, “pras bandas do Mato Grosso”, provavelmente devorado por uma pintada. Registro também o relato pessoal de quem, estando no Pantanal mato-grossense, me garante ter visto um belo exemplar desse felino, bom nadador que é, atravessando o rio, atingir a margem dele e sumir, sem dar tempo de um registro fotográfico à altura daquele momento único. Coisas de arrepiar!
Surpreendente é a história da fazendeira Beatriz Rondon, 69. Por trás da máscara de protetora da fauna, ela promovia safáris em sua fazenda recebendo caçadores, a maioria deles estrangeiros, que pagavam 30 mil dólares para matar onças pintadas. Denunciada em 2011 através de um vídeo enviado anonimamente à Polícia Federal, a proprietária da Fazenda Santa Sofia, que fica no município de Aquidauana, no Pantanal do Rio Negro, é vista nas imagens caçando e abatendo duas onças: uma parda e uma pintada.
É espantoso saber que a dona de uma Reserva Particular do Patrimônio Natural (RPPN, como é classificada a “Santa Sofia”, propriedade de 35 mil hectares) era citada como um exemplo de guardiã da fauna, principalmente das onças pintadas. Fico tentada a chamar essa caçadora em pele de ambientalista de “amiga da onça”, que em linguagem figurada significa amiga falsa. Levando essa expressão ao pé da letra, no entanto, concluo que amiga da onça é tudo o que ela não é.
E mencionando essa expressão popular, constato que, linguisticamente, a onça está bem presente no nosso dia a dia. Vejamos: quem ainda não disse que alguém “virou uma onça” em um certo momento? Ou então que determinado sujeito está com um “bafo de onça” daqueles? Ou mesmo que não se deve “cutucar a onça com vara curta”? E quando se sabe que é “hora da onça beber água”? Assim dizendo: “hora da onça beber água”, e não, como determina a norma culta “hora de a onça beber água”. É fato que hoje já não se fala em “leite de onça”, bebida preparada com cachaça e leite condensado, mas muitos lançam mão do “tempo do onça” quando se referem a uma época distante. É interessante ainda observar como muita gente não se dá conta de que carrega no bolso ou na bolsa, através da estampa que ilustra as atuais notas de 50 reais, a personagem desta matéria.
Habitando o imaginário dos inúmeros contadores de histórias ou vivendo em florestas e em ambientes abertos como o Pantanal e o Cerrado, a onça é o maior predador das Américas, não existindo, portanto, outro animal acima dele na cadeia alimentar. Apesar do porte avantajado, é ágil e arisca. Mergulha, salta, corre, sobe em árvores e tem os sentidos muito aguçados. Não mia como a maioria dos felinos, emitindo uma série de roncos muito fortes que são chamados de esturros. Quando caça aves, porém, sabe imitar o seu pio para atraí-las. É capaz ainda de seguir a sua vítima por horas, sem ser notada. Quanta esperteza!
Pesquisando sobre o tema aqui tratado, observei que há uma boa bibliografia a utilizar. Destaco o livro “Jaguar: o rei das Américas”, do ecólogo Evaristo Eduardo de Miranda e da jornalista Liana John (Editora Metalivros). A obra se divide em duas partes e reúne aspectos históricos, ecológicos, mitos e significados culturais relacionados a esse animal, com foco voltado para a urgência na preservação da espécie, já reduzida à metade.
Poder (não por acaso, “Jaguar” é marca de carro que sugere velocidade e potência) e beleza (porte e pelagem admiráveis) são atributos das onças e talvez expliquem o fascínio que elas podem exercer sobre os humanos.
Você é qual?
10 de Janeiro de 2012, por Regina Coelho 0
Em novembro do ano passado, foi realizado o Encontro Nacional de Gêmeos no Espaço Unibanco de Cinema (centro de São Paulo). Organizado pelo Sindicato dos Gêmeos e tendo como mote o adequadíssimo dito popular “cara de um, focinho do outro”, o evento recebeu o que os promotores chamam de GPS – gêmeos, parentes e simpatizantes.
