Contemplando as Palavras

A mentira

08 de Maio de 2011, por Regina Coelho 0

Segundo a Wikipédia, há muitas explicações para o 1º de abril ter se transformado no “dia das mentiras” ou “dia dos bobos”. Uma delas diz que a brincadeira em que se transformou essa data surgiu na França. Desde o começo do século 16, o Ano Novo era festejado no dia 25 de março, data que marcava a chegada da primavera na Europa. As festas duravam uma semana e terminavam em 1º de abril.

Em 1564, porém, depois da adoção do calendário gregoriano, o rei Carlos IX determinou que o Ano Novo seria comemorado em 1º de janeiro. Alguns franceses resistiram à mudança e continuaram a seguir o calendário antigo. Gozadores passaram então a ridicularizá-los, a enviar presentes esquisitos para os resistentes ou convidá-los para festas que não existiam.

No Brasil, o 1º de abril começou a ser difundido com a circulação do periódico “A Mentira”, que teve vida efêmera e foi lançado em 1º de abril de 1848, com a notícia do falecimento de Dom Pedro, desmentida no dia seguinte. O jornal saiu pela última vez em 14 de setembro de 1849, convocando todos os credores para um acerto de contas no dia... 1º de abril de 1850, dando como referência um local inexistente.

Assim, de brincadeira em brincadeira, a tradição de pregar peças ou, nos termos de hoje, preparar pegadinhas aos mais distraídos, a data do dia da mentira se mantém ao longo dos anos. Entre tantas famosas, merece destaque uma em especial. O canal de televisão BBC apresentou em 1957 em seu programa “Panorama” uma reportagem falsa sobre árvores de espaguete. Acreditem ou não, mas consta que muitas pessoas interessaram-se em plantar esse tipo de árvore em suas propriedades.

E tome história mentirosa, quando o assunto envolve aqueles conhecidíssimos casos de pescadores. Dizem, por exemplo, que jamais se deve perguntar o tamanho e o peso de um peixe a quem o pescou, pois corre-se o risco de ouvir um relato mentiroso e muito divertido. Essas pessoas, viajantes por natureza, são famosas por produzir histórias incríveis, isso porque as pescarias geram fatos inesperados e inusitados que costumam alimentar a imaginação do narrador.

Na ficção literária, a questão da mentira é personificada através de Pinóquio, personagem criada pelo italiano Carlo Collodi em 1883 no romance “As aventuras de Pinóquio” e mais tarde levada às telas do cinema por Walt Disney. A história do boneco de madeira é exemplar. À medida que amadurece, ele vê o próprio nariz crescer com as mentiras e as orelhas tomarem o formato das de um burro depois que bebe e fuma, agora já chegando à adolescência. Mais didático que isso, impossível.

Na política, a mentira é uma prática comum. Há quem diga que os políticos mentem porque não conseguiriam ser eleitos dizendo somente a verdade, mostrando-se como são realmente. Alçados ao poder, quebram promessas, desculpam-se com novas mentiras e são até reeleitos. Há exceções, é claro, mas poucas.

Em se tratando de tema tão vasto como o tratado na presente coluna, inúmeras considerações não caberiam aqui agora. Apenas com o propósito de espairecer o espírito, fui buscar uma relação de frases tidas como mentirosas, e em algum momento, na ponta da língua de muita gente. Confiram: Pode deixar que eu te ligo. Quinta-feira sem falta o seu carro vai estar pronto. Pague a minha parte, que depois eu acerto com você. Eu só bebo socialmente. Estou te vendendo isso a preço de custo. Você está cada vez mais jovem. Estou sem troco, leve um chiclete. Não vou contar pra ninguém.

E há ainda aquelas frases bem típicas relacionadas a:

advogado: esse processo é rápido.
ambulante: qualquer coisa, volta aqui que a gente troca.
anfitrião: já vai? Ainda é cedo!
aniversariante: presente? Sua presença é o mais importante.
bêbado: sei perfeitamente o que estou dizendo.
corretor de imóveis: em seis meses, colocarão água, luz e telefone.
dentista: não vai doer nada.
desiludida: não quero mais saber de homem.
devedor: amanhã, sem falta!
encanador: é muita pressão que vem da rua.
gerente de banco: trabalhamos com as taxas mais baixas do mercado.
inimigo do morto: era um bom sujeito.
mecânico: é o carburador (ou a correia dentada).
muambeiro: tem garantia de fábrica.
orador: apenas duas palavras.
otimista: os últimos serão os primeiros.
peixeiro: pode levar freguesa, está fresquinho.
político: eu sempre trabalhei pelos pobres.
vagabundo: há três anos que procuro trabalho, mas não acho nada.
vendedor de sapato: depois alarga no pé.

