Contemplando as Palavras

Do direito de sonhar ao dever de desconfiar

14 de Janeiro de 2010, por Regina Coelho 0

Toda virada de ano faz surgir uma infinidade de rituais e simpatias. Certas de que só serão felizes no ano novo (na verdade, logo, logo nada novo) se adotarem determinados procedimentos no dia 31 de dezembro, muitas pessoas preferem não arriscar a felicidade e fazem coisas no mínimo curiosas.

Segundo a crença popular, as simpatias devem ser feitas para afastar maus fluidos, para a pessoa ter dinheiro o ano inteiro, ter paz, tranquilidade e prosperidade, para atrair ou manter um amor, para o amor voltar, para ter sorte no amor, ter felicidade, enfim.

E vocês, caros leitores, como resolveram encarar o 1º de janeiro de 2010? Andei pesquisando e fiquei sabendo de muita gente que não perde a oportunidade de receber o ano que começa cercando-se de alguns cuidados. Entre eles, usar branco e deixar a casa bem iluminada com luzes e velas para receber com muita luz o novo ano. Ou subir em um degrau de uma escada ou em uma cadeira, com o pé direito, assim que dá meia-noite, para subir na vida. Ou ainda, caso a comemoração seja na praia, a dica é entrar no mar e pular sete ondas fazendo sete pedidos, um para cada onda.

A lista do que fazer ou não no último dia do ano é longa. Estamos em janeiro. Falar disso agora já era. Independentemente de acreditar nessas coisas ou de achar tudo isso uma bobagem, o mais importante é cultivar bons pensamentos e sentimentos, manter a fé e apostar no que a gente quer. Isso deve valer para todos os dias.

Saindo do âmbito restrito das simpatias típicas do final de ano e considerando também as outras (para curar bronquite, fazer criança andar ou falar, emagrecer...), chega-se facilmente aos inúmeros golpes aplicados por toda parte. Segundo especialistas, cresce muito nesta época do ano a incidência de casos envolvendo pessoas passadas para trás, ou seja, ludibriadas pelos espertinhos de plantão. Em comum entre as duas práticas, há apenas a boa fé de quem espera ter sorte para se dar bem. No entanto, se as simpatias se mostram inofensivas (a maioria, ao que parece, segundo a sabedoria do povo, quando não funciona também não prejudica ninguém), o mesmo não se pode dizer das inúmeras modalidades de golpes rondando os cidadãos, ainda que estejam em casa, supostamente a salvo dos golpistas, mas atacados via internet ou telefone.

Fazer a vítima acreditar, por exemplo, que ganhou um prêmio é golpe manjadíssimo, mesmo assim há quem nele caia. O “sortudo” precisa apenas fazer uma doação para ajudar uma criança doente e poder receber seu merecido carro ou moto. Simples assim. Em matéria recente, o Jornal Hoje (TV Globo) transcreveu parte de um desses telefonemas fajutos. Observem: “Um quilo de alimento não perecível. Agora o senhor vai ter três opção para fazer um depósito de um valor de R$300,00, ou num valor de R$400,00, ou num valor de R$600,00. O senhor vai opcionar para fazer uma criança feliz, que sofre síndrome de dálmata”.

Sorteios sem sentido e erros de português à parte, há muitas armadilhas ardilosamente preparadas por aí à espera dos incautos, dos desprevenidos e mesmo dos gananciosos. É isso mesmo, porque muitas vezes quem se ilude com planos e promessas mirabolantes de ganho fácil espera obter vantagens extraordinárias, o que pode tirar da pessoa a condição exclusiva de vítima.

Há aquele ditado que diz que “todo dia um bobo sai de casa”. Há também um outro que afirma coisa semelhante: “é preciso que haja bobos para os ativos viverem”. Ativos, no mau sentido da palavra, já que os que são ativos na boa acepção do termo sabem que as coisas boas não batem à porta de ninguém. Elas são conquistadas, jamais oferecidas como um negócio de ocasião. Como sempre, vale a velha máxima: “quando a esmola é muita, até o santo desconfia”.