Não participei do encontro paulista, até porque não tenho irmã gêmea, mas tenho toda simpatia por iniciativas dessa natureza. Em se tratando da reunião dos gêmeos, não pude deixar de lembrar as várias duplas de alunos que tive nessa condição. Havia aquelas que, por serem constituídas de irmã e irmão ou de irmãos fraternos ou bivitelinos (diferentes entre si) não chamavam tanto a atenção das pessoas na escola. A situação se complicava, pelo menos para mim, quando encontrava pela frente gêmeos idênticos. Por mais que os coitados ou os colegas mais familiarizados com eles tentassem me mostrar alguma mínima diferença entre um(a) e outro(a), na hora de me dirigir a eles nunca sabia com quem estava falando. Acho que alguns deles se divertiam com isso. Outros, provavelmente, deviam se irritar com trocas indevidas de nomes ou eventuais xingamentos. E acho ainda que havia os que, às vezes, por uma razão ou outra, se passavam pelos seus respectivos clones e disso se aproveitavam. Como desmascará-los?
Lembranças escolares à parte, o fato é que os gêmeos univitelinos destacam-se na multidão. Quando são famosos como Paulo (cinco minutos mais velho) e Chico Caruso, talentosos chargistas e caricaturistas, isso é um mero detalhe ou inclinação familiar, como queiram. O mesmo se pode dizer dos jovens profissionais da gastronomia já citados pelo meu colega Cacau (Cláudio Ruas) na edição 101 deste jornal – Fernando e Juliano Basile. E Giselle Bündchen, quem diria!, tem uma irmã gêmea. Patrícia é a versão anônima da irmã. Outra dupla interessante é formada por Bia e Branca Feres, atletas do nado sincronizado para o qual a semelhança física é fundamental. Igualdade ou quase isso então, melhor ainda.
Entre meus ex-alunos gêmeos, busquei a colaboração de Luciana e Luciene Cardoso, 36, respectivamente, professora e pequena empresária, para o depoimento abaixo.
“Somos gêmeas univitelinas (geradas na mesma placenta) Ciene nasceu primeiro. Eram 6h30 da manhã do dia 31 de outubro de 1975. E após 15 minutos, nasceu Ciana. Nossa mãe não sabia que eram duas meninas!!! E o parto foi feito por nossa avó paterna e uma parteira na Boa Vista, zona rural de Resende Costa.
Crescemos e aprendemos juntas muitas coisas boas e ruins da vida. Temos uma pessoa com quem podemos contar a qualquer hora e em qualquer momento da vida. Compreendemos uma à outra e temos uma relação de amizade, confiança e respeito.
Temos como desvantagens as comparações: comparação física (Quem é a mais gorda? Quem é mais bonita? Quem é mais alta? Fica pertinho uma da outra pra gente ver as diferenças?! Isso é muito chato!!!); comparação de personalidade (Qual é a Rute e qual é a Raquel? Ou seja, quem é boa e quem é ruim? Quem é mais séria?); comparação intelectual (Quem é mais inteligente?)
Na verdade, somos pessoas muito parecidas, porém diferentes. Cada uma tem o seu jeito de ser. Mas, há momentos em que isso acontece: quando trocamos roupas, em fotos, em vídeos e então temos a sensação estranha de nos vermos uma na outra.
Quando éramos crianças, nossos pais nos confundiam muito. Lembramos que uma vez nossa mãe deu umas palmadas na Luciana achando que era na Luciene; nosso pai também deu umas chineladas na “pobre” da Luciana achando que era a Luciene.
Quando éramos adolescentes nos interessávamos pelos mesmos rapazes. Resultado: uma se fez passar pela outra para roubar uns beijinhos do namorado da outra!!! Uma vez pedi a Ciana para terminar com um namoradinho que eu não queria mais. Ela fingiu ser Eu, mas o menino tentou beijá-la e no mesmo instante ela gritou: __ Cieneeee!!! Vem aqui???? O fulano está te chamando!!!