Finalizando, é preciso dizer o que os especialistas do comportamento humano afirmariam ser uma verdade: é difícil admitir, mas todo mundo mente, alguns compulsivamente, outros eventualmente, por necessidades variadas, muitos por puro descaramento. Estou mentindo?

Escrevo-lhe esta carta...

14 de Marco de 2011, por Regina Coelho 0

Elas já foram a única maneira de alguém entrar em contato com quem estava longe. Levavam declarações de amor, desabafos, amenidades do cotidiano, revelações bombásticas, reflexões sobre a vida ou simplesmente notícias. Cumprindo seu fundamental objetivo de meio de comunicação, as cartas reinaram absolutas por muito tempo. E a distribuição da correspondência era sinônimo de festa em qualquer lugarejo do Brasil-Império. É fácil entender o porquê: as mensagens, transportadas em malas de couro, acomodadas sobre o lombo de burros, demoravam cerca de três meses para alcançar seu destino.

De lá para cá, muita coisa mudou: os malotes de cartas e afins não tardam tanto a chegar aos destinatários, mas perderam espaço para a comunicação via telefone – tanto o fixo quanto o celular – e a internet. Tanto isso é verdade que as correspondências trocadas exclusivamente entre pessoas físicas representam apenas 5% do volume movimentado diariamente pelos Correios em Minas, por exemplo. O percentual, apesar de baixo, corresponde a 175 mil envelopes transportados pela empresa, que, no ano passado, comemorou uma data especial: os 280 anos da primeira linha postal no Estado, criada em 29 de outubro de 1730.

Saindo um pouco do âmbito particular da troca de correspondência, é oportuno lembrar que as cartas estão presentes em pelo menos dois importantes capítulos da história brasileira. Em 1500, Pero Vaz de Caminha, escrivão da frota de Cabral, escreveu uma longa e detalhada mensagem ao então Rei de Portugal, dom Manuel, informando-o sobre a recém “descoberta” (o termo é controverso) da Ilha de Vera Cruz (antigo nome do país).

Uma outra carta mudou o destino do país em sete de setembro de 1822. Às margens do Rio Ipiranga, em São Paulo, o mensageiro Paulo Bregaro (patrono dos carteiros) entregou a dom Pedro I uma correspondência assinada pela esposa do monarca, a imperatriz Maria Leopoldina, alertando-o sobre o interesse de Portugal em repatriá-lo e rebaixar o Brasil à categoria de colônia. A consequência disso foi o famoso brado de “Independência ou morte”.

Sem o caráter histórico das modalidades acima, mas igualmente necessárias, as cartas de amor são um destaque à parte. Urgentes, quase sempre melosas e muitas vezes perfumadas, elas embalaram muito namoro por aí. Segundo o poeta Álvaro de Campos, um dos heterônimos de Fernando Pessoa, “todas as cartas de amor são ridículas”. E continua ele: “não seriam cartas de amor se não fossem ridículas”. Mas diante de tanto arrebatamento amoroso, ninguém se incomoda com isso. Hoje, para compensar as distâncias às vezes entre continentes, outras vezes, bem curtas, os apaixonados do momento preferem trocar mensagens tecnológicas por computador e telefone móvel. Se são de amor, devem continuar ridículas, mas e daí?

É impossível não mencionar as tão temidas e, na maioria das vezes, covardes cartas anônimas. Da mesma forma, não dá para deixar de mencionar as cartas que muitos suicidas escrevem com o peso e o desespero de uma atitude extrema. Carlos Drummond já se referiu a elas em seu poema “Mãos dadas”: “...não distribuirei entorpecentes ou cartas de suicida, (...)”

A trajetória política brasileira registra a carta-testamento do presidente Getúlio Vargas, que se suicidou em 24 de agosto de 1954, saindo da vida para entrar na história, como ele mesmo escrevera em trecho final de seu derradeiro texto: “Agora vos ofereço a minha morte. Nada receio. Serenamente dou o primeiro passo no caminho da eternidade e saio da vida para entrar na história” (Rio de Janeiro, 23 de agosto de 1954 – Getúlio Vargas).