PARA REFLETIR

AUSÊNCIA


Por muito tempo achei que a ausência é falta
E lastimava, ignorante, a falta.
Hoje não a lastimo.
Não há falta na ausência.

A ausência é um estar em mim.
E sinto-a branca, tão pegada, aconchegada nos meus braços,
Que rio e danço e invento exclamações alegres,
Porque a ausência assimilada,
Ninguém a rouba mais de mim.

(Carlos Drummond de Andrade) .

Mais uma reta final

13 de Dezembro de 2009, por Regina Coelho 0

Simplesmente não dá para deixar de perceber e de viver o clima de fim de ano, de todo fim de ano, diga-se de passagem. Espalhado por toda parte, ele contagia a maioria das pessoas, que precisam mostrar fôlego para cumprir uma verdadeira maratona de atividades típicas dessa época. Nas escolas, o aperto é geral. Aqueles alunos que conseguiram garantir seus valiosos pontos ao longo do ano letivo respiram aliviados, antecipadamente vitoriosos. Outros buscam desesperadamente alcançar o mínimo exigido para aprovação. Nessa hora, contas e mais contas são feitas, refeitas e qualquer pontinho que vier é abençoado. Haja promessa também! E arrependimento pela malandragem escolar de quase todo mundo que se vê nessa situação. E o que dizer dos meus colegas professores “atolados até o pescoço” de tanto serviço? Essa parte prefiro esquecer. E os vestibulandos? Chega a ser desumana a carga de estudos a que muitos deles são submetidos. Mas também é muita pressão sobre os coitados.

Além dos limites escolares, encontra-se em curso uma corrida desenfreada e generalizada em busca mesmo do quê? Bom, as festas de confraternização não podem faltar, com elas, a quase sempre presença do amigo-oculto ou secreto, quase sempre nem tão amigo assim. Vá lá, seja tudo pelo espírito de Natal. E por falar nisso, é preciso comprar os presentes (ou lembrancinhas, como queiram). E a ceia natalina? Mais compras à vista. Olhe aí uma possível ambiguidade. Refiro-me a outros gastos iminentes, não ao acerto de contas. É que o impulso de comprar pode ser irresistível levando o consumidor a empurrar o pagamento em “suaves parcelas” para o ano seguinte.

É tempo também de formaturas. E tome mais correria! Lojas cheias, compras, grande agitação pelas ruas, encontros de despedida, preparativos de viagem com a turma da escola... Ufa! Que canseira! Acabou? Claro que não! E o réveillon, você vai passar onde? Quando é que você vai para a praia? Ah, chega! Fico por aqui.



Turma da Vaquinha

Não foi possível incluir na matéria da edição 79 do JL a colaboração do Rafael (filho da Terezinha e do Zé do Socorro) sobre a sua turma, a da Vaquinha. Faço isso agora.

No início deste século, como todo resende-costense que gosta de participar de uma turma, um grupo de amigos que se encontrava todo dia na “avenida” para tomar umas cervejas ou mesmo para aprontar qualquer peripécia que resultasse em boas risadas resolveu criar uma turma de Carnaval, dessas com camisa própria e com um nome divertido. Mas qual seria? Como já era cantado pelos amigos o grito de Carnaval “picisa, num picisa, é do leitinho, é da vaquinha...”, ficou então a Turma da Vaquinha.

A concentração do grupo acontecia na lanchonete do Alessandro (Totó, Lagartão). Depois que ela fechou, o QG se transferiu para o Theatro (bar nos Quatro-cantos), que também fechou as portas. O destino seguinte foi o Bar da Maura (na “avenida”), mas, com a mudança de lugar deste, o bar do Bruxo (o Ricardo da Clarita) passou a acolher o pessoal. Só que, adivinhem! Esse ponto também fechou. Parecia maldição. Agora a turma se encontra com mais frequência no bar do Toru (o Danilo) e em outros como os do Fumega, da Maura e do Didi.