Outra situação foi quando eu, Ciana, entrei na faculdade e a Ciene havia terminado seu curso. As amigas dela acharam que eu era ela. Vieram correndo me abraçar e dar as boas vindas. E eu, que não as conhecia, fiquei sem saber o que fazer: se abraçava ou falava que eu não era a Ciene e sim a Ciana. “Foi muito engraçado!!!” Na realidade, somos sempre confundidas tanto por adultos como por crianças e acabamos passando por situações engraçadas e às vezes constrangedoras.
A ligação entre nós é mesmo muito especial. É muito maior que a ligação entre os outros irmãos e até mesmo entre a nossa mãe. A nossa relação é tão intensa e tão bonita que não conseguimos ficar longe uma da outra por muito tempo. Temos que nos falar todos os dias nem que seja por telefone. Sentimos falta uma da outra. Tudo o que sentimos e vivemos é compartilhado, somos cúmplices. Enfim, é uma ligação de amor, afeto, carinho, compreensão, dedicação, amizade e respeito”.
Nota: por absoluta afinidade, minhas entrevistadas optaram por produzir um só texto.
Não participei do encontro paulista, até porque não tenho irmã gêmea, mas tenho toda simpatia por iniciativas dessa natureza. Em se tratando da reunião dos gêmeos, não pude deixar de lembrar as várias duplas de alunos que tive nessa condição. Havia aquelas que, por serem constituídas de irmã e irmão ou de irmãos fraternos ou bivitelinos (diferentes entre si) não chamavam tanto a atenção das pessoas na escola. A situação se complicava, pelo menos para mim, quando encontrava pela frente gêmeos idênticos. Por mais que os coitados ou os colegas mais familiarizados com eles tentassem me mostrar alguma mínima diferença entre um(a) e outro(a), na hora de me dirigir a eles nunca sabia com quem estava falando. Acho que alguns deles se divertiam com isso. Outros, provavelmente, deviam se irritar com trocas indevidas de nomes ou eventuais xingamentos. E acho ainda que havia os que, às vezes, por uma razão ou outra, se passavam pelos seus respectivos clones e disso se aproveitavam. Como desmascará-los?
Lembranças escolares à parte, o fato é que os gêmeos univitelinos destacam-se na multidão. Quando são famosos como Paulo (cinco minutos mais velho) e Chico Caruso, talentosos chargistas e caricaturistas, isso é um mero detalhe ou inclinação familiar, como queiram. O mesmo se pode dizer dos jovens profissionais da gastronomia já citados pelo meu colega Cacau (Cláudio Ruas) na edição 101 deste jornal – Fernando e Juliano Basile. E Giselle Bündchen, quem diria!, tem uma irmã gêmea. Patrícia é a versão anônima da irmã. Outra dupla interessante é formada por Bia e Branca Feres, atletas do nado sincronizado para o qual a semelhança física é fundamental. Igualdade ou quase isso então, melhor ainda.
Entre meus ex-alunos gêmeos, busquei a colaboração de Luciana e Luciene Cardoso, 36, respectivamente, professora e pequena empresária, para o depoimento abaixo.
“Somos gêmeas univitelinas (geradas na mesma placenta) Ciene nasceu primeiro. Eram 6h30 da manhã do dia 31 de outubro de 1975. E após 15 minutos, nasceu Ciana. Nossa mãe não sabia que eram duas meninas!!! E o parto foi feito por nossa avó paterna e uma parteira na Boa Vista, zona rural de Resende Costa.
Crescemos e aprendemos juntas muitas coisas boas e ruins da vida. Temos uma pessoa com quem podemos contar a qualquer hora e em qualquer momento da vida. Compreendemos uma à outra e temos uma relação de amizade, confiança e respeito.
Temos como desvantagens as comparações: comparação física (Quem é a mais gorda? Quem é mais bonita? Quem é mais alta? Fica pertinho uma da outra pra gente ver as diferenças?! Isso é muito chato!!!); comparação de personalidade (Qual é a Rute e qual é a Raquel? Ou seja, quem é boa e quem é ruim? Quem é mais séria?); comparação intelectual (Quem é mais inteligente?)