Bem mais amenas eram as trocas de cartas entre amigos e familiares. O prazer ou a necessidade de escrever nascia já na escolha das ferramentas para tal – o bloco especial de papel para cartas, a caneta, o envelope, o selo, até o momento de colocá-la no correio ou enviá-la por um portador de confiança (neste último caso, sem fechá-la com cola, constando na frente do envelope as iniciais P.E.F., indicativas de Por Especial Favor de quem levava aquela mensagem). Depois, era esperar a resposta, ler o que o outro havia escrito. Aquela sensação gostosa de abrir o envelope com cuidado para preservar o seu conteúdo!

Uma prática muito comum no meio literário brasileiro do século passado era a troca de correspondência entre os autores, material que rendeu a publicação póstuma em forma de muitos livros interessantes. Para os tempos frenéticos e cibernéticos de hoje pode parecer estranho saber, por exemplo, que de 1924 a 1945 Mário de Andrade e Drummond trocaram cartas, ocorrendo o mesmo entre Clarice Lispector e Fernando Sabino entre 1946 a 1969.

É preciso lembrar, finalmente, que muitas letras de músicas fazem alusão a esse agora antigo expediente de comunicação. Escolhi os versos iniciais de Mensagem, música cantada por Isaurinha Garcia, como registro de uma outra época e homenagem ao “seu” Zé Mendonça, saudoso portador de inúmeras cartas ansiosamente aguardadas por resende-costenses que assim se comunicavam com os de fora da cidade.

“Quando o carteiro chegou e o meu nome gritou com uma carta na mão...”

Da cozinha lá de casa

14 de Fevereiro de 2011, por Regina Coelho 0

Muita gente deve ter visto veiculada em nossa mídia a bela peça publicitária da Nestlé a propósito dos seus 90 anos no Brasil. Na telinha, as imagens mostradas são mesmo um show de beleza. A escolha de “Emoções”, como trilha sonora, uma das músicas mais marcantes de Roberto Carlos, não poderia ser mais feliz. No embalo da voz do Rei, artista símbolo do país, emoção brasileira é, de fato, o que não falta ao comercial, entremeado de cenas do cotidiano e importantes momentos históricos ligados ao Brasil. Ponto para o reconhecido talento da propaganda brasileira! Ponto para a Nestlé!

Paralelamente às comemorações nacionais, Minas Gerais recebe um conjunto de ações desenvolvido pela empresa suíça com exclusividade para os mineiros. Com o tema “A cozinha está no coração dos mineiros e é na cozinha que a gente se encontra”, a campanha em curso faz uma verdadeira homenagem à cultura de Minas.

Tamanha consideração ao nosso estado se deve, provavelmente, ao fato de Minas Gerais ser um dos principais polos de captação de leite para a Nestlé no Brasil. Sabe-se também que a região está entre as maiores exportadoras de café para a empresa no mundo. E mais, ela opera no solo mineiro com cinco fábricas instaladas em Ibiá, Ituiutaba, Montes Claros (onde é fabricado o tradicionalíssimo Leite Moça), Teófilo Otoni e São Lourenço.

“A conversa ainda não chegou na cozinha” diz a sabedoria popular, mas é lá que eu quero chegar. A história já comprovou a importância desse local da casa no dia a dia das pessoas, dos mineiros, principalmente. Nesse lugar de cores quentes, de temperos, de cheiros e sabores acontecem as prosas e as reuniões de família em torno do fogão e da culinária. Ah, as velhas cozinhas de Minas, com seus fogões de lenha, cascas de laranja secas penduradas para acender o fogo, bule de café sobre a chapa, lenha crepitando no fogo, o cheiro da fumaça, rostos vermelhos. Colheres de pau, xícaras esmaltadas, coador de pano, panelas de pedra (e de ferro) e a garantia de uma refeição pra lá de gostosa. Do lado de fora da casa, sobre o telhado, a imponente chaminé soltando fumaça, sinal de vida, de lida com o fogão de lenha.