Hoje a Turma da Vaquinha tem aproximadamente 30 integrantes, que se reúnem para organizar eventos como o Pingaril (futebol no Carnaval) e o Vaks Fest, este já na quarta edição. Idas a outras cidades para exposições, festivais e encontros também ocorrem. E mesmo quando não há nenhum evento, a turma não deixa de se reunir, pois cada integrante no mês de seu aniversário tem que doar para o grupo uma caixa de cerveja, o que ajuda a garantir mais uma festa, um churrasco... “picisa, num picisa, é do leitinho, é da vaquinha...”



Nota Final

Agradeço, sensibilizada, ao padre Josué as palavras elogiosas a respeito do artigo de setembro próximo passado (“Ouviram do Ipiranga...”). Faço o mesmo em relação a Sildes (do Bacana), que tem levado nosso jornal para a escola onde trabalha, na vizinha Lagoa Dourada. É muito bom chegar às pessoas pela palavra, melhor ainda é saber que nosso trabalho pode ser útil a alguém. Espero continuar sendo merecedora da atenção e do carinho de todos vocês e dos demais leitores deste cantinho do JL.

Vá procurar a sua turma!

14 de Novembro de 2009, por Regina Coelho 0

O Carnaval e a Exposição Agropecuária, dois dos maiores eventos do calendário festivo da cidade, vêm apresentando de uns tempos para cá uma nova característica comum, ou seja, a formação de turmas organizadas, o que provoca uma saudável disputa em busca da maior animação possível. Chamadas de blocos no período carnavalesco, as inúmeras turmas que são vistas, principalmente na já famosa semana que antecede a folia oficial, capricham nas fantasias, nos nomes com que se “batizam” (“As Atrevidinhas”, “Turma da Vaquinha”, “As Inigualáveis”...). Ocorrem até mesmo coreografias e encenações mostradas em conjunto para os que preferem só ver o espetáculo. Em se tratando do nosso tradicional “rodeio”, é por ocasião da cavalgada que os grupos surgem de modo mais explícito. Geralmente, nesse caso, eles são constituídos por pessoas de uma mesma família ou por famílias amigas, por amigos de longa data ou por conhecidos que todo ano se juntam somente naquele momento especial. E há ainda os colegas de copo ou de azaração, melhor dizendo, da bebida e da paquera.

É evidente que esses festejos agregam um mundo de pessoas que se esbaldam, de preferência, cada qual na sua turma, o que é natural. Mas é claro também que existem os avulsos, o bloco do eu-sozinho. O que vale mesmo é a diversão.

Festas à parte, chamam a atenção especialmente os mais variados tipos de turma que se formam e se reúnem ao longo do ano, ou melhor, dos anos.

A turma do João Bosco (da Lúcia Melo), que não tem nome, é um bom exemplo disso. Conversando com ele, não pude deixar de me surpreender com a informação de que o futebol que eles praticam religiosamente de segunda a sexta-feira, entre 6h30m e 7h30m, acontece há exatos 25 anos. Do grupo que se reuniu em 84, constam nomes como os do padre Raimundo, do Sargento Lopes e do Dr. Paulo (médico), que não participam mais dessa hora esportiva. Como forma de garantir a atividade diária (leia-se problema com chuva), a transferência do Clube Lajes para o ginásio do Varginha foi uma das medidas adotadas por esses atletas matinais. Uma outra providência foi a adoção de regras próprias para o jogo, em que não há goleiro, por exemplo, e o gol só vale dentro da área. Uma curiosidade: algumas jogadas levam nomes de pessoas que já participaram do grupo. “Jogada Bacarini” e “jogada Chichico” são algumas delas. A explicação para isso? Perguntem ao atleticano João Bosco. E para completar, além do próprio João, são integrantes da turma as seguintes pessoas: Agenor, Guinho (da Elaine), Orozimbo, Dudu, Fernando Pacote e filhos, Antônio Gabriel Pacote, Leandro do Tomé, Leandro Pires, Gláucio, Fernando Mendes e sobrinhos (Diego e Danilo), “Oreia”, “Chamel”, Geraldo J.A. e filhos, João Barbantinho, o Carlos Augusto (filho do Carlinhos do Jair) e Elker.