Na verdade, somos pessoas muito parecidas, porém diferentes. Cada uma tem o seu jeito de ser. Mas, há momentos em que isso acontece: quando trocamos roupas, em fotos, em vídeos e então temos a sensação estranha de nos vermos uma na outra.
Quando éramos crianças, nossos pais nos confundiam muito. Lembramos que uma vez nossa mãe deu umas palmadas na Luciana achando que era na Luciene; nosso pai também deu umas chineladas na “pobre” da Luciana achando que era a Luciene.
Quando éramos adolescentes nos interessávamos pelos mesmos rapazes. Resultado: uma se fez passar pela outra para roubar uns beijinhos do namorado da outra!!! Uma vez pedi a Ciana para terminar com um namoradinho que eu não queria mais. Ela fingiu ser Eu, mas o menino tentou beijá-la e no mesmo instante ela gritou: __ Cieneeee!!! Vem aqui???? O fulano está te chamando!!!
Outra situação foi quando eu, Ciana, entrei na faculdade e a Ciene havia terminado seu curso. As amigas dela acharam que eu era ela. Vieram correndo me abraçar e dar as boas vindas. E eu, que não as conhecia, fiquei sem saber o que fazer: se abraçava ou falava que eu não era a Ciene e sim a Ciana. “Foi muito engraçado!!!” Na realidade, somos sempre confundidas tanto por adultos como por crianças e acabamos passando por situações engraçadas e às vezes constrangedoras.
A ligação entre nós é mesmo muito especial. É muito maior que a ligação entre os outros irmãos e até mesmo entre a nossa mãe. A nossa relação é tão intensa e tão bonita que não conseguimos ficar longe uma da outra por muito tempo. Temos que nos falar todos os dias nem que seja por telefone. Sentimos falta uma da outra. Tudo o que sentimos e vivemos é compartilhado, somos cúmplices. Enfim, é uma ligação de amor, afeto, carinho, compreensão, dedicação, amizade e respeito”.
Nota: por absoluta afinidade, minhas entrevistadas optaram por produzir um só texto.
Vivendo entre flores
13 de Dezembro de 2011, por Regina Coelho 0
Minha mãe adora flores, especialmente as rosas e as hortênsias. Considerando todas as espécies, afirma preferir apreciá-las em seus respectivos pés a vê-las espalhadas pela casa e com isso arrancadas ou apanhadas de onde nascem. Ainda assim não deixa de se alegrar quando alguém a presenteia com esses mimos. Sabedoras desse seu gosto, pessoas conhecidas ou mesmo os de casa acertam em cheio quando lhe enviam uma rosa. Além da alegria pelo presente em si, para ela isso é sinal de que aquela novena (sempre há uma em andamento) vai resultar na graça alcançada. Da turma que lhe manda exemplares variados da rainha das flores destaca-se dona Guaída do Joãozinho Jacaré.
Fui encontrá-la em sua casa, que identifiquei de imediato pela presença abundante de plantas logo na entrada. Acertei com ela uma conversa para a produção da presente matéria, não sem antes dar uma volta pelo quintal com o objetivo de ser apresentada às suas flores. Ganhei de sua zelosa cuidadora uma rosa vermelha. Aliás, esse singelo gesto se repete em relação a “toda amiga” que a visita.
Conforme o combinado entre nós, reencontrei-me com dona Guaída. Prosa vai, prosa vem, ela me contou que tem 76 anos, é “devotíssima” de Santo Expedito e São Judas Tadeu e aprendeu a rezar o terço da Imaculada Conceição com a avó, aos 4 anos. Doméstica, já trabalhou como lavadeira, também juntando lenha para vender e apanhando café em serviços contratados pelo Dr. Válter Bacarini e pelo Raul da dona Dalva.