Segundo o escritor Rubem Alves (tinha que ser mineiro), “quando a gente revela qual é o lugar mais importante da casa, a gente revela também o lugar preferido da alma”. E continua “nas Minas Gerais onde nasci o lugar mais importante era a cozinha. Não era o mais chique e nem o mais arrumado. Lugar chique e arrumado era a sala de visitas, com bibelôs, retratos ovais nas paredes, espelhos e tapetes no chão. Na sala de visitas as crianças se comportavam bem (...). Na cozinha era diferente: a gente era a gente mesmo, fogo, fome e alegria”.

São belas e verdadeiras as palavras do nosso mineiro de Boa Esperança. Cozinha é intimidade, lugar onde a gente recebe só os mais amigos, a família se confraterniza e a conversa costuma não ter hora para acabar. Dispensável dizer que tudo isso acontece ao redor da mesa de jantar, seja ela farta ou modesta, quase sempre o ponto onde convergem os mais variados assuntos. Quase porque às vezes a prosa acontece em volta do próprio fogão.

Até um tempo atrás, a cozinha era separada das outras partes da casa, onde era comum existir também a despensa, um cômodo anexo que abrigava o sortimento a ser usado nas refeições. Atualmente, a integração da cozinha com a sala de jantar ou mesmo de estar é uma tendência. A gastronomia ganha cada vez mais status entre os apreciadores da boa mesa. E eis que surgem os espaços gourmet, ou melhor, são assim batizadas as cozinhas de hoje. Quanta mudança! Forno para fazer pizza, micro ondas, churrasqueira, fogão de lenha (tem que ser bonito), coifa, cooktop (novidade no setor de fogões), cafeteira, panelas e facas elétricas. E uma infinidade de utensílios feitos de cobre, de inox e até de silicone. Isso tudo e muito mais a serviço dos que praticam a arte culinária por obrigação pessoal ou profissional e (por que não?) por diversão.

Seja lá como for, tradicional ou moderna, simples ou sofisticada, fato é que “a cozinha está no coração dos mineiros e é na cozinha que a gente se encontra”. Aliás, ela é o próprio coração da casa. A propósito, não é sem razão que afirmamos ser um amigo muito próximo de nós da cozinha lá de casa.

Mulheres ao volante (3) - Final

10 de Janeiro de 2011, por Regina Coelho 0

Conversando um dia com seu tio Né (o saudoso Né do Chico Daniel), Maria da Penha Pinto, hoje professora aposentada, 69 anos, pediu a ele que lhe comprasse um carro. O que para ela pareceu ser uma simples brincadeira foi levado a sério pelo Né. Tanto é que, no dia seguinte, precisando ir a São João Del Rei, ele viu um veículo que lhe caiu no agrado, reservando-o para a sobrinha. “Eu entrei na dele, arrumei um empréstimo e comprei o carro”, afirma Maria da Penha.

O carro em questão era um Volkswagen 57, de cor branca. Mas faltava o principal, que era “botar a mão na massa”, ou melhor, no volante, para finalmente aprender a dirigir. Penha revela que, naquele tempo, ela não sabia nem quantos pedais havia num carro, muito menos que havia o câmbio, alavanca responsável por ditar as marchas. Vieram então as primeiras instruções dadas logicamente pelo Né e também pelo primo Amadeu e sucedidas por bastante treinamento. Em setembro de 1977 e cumpridas as exigências de praxe, Maria da Penha se tornou motorista oficialmente habilitada, completando, portanto, em 2010 33 anos de habilitação. “Fui a primeira mulher resende-costense, residente aqui, habilitada...Na época havia outras, mas não residiam em Resende Costa”, assegura ela com natural e indisfarçável satisfação.

Mas, entre tantas viagens pela nossa região, houve uma que lhe trouxe um certo aborrecimento. Maria da Penha conta que um dia, ao contornar o praça da Matriz da Piedade, em Barbacena, foi surpreendida por uma motorista que subia uma rua através da qual se chegava até a praça. A tal mulher acabou batendo na traseira do carro dirigido pela Penha, quebrando o farol traseiro da direita. Segundo ela, o susto foi grande, pois, além de tudo, no banco de trás estava uma criança, que naturalmente, chorou muito por tudo aquilo.