Passo a bola agora, ou melhor, a palavra, para o meu primo Duda, fiel frequentador de uma outra tribo. Escalado por mim, ele revela “dados sobre a Turma do Baú colhidos em mais uma segunda-feira etílica”. Segundo o mesmo, as reuniões começaram em 95, sempre na noite de folga do Dr. Luiz (médico), que na época havia adquirido um sítio (local dos encontros) na localidade do Baú, perto do povoado dos Pintos. As intenções da turma: tomar uns goles, bater papo e comer um frango ensopado. Os pioneiros dessa iniciativa foram, além do anfitrião, o João Bosco do Zé Mendonça, o Edgar do Joel, o Tomás, o Mário da Pensão (o famoso Julinho) e o Nei da CEMIG. Vários foram os que já estiveram no Baú e que o frequentam até hoje, como o Rosalvo, João, Paulinho, Sávio e Chiquinho (todos irmãos do Dr. Luiz), o Ernane do Sô Ananias, o André do Pimpa, o Adriano e o João Magalhães e o filho deste, o Danilo, o João do Galo, o Guilherme da Ana, os sobrinhos do dono da casa, várias duplas de estagiários do Programa de Internato Rural da UFMG e muitos outros. E a Confraria do Baú conta também com a presença do Rei Roberto Carlos, o Iracy do Ivan, que comanda, de vez em quando, umas cantorias com a galera, tocando acordeon.

O companheiro João Magalhães desenvolveu uma teoria para tentar entender o que acontece nessas reuniões: a teoria dos três estágios. No primeiro, ao chegar, as pessoas começam a discutir temas sérios da cidade, do país e da vida: política, economia, filosofia e até mesmo religião. No segundo, fala-se de causos e coisas típicas de Resende Costa, de hoje e do passado não muito distante. Já no terceiro, com a gradação alcoólica exacerbada, parte-se para a esbórnia, quando não dá para escrever dada do que se fala, pois, na verdade, quem passa a falar é ela (a pinga) e não as pessoas.

Como se pode ver, as motivações para esses e outros encontros podem ser esportivas, etílicas e/ou gastronômicas, humanitárias, religiosas... Isso nem interessa muito. Se não houver um motivo, ele pode ser inventado. O importante é que a gente encontre pela vida aqueles de quem vamos querer estar próximos confirmando afinidades e criando preciosos laços de afeto.

Vocês e eu

09 de Outubro de 2009, por Regina Coelho 1

Completo agora em outubro dois anos como colunista do JORNAL DAS LAJES. Esta é a coluna de número 25. Parece pouco, não é? Não para mim. Nesse tempo todo, escrevi sobre os mais variados assuntos, não sem antes pesquisar aqui e acolá conferindo datas, nomes e indo atrás de pessoas que me pudessem prestar informações de que precisava, ou mesmo confirmar e até esclarecer determinados aspectos de uma situação. Como vocês podem ver, dá trabalho escrever. Isso sem contar as tentativas que fazemos para deixar o texto do nosso jeito, com a nossa cara. Acho que é por isso que jamais esqueci o que Fernando Sabino escreveu a respeito dessa questão. Mesmo sem o talento dele, contando apenas com meus modestos e despretensiosos escritos, julgo-me no direito de concordar com ele, que afirmou:

“Nada mais penoso para mim que a busca da expressão adequada, da propriedade vocabular. Há mil maneiras de dizer uma coisa e só uma é perfeita. Para descobri-la, a gente pode levar a vida inteira. (...) É preciso não duvidar da inteligência do leitor. Tenho a impressão de que, ou ele me valorizaria muito, ou passaria a ter por minha literatura o maior desprezo, se soubesse o que ela me custa: aquilo que ele levou alguns minutos para ler me custa dias, meses, às vezes anos para escrever.”