Desde criança, dona Guaída já gostava de folhagens, mas uma cena presenciada por ela há quase 30 anos lhe valeu uma decisão. Era dia de Finados. Aconteceu que a Maria Melo havia levado até à porta do cemitério, aqui mesmo em Resende Costa, uma Kombi repleta de flores para vender. Tendo perdido mãe e pai pouco tempo antes daquele dia, dona Guaída encontrava-se naquela fase em que, segundo ela, as pessoas nessa situação buscam um pouco de conforto levando flores aos seus falecidos entes queridos. Como não tinha dinheiro para comprar as que eram oferecidas no carro, decidiu que a partir de então iria ela mesma cultivar suas plantas. Hoje, a condição de aposentada lhe permite a compra de uma muda para cada pagamento. Indo a São João del-Rei, é a mesma coisa. Quando poda suas roseiras, vai replantando-as. São umas 70 atualmente, cada uma com um tom único. “É igual noiva, não tem rosa feia”, afirma ela, poetando. E acrescenta: “Sou do signo de gêmeos, tudo meu tem que ser dois – duas roseiras iguais, duas folhagens também – só não quis dois maridos”.
E dessa forma simples e descontraída ela vai tocando a vida. Isso significa acordar bem cedinho e toda manhã olhar os pés de rosas, ver se eles estão com formigas ou mandruvás e regá-los quando é calor. Seus cuidados incluem ainda jogar esterco de gado neles e entulho, que as rosas adoram. E devem agradecer, suponho eu, pois são belas. Uma única vez elas correram risco de ficar sem os cuidados de dona Guaída, que gosta de conversar com suas plantas. Ela perdeu um filho e desencantou-se de tudo, mas, mesmo sofrendo, voltou para as roseiras, que “as coitadas não tinham culpa de nada”. Melhor assim para todos, inclusive para os santos da igreja quando são agraciados por flores cultivadas com tanta dedicação. Melhor também para nós. Em tempos de tanta brutalidade, é preciso fazer com que simples e necessárias ações de delicadeza se imponham e façam prevalecer o que temos de bom.
Em tempos também de Natal, fui buscar na figura risonha de dona Guaída a síntese dos mais nobres sentimentos experimentados pelo ser humano. Lembrando-lhe a proximidade do período natalino, ela me revelou que monta o seu presépio no cantinho da sala, no chão, com papel de embrulho tingido de tinta preta. Houve uma vez em que usou papel azul para simbolizar a água descendo da gruta. E não devem faltar suas plantas enfeitando tão representativo cenário.
“Depois dos meus filhos e amigos, elas são a minha vida”, responde sobre o que as flores representam para ela, Margarida Maria de Alacoque, uma flor de pessoa no nome e na alma.
Não posso deixar de agradecer à Tintinha da Dalila a ótima sugestão para que escrevesse sobre plantas. Isso depois de me garantir ter tido o privilégio de ver o momento exato de uma flor se abrindo. Como se pode ver, ela, dona Guaída, minha mãe e um mundo de gente formam uma parcela significativa da população que se curva embevecida à existência de uma flor.
Finalizando, recorro às palavras primorosas de Dom Hélder Câmara que assinalam também o último “Contemplando” deste ano. Até 2012!
“O importante não é viver muito ou viver pouco, mas realizar na vida o plano para o qual Deus nos criou. As rosas, a rigor, vivem um dia. Mas vivem plenamente porque realizam o destino de graça e beleza que vêm trazer à terra”.
Fui encontrá-la em sua casa, que identifiquei de imediato pela presença abundante de plantas logo na entrada. Acertei com ela uma conversa para a produção da presente matéria, não sem antes dar uma volta pelo quintal com o objetivo de ser apresentada às suas flores. Ganhei de sua zelosa cuidadora uma rosa vermelha. Aliás, esse singelo gesto se repete em relação a “toda amiga” que a visita.