Momento ruim à parte, nossa conversa agora se volta para as lembranças curiosas ligadas às reações das pessoas quando viam aquela principiante e já cautelosa motorista dirigindo seu carro pela cidade. Enquanto algumas se espantavam com a cena e diziam simplesmente “que coragem!”, outras afirmavam num misto de pessimismo ou mesmo de uma certa inveja (como saber?) que ela não conseguiria tirar a carteira por não ter coragem para tal. Reação bonita vinha dos que ficavam felizes vendo a Penha ao volante: “Que chique! Nossa professora tem carro”. Tinham razão os alunos daquela professora de matemática. Não tanto pelo carro, mas é mesmo chique a gente ter a coragem de enfrentar desafios.

Outra forma (quase obrigatória até) de entender a ligação pioneira das mulheres de Resende Costa com o carro é conhecer um pouco da história de Maria das Graças Vieira Mendes, a popular Gracinha do Zé Padeiro. 62 anos, comerciante ambulante aposentada, ela conta que na família todos os homens, exceto o pai, eram motoristas. Vendo os irmãos dirigindo, principalmente o Nonô e o Paulo, foi aprendendo com eles. Antes dos 18 anos, já dirigia os carros que o “seu” Zé Padeiro comprava.

Tanta naturalidade em sair simplesmente dirigindo deve explicar o entusiasmo pela aquisição do primeiro veículo, um modelo Vemaguete marrom que Gracinha, ainda sem carteira, comprou de um rapaz de Barbacena. Mais tarde, o DKW Vemag (nome oficial da perua) foi substituído por uma Rural comprada do Zé Manganga. A condição de motorista precoce, no entanto, não lhe valeu de imediato a obtenção da carteira de habilitação, que foi tirada em 1980. Segundo ela, o exame de rua foi realizado em Barbacena, “num caminhão Detroit” pertencente à Serveng Civilsan, empresa dos irmãos Penidos (de Resende Costa) e responsável pelas obras do nosso asfalto (entroncamento da BR 383, batizado oficialmente Rodovia Alfredo Penido). Naquela época, a pessoa candidata a uma carteira levava o carro no qual o teste de rua era feito. Como Gracinha era fornecedora de frangos para a Serveng e administrava a cozinha da firma, conseguiu que o Karimata, um engenheiro da firma, emprestasse a ela o tal caminhão. E por mera curiosidade, só para situar melhor os leitores mais jovens ou mais esquecidos: o acampamento da companhia funcionava em área alugada pelo João do Cornélio, onde é hoje a casa do Carlinhos do Ivan.

Sem qualquer história pessoal para contar sobre eventuais acidentes ao dirigir e revelando que, além de carro, dirigia moto e andava a cavalo pra todo lado, Gracinha (“um monumento de Resende Costa” nas palavras de César da farmácia) afirma que “ninguém nunca falou nada” sobre tais ousadias. Ela sabe, porém, que indiretamente muitos a chamavam de meio louca ou mulher macho. E acha graça disso a Gracinha, detentora orgulhosa de carteira de motorista categoria D. Louca ela? Só se for pelas boas aventuras da vida, uma marca dessa verdadeira profissional do volante. Pela valentia, uma mulher-macho sim, senhor.

Mulheres ao volante (2)

14 de Dezembro de 2010, por Regina Coelho 0

- Bobagem a senhora dirigir – era essa a reação mais comum das pessoas quando se encontravam com Dalva Maria de Resende. Muitos que assim falavam tinham visto Dona Dalva dirigindo sua Rural ou simplesmente ficaram sabendo daquele feito. Tudo começou exatamente em 1966, quando ela comprou seu primeiro veículo, a já citada Rural, que, “tirada de primeira mão” em uma agência de Barbacena, foi seu único carro ao longo de incontáveis anos, circulando pelas ruas da cidade, pelas cidades próximas e trazendo sua corajosa dona da Fazenda do Val, onde morava com o marido, o Zé Resende. Na verdade, Dona Dalva precisava do carro para vir à missa, mas ele lhe valeu muito também para carregar doentes, mulheres que vinham ter filho na cidade e mesmo trabalhadores que se acidentavam ou eram picados por cobra.