Essa opinião tão feliz e sincera do mineiríssimo Sabino me remete a um curioso episódio presenciado por mim alguns anos atrás. Estava viajando de ônibus, estando sentada perto de um homem que lia seu jornal. De repente, aquele leitor que me parecera tão entretido na leitura de tantos papéis simplesmente abriu a janela do veículo jogando-os fora. Ele não me deu tempo de lhe pedir emprestado o jornal. Tivesse o imprevisível senhor deixado o seu exemplar abandonado na poltrona, não faltaria quem pelo mesmo por ele se interessasse, como eu, por exemplo. Outros leitores também se apossariam daquele jornal.

Lamentei profundamente aquela atitude, pela falta de educação do sujeito de levar tão ao pé da letra a ideia de que jornal é artigo descartável (Hoje não é assim. É melhor dizer que ele é artigo reciclável.). Lamentei também o ocorrido pela oportunidade perdida de ler, ainda que de carona, as folhas que o vento literalmente levou para longe.

Hoje, como responsável por este CONTEMPLANDO AS PALAVRAS, alegro-me pela oportunidade que não perdi de poder escrever para tanta gente, ainda que sabendo da luta constante com as palavras e das páginas do nosso jornal já lidas ou não, muitas vezes esquecidas rapidamente num canto qualquer ou levadas também pelo vento. Que me perdoe o grande poeta Drummond por me apropriar do seu “Lutar com palavras/ é a luta mais vã/ entanto lutamos/ mal rompe a manhã./ São muitas, eu pouco./ Palavra, palavra/ (digo exasperado), / se me desafias,/ aceito o combate”.

De minha parte, prefiro dizer que a luta pode não ser vã quando a ela se junta o prazer de chegar às pessoas. Muitas delas a gente nem conhece pessoalmente. Nada disso, no entanto, impede que se estabeleça entre nós uma agradável relação de camaradagem. A todos os leitores deste espaço, em especial àqueles que se manifestam em demonstrações de carinho ao que escrevo, dedico a luta que acabei de travar com as palavras. Até a próxima edição. Fiquem com um caso interessante contado por Frei Betto.


Filosofia

No curso de filosofia, em São Paulo, tive um professor cuja pedagogia primava pela irreverência, ao contrário de outros da mesma matéria que, por considerá-la profunda, revestem-se de uma sisudez que mais espanta do que atrai.

O professor tinha por hábito escalar os filósofos como um time de futebol: pré-socráticos contra os socráticos; árabes em desafio aos cristãos; medievais na disputa da taça Sofia com os modernos; contemporâneos analíticos.

O mais curioso – o que nos facilitava o aprendizado – era o modo de ele tratar os filósofos: Pluto era Platão; Ari, Aristóteles; O Gordo, Tomás de Aquino; O das Cartas, Descartes; Chico Toucinho, Francis Bacon; O Espinhoso, Spinoza; Mané do Canto, Kant; Chope Raia, Schopenhauer; Nítido, Nietzsche; O Régua, Hegel; Guto Conta, Comte etc.

Assim, a filosofia deixou de ser, para nós alunos, um mistério, para ser o que é: uma análise racional e crítica da realidade.

“Ouviram do Ipiranga as marens plácidas...”

16 de Setembro de 2009, por Regina Coelho 0

Não há como negar. A execução do hino nacional mexe mesmo com a emoção da maioria das pessoas. No nosso específico caso, ainda que haja uma geral dificuldade na memorização dos versos do Hino Nacional Brasileiro e um certo preconceito por parte de alguns em cantá-lo (associação aos tempos da ditadura?), nosso sentimento de brasilidade costuma falar mais alto, ou melhor, cantar mais alto quando o ouvimos. No esporte, então, quando nossos atletas conquistam pódios ou medalhas, a identificação povo-Hino Nacional Brasileiro é imediata. E quando se trata do futebol, que é o Brasil vencedor, aquele que dá certo, confundimos tudo. Chegamos a exagerar dizendo que “o Brasil é o país de chuteiras”. É só lembrar os dias de Copa do Mundo e a nação tomada por uma onda verde-amarela de “patriotismo”. Tudo embalado pelos acordes do hino nacional. Seleção brasileira em campo, jogadores perfilados fingindo que cantam, alguns levando a mão ao peito. Torcedores brasileiros devidamente paramentados ou pintados com as cores do escrete canarinho e dominados por uma comoção sem precedentes.