Conforme o combinado entre nós, reencontrei-me com dona Guaída. Prosa vai, prosa vem, ela me contou que tem 76 anos, é “devotíssima” de Santo Expedito e São Judas Tadeu e aprendeu a rezar o terço da Imaculada Conceição com a avó, aos 4 anos. Doméstica, já trabalhou como lavadeira, também juntando lenha para vender e apanhando café em serviços contratados pelo Dr. Válter Bacarini e pelo Raul da dona Dalva.
Desde criança, dona Guaída já gostava de folhagens, mas uma cena presenciada por ela há quase 30 anos lhe valeu uma decisão. Era dia de Finados. Aconteceu que a Maria Melo havia levado até à porta do cemitério, aqui mesmo em Resende Costa, uma Kombi repleta de flores para vender. Tendo perdido mãe e pai pouco tempo antes daquele dia, dona Guaída encontrava-se naquela fase em que, segundo ela, as pessoas nessa situação buscam um pouco de conforto levando flores aos seus falecidos entes queridos. Como não tinha dinheiro para comprar as que eram oferecidas no carro, decidiu que a partir de então iria ela mesma cultivar suas plantas. Hoje, a condição de aposentada lhe permite a compra de uma muda para cada pagamento. Indo a São João del-Rei, é a mesma coisa. Quando poda suas roseiras, vai replantando-as. São umas 70 atualmente, cada uma com um tom único. “É igual noiva, não tem rosa feia”, afirma ela, poetando. E acrescenta: “Sou do signo de gêmeos, tudo meu tem que ser dois – duas roseiras iguais, duas folhagens também – só não quis dois maridos”.
E dessa forma simples e descontraída ela vai tocando a vida. Isso significa acordar bem cedinho e toda manhã olhar os pés de rosas, ver se eles estão com formigas ou mandruvás e regá-los quando é calor. Seus cuidados incluem ainda jogar esterco de gado neles e entulho, que as rosas adoram. E devem agradecer, suponho eu, pois são belas. Uma única vez elas correram risco de ficar sem os cuidados de dona Guaída, que gosta de conversar com suas plantas. Ela perdeu um filho e desencantou-se de tudo, mas, mesmo sofrendo, voltou para as roseiras, que “as coitadas não tinham culpa de nada”. Melhor assim para todos, inclusive para os santos da igreja quando são agraciados por flores cultivadas com tanta dedicação. Melhor também para nós. Em tempos de tanta brutalidade, é preciso fazer com que simples e necessárias ações de delicadeza se imponham e façam prevalecer o que temos de bom.
Em tempos também de Natal, fui buscar na figura risonha de dona Guaída a síntese dos mais nobres sentimentos experimentados pelo ser humano. Lembrando-lhe a proximidade do período natalino, ela me revelou que monta o seu presépio no cantinho da sala, no chão, com papel de embrulho tingido de tinta preta. Houve uma vez em que usou papel azul para simbolizar a água descendo da gruta. E não devem faltar suas plantas enfeitando tão representativo cenário.
“Depois dos meus filhos e amigos, elas são a minha vida”, responde sobre o que as flores representam para ela, Margarida Maria de Alacoque, uma flor de pessoa no nome e na alma.
Não posso deixar de agradecer à Tintinha da Dalila a ótima sugestão para que escrevesse sobre plantas. Isso depois de me garantir ter tido o privilégio de ver o momento exato de uma flor se abrindo. Como se pode ver, ela, dona Guaída, minha mãe e um mundo de gente formam uma parcela significativa da população que se curva embevecida à existência de uma flor.
Finalizando, recorro às palavras primorosas de Dom Hélder Câmara que assinalam também o último “Contemplando” deste ano. Até 2012!
“O importante não é viver muito ou viver pouco, mas realizar na vida o plano para o qual Deus nos criou. As rosas, a rigor, vivem um dia. Mas vivem plenamente porque realizam o destino de graça e beleza que vêm trazer à terra”.