Um fato curioso, ao mesmo tempo compreensível para aqueles anos, é que essa motorista de tantos préstimos para muita gente, principalmente numa época em que os carros não eram tão comuns como agora, não tirou sua carteira de habilitação. Ela até começou a fazer o curso de legislação ou a “estudar a sinalização”, como prefere dizer, mas “encravou” no exame de vista. Adoeceu e ficou descrente de ir até o fim naqueles testes todos. E como reforço à sua convicção de que aquele documento não lhe seria tão necessário, ouviu de uma pessoa ligada àquele ambiente de exames que ficasse tranquila, pois mulher e padre nunca eram parados nas operações de fiscalização. Mesmo assim, por precaução, quando viajava para longe, Dona Dalva levava um motorista habilitado para garantir a tranquilidade da viagem. Entre eles, lembra os que lhe deram as instruções sobre como dirigir: o Zé do Alípio, um filho do Zé do Nico cujo nome esqueceu e o Cici do Joaquim Batista.

Quando indagada a respeito de algum possível acidente que pudesse ter sofrido ao volante, a provável mais antiga motorista de Resende Costa recorda-se de um passeio a Ritápolis, na companhia do Padre Antenor (seu irmão). Já na volta, por um vacilo seu, o carro saiu da estrada, bateu numa pedra e arrebentou o radiador. Nada mais grave, só que eles tiveram de voltar em outro carro.

Hoje, aos 79 anos, aposentada, Dona Dalva não dirige mais, por isso a bonita Rural Willys azul com tração nas quatro rodas, companheira fiel de inúmeras jornadas, foi vendida. Saudades daqueles tempos? Pode ser, mas acima de tudo orgulho de quem até “trocava roda” (pneu) e nunca ficou parada na estrada.

Quem também guarda uma boa história para contar é Elzi Lara Santos, 73 anos, aposentada, que afirma ter se tornado proprietária de um Volks branco por puro acaso, já que não sabia nada de carros e nem tinha interesse por isso. O responsável pela mudança foi o Toninho da Dona Zizina, quando sugeriu que ela comprasse um carro e ele mesmo o trouxe para Resende Costa.

Final da década de 70. Era o tempo da Pensão da Elzi. E chegou o dia de encarar o desafio de dirigir pela primeira vez. Elzi estava acompanhada de sua filha (a Mara) e do Bita do João de Paiva, que simplesmente lhe passou o carro. O resultado não foi dos melhores. Depois, a Maria Helena da Dona Zizina lhe deu algumas boas explicações e também o Ercílio da Anita do Lado.

Na pensão, o pessoal se divertia com as histórias dos insucessos que aquela aprendiz de motorista contava. Foi aí que o Clóvis, hóspede da casa e mecânico que prestava serviços à Serveng Civilsan, em razão das obras do asfalto, então em andamento, recomendou-lhe o seguinte:

- Não conte suas mancadas para ninguém, todo mundo comete as suas.

Recomendação aceita, aulas já menos desastrosas e ensinamentos finais com o Élcio Maia e a tão merecida carteira de motorista foi tirada em 1980. Na condição de habilitada, Elzi passou a dirigir sozinha e sem deixar de observar como as pessoas ficavam admiradas com aquela situação. Verdade seja dita! Algumas piadinhas machistas ela também ouvia. Conhecem aquela manjadíssima? “Mulher ao volante,...” Pois é!

Faltava, porém, ir a São João del-Rei dirigindo, um teste quase obrigatório para quem mora em Resende Costa, tira carteira e quer dirigir na estrada. Estava tudo planejado. A ideia inicial era chegar até a rodoviária velha e chamar o Jair Chaves, ali perto, para levar o carro ao centro. Um bêbado inoportuno e insistente impediu que a Elzi deixasse a filha pequena e com a perna engessada sozinha no carro, ainda que por alguns minutos. O jeito foi enfrentar o trânsito até o hospital para que a Mara se livrasse daquela “bota” incômoda. Da segunda ida a São João, mais adrenalina. Um rapaz bateu no carro dela e ainda se achou no direito de lhe dizer besteiras. “Muito homem acha que a gente por ser mulher vai ter medo deles”, afirma Elzi, que lembra ainda que, naquele dia, contou com a ajuda do Luizinho Chaves e do Almênio (que tinha sido coletor estadual em Resende Costa), que presenciaram aquela cena. O moço criador de caso? Ah, rápido, rápido mudou a afinação do seu discurso.

- Ando devagar, finaliza nossa tranquila motorista, com a certeza dada pelos muitos anos rodados por aí de que mais importantes mesmo são o cuidado com a vida e a volta segura para casa.