Toda essa introdução vem a propósito da comemoração, em outubro próximo, dos 100 anos de composição da letra desse nosso símbolo nacional, que tem como autor Joaquim Osório Duque Estrada. É bom lembrar que durante quase um século só a melodia (de Francisco Manuel da Silva) foi executada sem ter oficialmente um texto.

Como curiosidade, veja abaixo o que o jornalista Aldo Pereira, autor de um livro sobre o Hino Nacional, propõe: a letra da música lida na ordem direta para uma melhor compreensão da mesma. De quebra, ele apresenta também um glossário com os termos menos conhecidos. Confira!

HINO NACIONAL
As margens plácidas do Ipiranga ouviram
O brado retumbante de um povo heroico,
E, nesse instante, o sol da Liberdade
Brilhou, em raios fulgidos, no céu da Pátria. Se conseguimos conquistar com braço forte
O penhor desta igualdade,
Em teu seio, ó Liberdade, o nosso peito
Desafia a própria morte!

Ó Pátria amada,
Idolatrada,
Salve! Salve! Brasil, se a imagem do Cruzeiro resplandece II
Ó Brasil, florão da América,
Deitado eternamente em berço esplêndido,
Ao som do mar e à luz do céu profundo,
Fulguras iluminado ao sol do Novo Mundo! Teus campos lindos, risonhos, têm mais flores
Do que a terra mais garrida; [e assim como]
“nossos bosques têm mais vida,” [também]
“nossa vida” no teu seio [tem] “mais amores”.
Em teu céu formoso, risonho e límpido,
Um sonho intenso, um raio vívido
De amor e de esperança desce à terra. És belo, és forte, impávido colosso,
Gigante pela própria natureza,
E o teu futuro espelha essa grandeza. Ó Pátria amada,
Brasil, [apenas] tu,
Entre outras mil [terras],
És terra adorada! Pátria amada, Brasil,
És mãe gentil dos filhos deste solo! Ó Pátria amada... Brasil, o lábaro estrelado que ostentas
Seja símbolo de amor eterno,
E o verde-louro dessa flâmula diga:
Paz no futuro e glória no passado. Mas, se ergues a clava forte da justiça,
Verás que um filho teu não foge à luta,
Quem te adora não teme nem a própria morte. Terra adorada...


Margens plácidas: “plácida” significa serena, calma. Esse é o tom desses versos. Ao contrário do hino de outras nações, o nosso não fala em guerras.
Ipiranga: é o riacho junto ao qual D. Pedro I teria proclamado a independência.
Brado retumbante: grito forte, que provoca eco.
Penhor: usado de maneira figurada, “penhor desta igualdade” é a garantia, a segurança de que haverá liberdade.
Imagem do Cruzeiro resplandece: o “Cruzeiro” é a constelação do Cruzeiro do Sul, que brilha, ou resplandece, no céu.
Impávido colosso: “Colosso” é o nome de uma estátua de enormes dimensões. Estar “impávido” é estar tranquilo, calmo.
Mãe gentil: a “mãe gentil” é a pátria. Um país que ama e defende seus “filhos”, os brasileiros, como qualquer mãe.
Florão: “Florão” é um ornato em forma de flor usado nas abóbadas de construções grandiosas. O Brasil seria o ponto mais importante e vistoso da América.
Garrida: enfeitada, que chama a atenção pela beleza.
Lábaro: “lábaro” era um antigo estandarte usado pelos romanos. Aqui é sinônimo de bandeira.
Clava forte: clava é um grande porrete, usado no combate corpo-a-corpo. No verso, significa mobilizar um exército, entrar em guerra.