A palavra escrita
11 de Novembro de 2011, por Regina Coelho 0
Considerando a escrita tradicional por meio do lápis ou caneta (principalmente) e a folha de papel, as pessoas estão escrevendo menos. O ato de escrever vem sendo superado pelo uso do computador, mas ainda há quem se mantenha fiel ao hábito de fazer suas anotações usando letra bem pessoal, muitas vezes inconfundível. E mais, há aqueles que se preocupam com a estética da letra, a chamada caligrafia, termo que, em sentido etimológico, significa letra bonita.
É evidente que a beleza dos traços da escrita chama a atenção de muita gente e pode render até emprego ou trabalho, como queiram, para os que se tornam calígrafos profissionais. Mas simplesmente ser possuidor de uma bela caligrafia (sem pleonasmo, já que o termo “caligrafia” pode significar somente letra) não é garantia de nada. Isso quer dizer que, intelectualmente falando, ninguém é superior ou inferior pelo desenho das letras que produz. Sigmund Freud, por exemplo, o pai da psicanálise, não se preocupava com a estética de seus manuscritos e foi um dos homens mais inteligentes que o mundo já viu. Da mesma forma, os chamados garranchos não podem refletir um nível avançado de inteligência.
Vista como uma característica individual, a letra passa a ser um problema quando é ilegível. Sabe-se que aqueles que não se fazem entender por palavras comprometem consideravelmente sua capacidade de comunicação. Em se tratando da palavra escrita, a situação só piora. O que vem prescrito em certas receitas médicas é quase indecifrável. O mesmo acontece em muitas provas e redações escolares. E o que não pode ser lido não é comunicado ou é comunicado de maneira indevida. E aí...
Estou me lembrando agora de um texto de Fernando Sabino, o “Macacos me mordam”, no qual um cientista de uma cidade do interior de Minas se vê às voltas com uma macacada que lhe fora enviada indevidamente. Como precisava fazer algumas inoculações em macaco, animal difícil de ser encontrado onde morava, recorreu aos préstimos de um colega residente em Manaus mandando-lhe o seguinte telegrama: “Obséquio providenciar 1 ou 2 macacos.”. Aconteceu que, em razão de um erro do telegrafista ao trocar “1 ou 2 macacos” por “1002 macacos”, o cientista mineiro acabou em apuros em razão da chegada de encomenda tão numerosa e saltitante.
Ficcionismo à parte, todas essas considerações me vieram à propósito de uma decisão tomada nos Estados Unidos relacionada à palavra escrita. Por deliberação do governo do estado de Indiana, as escolas ficam desobrigadas de ensinar a escrita cursiva (aquela em que as letras são emendadas umas nas outras), com a recomendação de que passem a se dedicar mais à digitação em teclados de computador. O mesmo deverá acontecer em outros estados americanos.
Em entrevista à VEJA, Mark Warschauer, professor da Universidade da Califórnia, afirma que “ter destreza no computador tornou-se um bem infinitamente mais valioso do que produzir uma boa letra”. E é verdade, mas pesquisas recentes na área da neurociência comprovam que a escrita de próprio punho provoca uma atividade significativamente mais intensa do que a da digitação na região dedicada ao processamento das informações armazenadas na memória, o que tem conexão direta com a elaboração e a expressão de ideias. É o que afirma matéria da citada revista. Segundo a mesma fonte, está provado também que o ato de escrever desencadeia ligações entre os neurônios na parte do cérebro que reconhece visualmente as palavras, o que contribui para a fluidez da leitura.
É impensável negar o valor e a força da tecnologia, aqui representada pelo computador, entre tantas funções, a de sucessor natural da máquina de datilografia. Não há também como deixar de reconhecer que tudo muda. Do registro escrito em pedra, pergaminho, papiro ou papel aos fantásticos computadores de mão, a história da humanidade é contada essencialmente graças à preservação da palavra escrita através dos tempos.
Entre todas as maneiras com que se constitui a escrita, destaca-se aquela que se constrói com traços únicos formando a nossa letra. E com todas as letras, é preciso dizer que, assim como o nome que assinamos, ela nos confere personalidade própria. E mais. Por trás das palavras que vamos desenhando no papel, levamos a expressão do pensamento e do sentimento aos próximos e distantes de nós no tempo e no espaço, com a identidade peculiar do que é escrito à mão.
É evidente que a beleza dos traços da escrita chama a atenção de muita gente e pode render até emprego ou trabalho, como queiram, para os que se tornam calígrafos profissionais. Mas simplesmente ser possuidor de uma bela caligrafia (sem pleonasmo, já que o termo “caligrafia” pode significar somente letra) não é garantia de nada. Isso quer dizer que, intelectualmente falando, ninguém é superior ou inferior pelo desenho das letras que produz. Sigmund Freud, por exemplo, o pai da psicanálise, não se preocupava com a estética de seus manuscritos e foi um dos homens mais inteligentes que o mundo já viu. Da mesma forma, os chamados garranchos não podem refletir um nível avançado de inteligência.
Vista como uma característica individual, a letra passa a ser um problema quando é ilegível. Sabe-se que aqueles que não se fazem entender por palavras comprometem consideravelmente sua capacidade de comunicação. Em se tratando da palavra escrita, a situação só piora. O que vem prescrito em certas receitas médicas é quase indecifrável. O mesmo acontece em muitas provas e redações escolares. E o que não pode ser lido não é comunicado ou é comunicado de maneira indevida. E aí...
Estou me lembrando agora de um texto de Fernando Sabino, o “Macacos me mordam”, no qual um cientista de uma cidade do interior de Minas se vê às voltas com uma macacada que lhe fora enviada indevidamente. Como precisava fazer algumas inoculações em macaco, animal difícil de ser encontrado onde morava, recorreu aos préstimos de um colega residente em Manaus mandando-lhe o seguinte telegrama: “Obséquio providenciar 1 ou 2 macacos.”. Aconteceu que, em razão de um erro do telegrafista ao trocar “1 ou 2 macacos” por “1002 macacos”, o cientista mineiro acabou em apuros em razão da chegada de encomenda tão numerosa e saltitante.
Ficcionismo à parte, todas essas considerações me vieram à propósito de uma decisão tomada nos Estados Unidos relacionada à palavra escrita. Por deliberação do governo do estado de Indiana, as escolas ficam desobrigadas de ensinar a escrita cursiva (aquela em que as letras são emendadas umas nas outras), com a recomendação de que passem a se dedicar mais à digitação em teclados de computador. O mesmo deverá acontecer em outros estados americanos.
Em entrevista à VEJA, Mark Warschauer, professor da Universidade da Califórnia, afirma que “ter destreza no computador tornou-se um bem infinitamente mais valioso do que produzir uma boa letra”. E é verdade, mas pesquisas recentes na área da neurociência comprovam que a escrita de próprio punho provoca uma atividade significativamente mais intensa do que a da digitação na região dedicada ao processamento das informações armazenadas na memória, o que tem conexão direta com a elaboração e a expressão de ideias. É o que afirma matéria da citada revista. Segundo a mesma fonte, está provado também que o ato de escrever desencadeia ligações entre os neurônios na parte do cérebro que reconhece visualmente as palavras, o que contribui para a fluidez da leitura.
É impensável negar o valor e a força da tecnologia, aqui representada pelo computador, entre tantas funções, a de sucessor natural da máquina de datilografia. Não há também como deixar de reconhecer que tudo muda. Do registro escrito em pedra, pergaminho, papiro ou papel aos fantásticos computadores de mão, a história da humanidade é contada essencialmente graças à preservação da palavra escrita através dos tempos.
Entre todas as maneiras com que se constitui a escrita, destaca-se aquela que se constrói com traços únicos formando a nossa letra. E com todas as letras, é preciso dizer que, assim como o nome que assinamos, ela nos confere personalidade própria. E mais. Por trás das palavras que vamos desenhando no papel, levamos a expressão do pensamento e do sentimento aos próximos e distantes de nós no tempo e no espaço, com a identidade peculiar do que é escrito à mão.